Não é segredo que a pandemia do coronavírus (Sars-Cov-2) trouxe inúmeros empecilhos aos trabalhadores brasileiros, principalmente a aqueles que dependem exclusivamente de uma atividade econômica que demanda contato direto com o público. Dentro desta realidade, além dos comerciantes e empresários que não estão inseridos em nenhuma plataforma online para a tele entrega de produtos, encontram-se todos os profissionais prestadores de serviço, como é o caso daquelas chamadas as profissionais do sexo.
Embora recentemente as trabalhadoras estejam aparecendo mais na mídia do que o normal em função das reivindicações, a maioria das adversidades enfrentadas por essa classe de mulheres não se iniciaram da pandemia. Aliás, é seguro dizer que se tratam de situações penosas, e que já transpassam alguns séculos, uma vez que os escritos apontam que a troca de sexo por dinheiro começou na Babilônia (ULMANN, 2007).
Preliminarmente, deve-se perguntar por que falar da profissão sempre se referindo ao sexo feminino, como “as trabalhadoras”, “as prostitutas” e “as profissionais”? Justamente porque desde o período paleolítico, o sexo estava relacionado à fertilidade delas, de modo que era oferecido as Deusas da época como sacrifício para atrair fertilidade às terras (ROBERTS, 1992). No mais, as pesquisas comprovam que as mulheres ainda são a maioria, de modo que 75% do ramo é composto por elas (FARIA, COELHO & MORENO, 2013).
Sempre encarregadas pela criação dos filhos e com salários desiguais, as mulheres procuram na prostituição a alta rentabilidade e a flexibilidade de horários que um trabalho de doméstica ou caixista de supermercado não oferece. Essas vantagens que fazem com que elas se sujeitem a situações extremamente degradantes de trabalho, acarretam uma visão vitimista da profissão e dificultam um olhar econômico desse fenômeno.
Partindo desses diferentes olhares surgiram três correntes sobre a prostituição no mundo, o abolicionismo, o regulacionismo e proibicionismo. Todos eles buscam solucionar as contrariedades consequentes da venda dos serviços sexuais. Em uma breve explicação, o abolicionismo busca exterminar a exploração da profissão através da criminalização das condutas que cercam a prostituição, como o rufianismo, a manutenção dos famosos bordéis, e o aliciamento de mulheres, principalmente das menores de idade.
Por outro lado, o proibicionismo visa acabar com a profissão em si, impedindo até mesmo aquela que é voluntária. Ainda que autoexplicativa, o regulacionismo luta pela concessão de direitos às trabalhadoras junto a fiscalização das condições de trabalho, e acredita estar na regulamentação a proteção frente aos abusos dos clientes e cafetões.
Dito isto, é preciso observar como a legislação nacional trata a prostituição, identificando quais dispositivos embasam uma atuação mais repressiva e quais podem fundamentar uma performance mais garantista do Estado. Pois bem, a seguir daqui verificar-se-á como o enquadramento da profissão não pode estar limitado a esfera penal.
1. Da esfera penal
Considerada a última ratio do direito brasileiro, as normas penais gerais são as únicas que abordam a prostituição diretamente, através da tipificação das condutas que a cercam. É imperioso destacar que a corrente a qual o Brasil é adepto se manifesta pela omissão do legislador, que não criminaliza a prostituição voluntária e faz com que a postura estatal seja abolicionista, tornando-a clandestina por associação.
Quanto aos crimes correlacionados, inicia-se pelo art. 227 do Código Penal, que tipifica a conduta de induzir alguém a satisfazer a lascívia de outra pessoa. Não há sujeito específico ativo, podendo ser qualquer pessoa, ao contrário do sujeito passivo que, independente do sexo, deve ser um alguém determinado, sob pena de configurar o crime de favorecimento a prostituição do art. 228, do CP (PIERANGELI, 2007).
Por possuir diversos verbos em seu caput, o crime de favorecimento a prostituição do art. 228, apena não só os comportamentos de indução ou atração, mas também o de impedir ou dificultar que o indivíduo saia da prostituição. Da mesma forma, o ilícito causa uma proibição indireta como a formação de cooperativa entre as trabalhadoras.
O próximo artigo da codificação penal criminaliza a manutenção de casa de prostituição, denominada vulgarmente como zona ou prostíbulo (art. 229, do CP). Para a configuração desse tipo os requisitos são a habitualidade e que a finalidade esteja indiscutivelmente comprovada. Não podem ser apenadas as casas de massagem, saunas, hotéis, drive-in e as casas de relaxamento pelo princípio da legalidade. Quanto aos sujeitos que podem ser responsabilizados pelo crime estão o administrador, o financiador e o proprietário (RODRIGUES, 2004).
O último artigo (230, do CP), configura o ilícito do rufianismo, cujo comportamento condenado é o de tirar proveito da venda de serviços sexuais por outra pessoa, melhor dizendo, veda-se a exploração dos lucros recebidos por um terceiro. Nesse caso a voluntariedade da trabalhadora em nada influencia a consumação do crime, ao contrário de quando o pagamento decorre de aluguel do ambiente ou do consumo de bebidas.
2. Os princípios constitucionais que embasam a tutela trabalhista
Partindo do pressuposto que uma atividade econômica é toda aquela que busca satisfazer as necessidades e desejos de um grupo específico em troca do lucro, é inegável que a prostituição possa ser assim vista. Como já mencionado em oportunidade anterior, o que as trabalhadoras buscam nesse ramo é o dinheiro como forma de pagamento aos serviços sexuais prestados.
Na Constituição Federal de 1988, o que legitima uma atividade econômica são os princípios da dignidade da pessoa humana e da justiça social, segundo o art. 170, caput. Nessa lógica, o Estado Democrático de Direito está vinculado a proporcionar uma maior igualdade econômica através da igualdade nas condições de vida, a fim de que os indivíduos exerçam plenamente suas habilidades e potencialidades (MOTA, 2008).
O próprio art. 1º, inciso IV, da Carta Magna, dispõe que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, de modo que a autodeterminação seja uma concretização de escolhas. Nessa perspectiva, averígua-se que o único modelo de trabalho permitido a prostitutas é o autônomo, posto que não tem como explorar esse tipo de mão-de-obra, em função do rufianismo.
Todavia, consoante doutrina majoritária, a regulamentação trabalhista da profissão desrespeitaria a dignidade da pessoa humana, pois reduziria as mulheres à condição de coisa (DALOSSI, 2012). Ocorre que permitir que as prostitutas se prostituam voluntariamente e não disponibilizar uma legislação para ampará-las, seria consentir as péssimas condições sanitárias de trabalho, aos abusos por parte de clientes e não penalizar os exploradores.
O inciso III, do art. 1º, ao ser interpretado com o art. 193, ambos da Constituição Federal, cria a teoria das nulidades trabalhistas. Essa fundamenta que quando o objeto do trabalho que não ofende a ordem pública, mesmo sendo ilícito deve ser o reconhecido dos direitos com a consequente fixação da obrigação de pagamento ao contratante, caso contrário esse pode se beneficiar da própria torpeza.
Se até o ilícito pode ser validado quando não ofende a ordem pública, por que motivo à prostituição que é lícita, não pode? Porque como consequência a inobservância desse preceito, é perceptível a ignorância sobre o princípio da não discriminação e da liberdade de ofício, respectivamente elencados no art. 3º, IV, art. 5º, caput e inciso XIII, do coração do ordenamento jurídico brasileiro.
Em contrapartida, forçoso dizer que desde o ano de 2002, a prostituição está na Tabela da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), através da Portaria nº 397, o que não se demonstrou apenas uma conquista burocrática para a classe. Esse avanço concedeu as trabalhadoras, alguns poucos direitos previdenciários como aposentadoria, auxílio-doença e salário maternidade.
Para isto, elas devem recolher uma alíquota de no mínimo 11% (onze por cento), caso não façam questão da aposentadoria por tempo de contribuição, ou em caso positivo, alíquota de 20% (vinte por cento). Novamente, a ausência de instrumentos e estratégias específicas para facilitar o acesso das trabalhadoras, impede a reivindicação dos direitos.
3. Conclusão
Quase dez anos depois do reconhecimento da profissão pelo Ministério do Trabalho e do Emprego, extinto recentemente, o que se vê é um novo abandono da classe, posto que as necessidades das prostitutas, como os problemas sanitários de trabalho e as explorações ainda existem, mesmo com inúmeros movimentos sociais da categoria.
Entre os países que assumiram uma postura regulamentarista como forma de solução, a Alemanha o fez através de uma lei Federal com apenas três artigos, o primeiro concedendo força executiva ao contrato sexual, o segundo dispondo que esse direito de execução é personalíssimo da prostituta e, o terceiro permitindo a negociação das condições de trabalho com o empregador (GUIMARÃES, 2014).
A Hungria por sua vez, impôs requisitos específicos a serem cumpridos, como os exames obrigatórios a cada três meses, para somente assim ganhar um certificado de saúde que atestaria a aptidão para trabalhar. Além disso, elas devem pagar impostos, contribuir perante a previdência e comprovar a residência e a escolaridade (WESTERSON, 2012).
Já na Holanda permite-se a intermediação dos serviços, mas proíbe-se a exploração sexual, sendo o país incisivo no combate a prostituição infantil. No tocante aos direitos trabalhistas, é necessário a comprovação de uma licença para atuar e também o pagamento de impostos.
É fato que tais medidas não resolveram por completo os problemas atrelados ao mercado do sexo, principalmente aqueles que afetam as trabalhadoras, ou seja, a exploração e as condições sanitárias. Porém, frente às demais correntes, ela ainda parece ser a mais viável, visto que os sistemas abolicionistas e proibicionistas não evitam que o fenômeno se perpetue.
Não considerar a prostituta como sujeito portador de direito seria uma afronta não apenas a dignidade da pessoa humana, mas também aos direitos fundamentais de igualdade, liberdade e à segurança. Isto porque a relativização das condutas praticadas contra elas, seja no crime ou no exercício da profissão, fundamentada na noção de moralidade e ordem pública, impede a tutela de tais direitos, reforçando o preconceito, a violação física e psicológica dessas mulheres.
Ignorar a existência desse nicho de prestação de serviço não faz com que ele desapareça. É preciso apresentar alternativas viáveis e rentáveis para aquelas que desejam sair e, ainda, garantir o mínimo de dignidade no exercício da profissão para aquelas que desejam ficar, sob pena de uma segunda violação estatal.