Migalhas de Peso

O turismo da vacina sob o olhar dos direitos humanos

Há pouco mais de um ano as motivações para viajar eram muitas: lazer, trabalho, sonhos. Contudo, passado mais de um ano de pandemia outra motivação tem aflorado nas vitrines de agências de viagem mundo afora: vacinas.

2/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Resultado direto da concentração de vacinas nas mãos de poucos, da desestrutura global quanto a descentralização de imunizantes e da necessidade de fomentar setor fortemente abatido pelo distanciamento social, o turismo da vacina é uma realidade que não só estampa as capas dos jornais1, como é tido como um caminho de soerguimento da indústria do turismo.

No entanto, questionamentos de toda ordem podem ser colocados quanto a promoção de tal turismo em um mundo marcado pelo avanço da doença. É ético países que tem doses em estoque utilizá-las para fomentar o turismo? Como controlar a imunização em um país, quando alguns se imunizam no exterior? É válido aquecer a economia de tal forma?

No presente artigo propomos averiguar a situação sob a ótica do Direito Internacional dos Direitos Humanos, mais marcadamente com base nas disposições da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)2, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP)3 e do Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (PDESC)4, tríade de sustento do sistema universal de promoção e proteção dos direitos humanos capitaneado pela Organização das Nações Unidas e suas agências.

Ponto de partida deste debate está no consenso de que o mais humano dos direitos é o direito à vida que, quando não expressamente consagrado nas citadas convenções, é o bem jurídico por elas tutelados. Mas não é qualquer vida. A vida tutelada é aquela caracterizada pela dignidade, cuja realização perpassa pela garantia de diversos direitos apresentados pelas três convenções.

Destes direitos podemos destacar dois: o direito à saúde e o direito ao trabalho, os quais certamente compõe o conteúdo de dignidade e são, por vezes, tidos como antinômicos no cenário contemporâneo.

É mais que certo de que as vacinas se mostram como dos principais meios de realização do direito à saúde (e consequentemente à vida), visto que seus efeitos no combate a propagação e controle da doença são deveras sólidos. A título de exemplo, podemos citar a diminuição de mortes e casos graves em grupos cuja vacinação se encontra mais avançada.

Por outro turno, também é certo que o trabalho constituí meio de manutenção da vida, proporcionando o ganho do capital necessário ao sustento do indivíduo e seu grupo familiar, franqueando o acesso aos bens materiais e serviços.

Do ora dito, poderíamos concluir que o turismo da vacina constituí a soma do melhor de dois mundos. Promove a imunização e ainda fomenta o soerguimento de setor da economia responsável pelo sustento de dezenas de milhares de pessoas e países ao redor do mundo. Todavia, este pensamento encontra um sério obstáculo: a realidade. 

Como de notório conhecimento a vacinação se mostra avançada em pouquíssimos países, sendo marcante a concentração dos imunizantes nos chamados “países ricos” e as dificuldades enfrentadas por grande parte dos Estados em prover as suas populações o acesso as vacinas mesmo com os esforços da Organização Mundial da Saúde.

Este cenário leva a questão de compreender se hoje o turismo da vacina se mostra adequado sobre o olhar dos direitos humanos. Afinal, se temos vacinas sobrando em um país, enquanto tantos outros delas necessitam, por que não as doar ou vendê-las a valores moderados?

Essa questão traz à tona elemento jurídico expresso pelo art. 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece ser dever de todos os seres humanos “[...] agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

Tal espírito se faz sentir no direito à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais por meio da cooperação internacional (art. 22 DUDH), no direito de usufruir dos benefícios dos avanços científicos da humanidade (art. 27 da DUDH e art. 15 do PDESC), no direito à igual dignidade (art. 1° DUDH), na vedação de distinção em razão da origem nacional e da riqueza (art. 2° DUDH), dentre outros exemplos de fácil extração da tríade convencional sobre a qual nos baseamos.

Perguntamos: é fraterno ofertar a vacina como chamativo turístico? A quem tal turismo é direcionado? Qual a quantia monetária necessária para acessar a tal turismo? Estamos exercendo o espírito de fraternidade uns com os outros ao fomentar o turismo da vacina no atual cenário da pandemia de covid-19?

Não se nega que também há questionamentos que pesam em favor do turismo da vacina, pois, se é o direito ao trabalho um conteúdo da dignidade e sendo o turismo setor responsável pelo sustento de milhares de pessoas, não estaria o turismo da vacina a assegurar o direito humano ao trabalho? E mais, as divisas tributárias geradas pelo setor do turismo não poderão ser destinadas a realização de outros direitos humanos por parte dos Estados, dentre eles o direito à saúde?

Estamos aqui diante do mais debatido embate normativo na atualidade (ao menos no Brasil) direito à saúde vs. direito ao trabalho. Este embate, contudo, é falso! O caminho não é a confrontação de direitos. Não é a prevalência absoluta e imutável de um sobre o outro, mas sim a ponderação destes tendo por base o cenário concreto enfrentado por toda a humanidade.

 Em um mundo em que a pandemia segue o caminho de crescimento e a solução vacinal se mostra incipiente e fortemente concentrada nas mãos de poucos, não se mostra, à luz da ponderação dos direitos humanos e do dever de fraternidade e cooperação, adequado o fomento de um dado setor econômico, com a oferta de doses que poderiam ser direcionadas à povos que se veem cada dia mais entregues as mazelas da doença.

Isto, no entanto, não significa que em um futuro (que desejamos esteja próximo), no qual o acesso a vacina tenha-se democratizado e globalizado, haja o fomento do turismo por razões de saúde, o que certamente já ocorria antes da pandemia, ao exemplo de várias pessoas que viajavam nacional e internacionalmente em busca dos mais variados tratamentos. Este, contudo, não é o momento presente.

O fomento do turismo da vacina no presente contexto da pandemia faz parecer que estamos próximos da ficção Elysium5, estrelada por Alice Braga e Wagner Moura em 2013, na qual pessoas arriscam suas vidas em naves clandestinas para acessar uma estação espacial onde máquinas de alta tecnologia são capazes de curar as mais diversas mazelas de saúde. Troque o pano de fantasia, pela realidade. Elysium são os países que fomentam o turismo da vacina. A vacina é a máquina de cura. O acesso é de quem pagar mais.

Temos uma escolha a fazer: ponderar e sermos fraternos para juntos superarmos este momento ou alimentar nossos medos individualistas, limitando exercício dos direitos humanos a capacidade de pagamento per capita, negando o dever de fraternidade.  

________________

1 Cfr. BERMÚDEZ, Ana Carla, et al. Deslocamentos pandêmicos: a busca por vacinas e saúde atravessa fronteiras. CNN Brasil. São Paulo, 31 mai. 21. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 jun. 21. TURISMO da vacina. G1 CE. Fortaleza, 01 jun. 21. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 jun. 21.

2 Cfr. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, 1948. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 jun. 21.

3 BRASIL. Decreto 592, de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Brasília: Presidência da República. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 jun. 21.

 

4 BRASIL. Decreto 591, de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Brasília: Presidência da República. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 jun. 21.

5 ELYSIUM. Direção de Neill Blomkamp. Estados Unidos da América: TriStar Pictures, 2013.

Guilherme Augusto Lippi Garbin
Mestre em Direito e Ciência Jurídica pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Direito do Estado, com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Estadual de Londrina. Advogado no escritório Hayama e Itimura Advogados. Pesquisador-membro do grupo de pesquisa em Constituição, Constitucionalismo e Direitos Fundamentais do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania.

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