O tema da requisição administrativa no âmbito da saúde voltou. Passado um ano da ocorrência desse fenômeno, a escassez de insumos para tratamento de pacientes acometidos pela covid-19 está fazendo com que o Estado volte a capturar, da iniciativa privada, medicamentos e demais materiais necessários para a prestação de assistência à saúde.
Durante a primeira onda da pandemia, a utilização pública de bens e materiais pertencentes ao privado foi feita por meio do instituto da requisição administrativa. A base jurídica para tal movimento foi o artigo 3º, inciso VII, da lei da Pandemia 13.979/20. A expressão “requisição” ganhou notoriedade, sendo compreendida por toda a sociedade como uma forma de o Estado se apropriar da propriedade privada de maneira bastante ágil, para atender a certa necessidade pública.
O que pouco se debateu à época da primeira onda é se a requisição era ou não o procedimento adequado para a realização de todos esses movimentos. Penso que vários desses insumos de saúde deveriam ser desapropriados e não requisitados. A diferença, explicou adiante, não é só semântica.
A requisição é instituto antigo do direito brasileiro. Para não se ir muito longe, basta voltar à própria Constituição, que em seu artigo 5º, inciso XXV, diz que, em caso de iminente perigo público, o Estado poderá usar de propriedade privada, “assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Ainda, antes mesmo da lei da Pandemia, a disciplina da requisição no âmbito da saúde veio por meio da Lei Orgânica da Saúde (LOS) 8.080/90. O inciso XIII do artigo 15 da LOS pouco inovou na ordem jurídica. Cuidou somente de dar maior detalhamento ao termo constitucional “iminente perigo público”, customizando essa dicção à realidade da saúde pública. Além disso, cunhou o signo “requisição” como o símbolo da ação estatal de se valer de bem privado para atender necessidade pública transitória, terminologia não expressada na Constituição. Portanto, a lei da Pandemia nada trouxe de novidade nesse quesito, de modo a que sua requisição tivesse características distintas das já existentes.
Viu-se no nascer constitucional que a ação estatal requisitória ganhou um nome: uso. Não se trata de mera nomenclatura, mas sim de espécie de direito real, a qual, por evidente, recai sobre bens móveis e imóveis. O uso é exercido pelo dono da coisa, mas, como prevê o Código Civil (art. 1.412 e seguintes), pode ser transferido a terceiro, que passará a ser o usuário, ainda que não proprietário. E há uma premissa fundamental que orienta a relação entre dono e usuário, qual seja a de que o bem utilizado é o objeto, cujo uso é transferido e, ao final da relação, devolvido.
A perda da propriedade, pelo perecimento da coisa dada em uso, é bem verdade, é situação prevista no Código Civil. Mas, trata-se de hipótese excepcional atrelada ou a evento inesperado (caso fortuito ou força maior) ou a ato ilícito praticado pelo usuário. Portanto, não se admite no ordenamento jurídico brasileiro que o bem objeto da relação de uso possa naturalmente perecer, por mera decorrência de sua utilização. No uso, ensina Silvio de Salvo Venosa, “conserva-se a substância”.1
Entendida a requisição como uma modalidade de uso compulsório, pelo Estado, da propriedade privada, o bem objeto dessa relação, ao final de sua utilização, há de ser conservado pelo usuário para posterior devolução ao proprietário. Ocorre que, muitos dos bens “requisitados” no período da pandemia não podem ser devolvidos, pois perecíveis. Para esses bens, concluo ser inaplicável o instituto da requisição.
A bem da verdade, quando o Estado se apropria de propriedade privada perecível, tais como medicamentos, agulhas, luvas, vacinas etc., está realizando ato expropriatório, de modo a transferir compulsoriamente para si a titularidade de propriedade privada. Eis aqui o conceito de desapropriação, cuja legalidade dependerá também da existência de necessidade pública.
E, como disse, há consequências jurídicas distintas nos procedimentos de requisição e desapropriação. Chamo atenção para a principal, qual seja o momento da indenização. Na requisição, a indenização é posterior, e só ocorrerá uma vez demonstrado o dano. Já na desapropriação, a indenização é prévia e em dinheiro (art. 5º, XXIX da CF), dispensando-se a prova do dano, concentrando-se na apuração do valor indenizatório. Essa distinção atrai uma segunda, de igual relevância: havendo processo judicial, a discutir o montante indenizatório, em se tratando de desapropriação, haverá pagamento em espécie (o qual se somará a um primeiro montante já apurado no procedimento administrativo da desapropriação). Já na hipótese de requisição, o sucesso da ação vem com o gosto da derrota de se receber um precatório.
Importante advertir que o argumento da urgência, requisito da requisição, mas desnecessário na desapropriação, não autoriza a utilização daquela em detrimento desta. É que a própria Constituição impõe limite à requisição, o de se destinar a bens que podem ser usados (na acepção jurídica da palavra). Essa característica inexiste nas coisas perecíveis. Não se pode, ademais, emprestar interpretação extensiva à norma limitadora do direito de propriedade, tampouco entender que normas infraconstitucionais ampliaram os limites da requisição definidos constitucionalmente. Ademais, o regime jurídico dá tratamento adequado para as desapropriações que devem ocorrer em caráter urgente, tal como se retira do artigo 15 do Decreto-lei 3.365/41. Estou a falar sobre a imissão na posse, a ser autorizada judicialmente, mas que dispensa a própria citação do réu para ser consolidada.
Por essas razões todas, sugiro que, nessa segunda onda pandêmica, evite-se a utilização equivocada da requisição administrativa para expropriação de bens perecíveis, dando lugar à desapropriação. A insistência na requisição, para esses casos, além de se revelar um ilícito, irá agravar ainda mais a crise econômica instalada, pois impedirá a fluidez de recursos relativos a essa transferência de propriedade, represando-os ilegalmente nos cofres públicos.
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1. VENOSA. Silvio de Salvo. Direito civil: direitos reais, São Paulo, 3ª ed., Atlas, 2003. P. 422.