Migalhas de Peso

Processo seletivo exclusivo para negros

Inexistência de racismo reverso

23/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Antes de adentrarmos na questão racial e todas as peculiaridades acerca da possibilidade e repercussão do modelo de processo seletivo exclusivo para negros, importante apresentarmos o conceito básico do processo seletivo convencional. Logo, trata-se de um conjunto de técnicas utilizadas para filtrar e selecionar os candidatos que querem ocupar determinado cargo. Por meio dele, é possível identificar se elas têm as qualidades e habilidades exigidas pela empresa.

No entanto, será que essas técnicas de filtragem são justas? Para responder o referido questionamento precisaremos analisar uma das maiores manifestações de desigualdade social no Brasil que é constante objeto de estudo e formulação de políticas públicas com objetivo de reduzir as desigualdades existentes em nossa sociedade.

A desigualdade advinda da cor ou raça ocupa espaço central nesse debate, visto ser latente o seu enraizamento na história do desenvolvimento de nosso país. Como consequência, há maiores níveis de vulnerabilidade econômica e social nas populações de cor ou raça preta, parda e indígena, como demonstram diferentes indicadores sociais.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou a pesquisa “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil” e constatou em 2018 que 64,2% dos desempregados eram negros enquanto sua representação na população brasileira é de 55,8%. Ou seja, o mercado de trabalho não é representado por pessoas pretas e pardas na mesma proporção, o que mostra a discriminação racial na hora de conseguir um emprego.

Evidente que as desigualdades étnico-raciais têm origens históricas e são incessantes. A população de cor ou raça preta possui severas desvantagens em relação à branca, no que tange às dimensões contempladas pelo mercado de trabalho.

Em decorrência do longo período de escravidão vivenciado no Brasil, a construção da imagem da pessoa negra foi lastreada por uma condição de submissão e inferioridade, o que favoreceu a ideia de que se trata de pessoa que se conforma como a desigualdade.

Racismo é o termo que reflete atitudes e situações de tratamento desigual entre as pessoas por causa de sua raça ou etnia. Infelizmente, em nosso país, vários estereótipos ainda recaem sobre pessoas negras e fazem com que, por vezes, elas sejam excluídas, desvalorizadas ou colocadas em situações constrangedoras só por conta da cor da pele.

Deste modo, retomando o questionamento acerca das técnicas de filtragens nos processos seletivos, estas não se apresentam justas. Excluídos historicamente, a comunidade negra tende a possuir condições menores de se equiparar àqueles que não pertencem a esses grupos. Esse cenário faz com que pessoas negras e com baixo acesso à formação acadêmica sejam eliminadas no início dos processos seletivos, fortalecendo a falta de representatividade nas organizações.

Mas não é só, o racismo e os próprios vieses inconscientes fazem com que pessoas pretas ou pardas sejam eliminadas de processos seletivos por preferências injustificadas ou critérios irrelevantes. Também pode acontecer na hora de promover uma pessoa ao invés de outra para um cargo de liderança.

Neste cenário de exclusão e discriminação racial, um número crescente de empresas vem, com objetivo de promover a igualdade racial, adotando ações afirmativas através de processos seletivos mais justos e com oportunidades reais para negros não apenas vislumbrarem um emprego, mas obtendo meios concretos de almejarem cargos de governança.

Essas ações afirmativas acarretam a discriminação positiva que tem como finalidade reparar situações de desigualdade, estabelecendo medidas que diminuam a desvantagem de um determinado grupo.

Destaca-se aqui a brilhante colocação da Dr. Alessandra Benedito, professora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas:

"O que a lei permite é desigualar para igualar. Ações afirmativas são uma garantia legal para assegurar igualdade de oportunidades. Ou seja, viabilizam acesso a pessoas que não conseguiram estar no mercado de trabalho de forma igualitária.”

Notabiliza-se que a discriminação positiva é um mecanismo amparado pelo nosso ordenamento jurídico que visa eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento numa situação desigual. Ou seja, permite que os iguais sejam tratados de maneira igual e os desiguais sejam tratados de maneira desigual.

O decreto legislativo 23, de 21 de junho de 1967, que aprovou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da ONU, afirma:

“Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.”

Nesse mesmo sentido, o próprio Ministério Público do Trabalho, após repercussão de famoso processo seletivo conduzido por empresa de renome, divulgou através de Nota Técnica 1/18 sua posição acerca da discriminação positiva ser “um tipo de discriminação que tem como finalidade selecionar pessoas que estejam em situação de desvantagem tratando-as desigualmente e favorecendo-as com alguma medida que as tornem menos desfavorecidas. A cota racial, por exemplo, é um caso clássico de discriminação positiva.”.

O MPT destacou ainda que as ações afirmativas têm amparo na Constituição Federal, no Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/10) e na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, da qual o Brasil é signatário.

Todavia, apesar das legislações apresentadas, bem como posicionamento do MPT favorável a legalidade do processo seletivo baseado nas ações afirmativas, inúmeras foram as manifestações contrarias.

Para alguns, escolher apenas negros para participar de uma seleção seria até mesmo inconstitucional. O tema também gerou discussão nas redes, com pessoas brancas dizendo que estavam sofrendo uma espécie de "racismo reverso" ao serem excluídos do processo seletivo.

Aqui merece atenção a expressão “racismo reverso”. Isso porque, através de uma perspectiva distorcida, a parcela da sociedade que até hoje não aceitou de fato as ações afirmativas, se ilude com uma visão tradicional de um Brasil sem racismo, que vive a farsa de que o país é uma democracia racial.

Quando se fala de racismo reverso, parte-se da ideia de que o grupo desfavorecido está oprimindo seu opressor. Os negros, no caso do Brasil, passaram por mais de 400 anos de escravidão, fazendo parte de um dos últimos países a aboli-la, e certamente não teriam a mesma força que seu opressor.

Nesse sentido posicionou-se Djamila Ribeiro ao afirmar que “Para haver racismo, é preciso haver relações de poder. Quando os oprimidos reivindicam seus direitos normalmente são confrontados pelos opressores que fazem uso da chamada 'lógica da inversão'. Ou seja, acusando aqueles que estão reivindicando direitos legítimos de criar o problema”

Ainda, defendendo o afastamento por completo da tese de racismo reverso, cumpre destacar trecho do julgamento do processo 0003466-46.2019.4.01.3500, da lavra do exmo. Juiz Federal JOÃO MOREIRA PESSOA DE AZAMBUJA, j. 20/1/20, verbis:

“Na sociedade brasileira, a pessoa branca nunca foi discriminada em razão da cor de sua pele. É dizer, jamais existiu, como fato histórico, a situação de uma pessoa branca ter sido impedida de ingressar em restaurantes, clubes, igrejas, ônibus, elevadores etc. Nenhuma religião de matriz europeia sofreu discriminação no Brasil, a ponto de seus praticantes serem perseguidos e presos pela Polícia, ou terem seus locais de culto depredados e destruídos por pessoas de crenças compartilhadas pela maioria da população, tal como se deu com as religiões de matrizes africanas. (...) Nunca se fez necessária a adoção de políticas de ações afirmativas para as pessoas brancas, por não existir quadro de discriminação histórica reversa deste grupo social nem necessidade de superação de desigualdades históricas sofridas por pessoas brancas (ADPF 186). Diante de tal cenário histórico e social, o conceito de racismo reverso constitui evidente equívoco interpretativo. Não existe racismo reverso, dentre outras razões, pelo fato de que nunca houve escravidão reversa, nem imposição de valores culturais e religiosos dos povos africanos e indígenas ao homem branco, tampouco o genocídio da população branca, como ocorre até hoje o genocídio do jovem negro brasileiro. O dominado nada pode impor ao dominante.”

Pelos pontos apresentados, é notório que a realização de recrutamento de pessoas negras não é “racismo reverso”. A expressão, na verdade, é um conceito criado de forma maliciosa e distorcida, visto que as ações de reparação não excluem ou discriminam pessoas brancas. Elas apenas equiparam as oportunidades e transformam a seleção de candidatos em uma etapa mais justa dentro do mercado de trabalho.

Quando empresas identificam e se sensibilizam com o racismo estrutural, passando a incluir práticas antirracistas valorizando a diversidade, concluímos com tranquilidade que, a inclusão que tem se firmado preponderantemente por meio do emprego de programas de ações afirmativas de combate ao câncer da discriminação racial inserindo a população negra, é o único caminho que deve ser seguido.

Fabriccio Mattos do Nascimento
Advogado trabalhista do escritório Gameleira Pelagio Fabião e Bassani Sociedade de Advogados.

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