Migalhas de Peso

As penitenciárias modernas são minicidades com restaurante e cinema?

A construção jurídico-penal pátria abandona a realidade, em um processo de esquizofrenização já há muito apontado por Zaffaroni.

12/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Jô Soares uma vez, em um dos seus muitos programas, afirmou que era difícil ser comediante no Brasil, pois a concorrência dos poderes constituídos era desleal. A diferença é que a comédia de erros que nós, advogados, testemunhamos, custam vidas e liberdade.

Em 23/2/21, com publicação em 25/2/21, prolatou um desembargador do TJ/MG:

As penitenciárias modernas são minicidades, com trabalho remunerado, restaurante, biblioteca, escola, futebol, cinema, jornais, rádio e televisão.

Os infelizes que os povoam têm quase tudo, mas não tem nada.

Sem justiça certa, célere, barata, igual para todos, não há estado de direito.

A impunidade é o celeiro do crime, e é estarrecedora a demora e perplexidade da administração, ante, esta sim, grande subversão da ordem e da segurança dos cidadãos, calamitosamente denunciada por milhares de sentenças condenatórias não executadas, por carência de prisões e pela repugnante extorsão da liberdade negociada, transviadas conselheiras de assaltos, roubos, assassinatos e estupros. (g.n.)

Não é necessário fazer uma referência exata para a decisão, ou mesmo apontar o nome do Desembargador. Um ataque à uma decisão deve ser feito pelos meios processuais adequados. Questionar o desembargador, pessoalmente, é algo a ser feito perante o CNJ. Não sou o advogado da causa. No mais, prevalece a regra da publicidade dos processos, caso alguém sinta a necessidade de verificar tais questões. O que aqui preocupa é o conteúdo da decisão, e não quem a proferiu.

Os demais desembargadores votavam “De acordo com o(a) Relator(a)”, garantindo que o império do copiar e colar permaneça vigoroso e vibrante.

Entre outros pontos questionáveis da decisão, e alguns argumentos até mesmo da parte citada merecedores de crítica, a descrição das penitenciárias oferecida pelo relator, e subscrita pelos demais membros, é chocante. Lembro-me da minha prática, tanto como advogado, mas como membro da Comissão de Direito Penal da subseção da OAB a que pertenço, posição que me coloca ainda mais inserido dentro da realidade prisional.

Faço-me lembrar do que escreveu Júlio César de Mello e Souza, sob o pseudônimo de Malba Tahan:

No dia seguinte, perguntei que dados ou elementos de cálculos conseguira ele, afinal, colher nas paredes da prisão, durante sua célere visita; que motivos teriam levado a dar tão original solução ao problema do condenado.

Respondeu-me o calculista:

- Só quem já esteve, por alguns momentos sequer, entre os muros tenebrosos de uma enxovia, sabe resolver esses problemas em que os números são parcelas terríveis da desgraça humana. (g.n.)

A desconexão com a realidade, esta verdadeira esquizofrenização jurídico-penal, é algo que Zaffaroni há muito alerta

A situação assinalada impede-nos de empregar a palavra “crise” como ponto de inflexão do fenômeno de contradição entre o discurso jurídico-penal e a realidade operacional do sistema penal. [...] De modo algum acreditamos que “crise” possa indicar, aqui, um momento a partir do qual a realidade operativa de nossos sistemas penais comece a se aproximar da programação estabelecida pelo discurso jurídico-penal – o que seria absolutamente impossível por ser “utópico” [...] (2001, p. 15)

Para onde ir daqui, senão apontar que também a afirmação do desembargador de que “[a] impunidade é o celeiro do crime” não possui qualquer comprovação. Que a ideia de que o cárcere exerce uma função preventiva jamais foi constatada. Ao contrário, existem fortes indícios de que, ao menos na forma atual, é fator criminogênico.

Ningún dato de realidad social confirma que la pena cumpla alguna función preventiva general o especial. Por el contrario, los datos sociales indican que el poder punitivo tiene efecto reproductor. Como la pena se construye conceptualmente fuera de todo dato de realidad, una tendencia pretende construir una culpabilidad a la medida de los requerimientos de sus dogmas elegidos y sin ningún contacto con los datos antropológicos. Eso, en definitiva, es una renuncia a la culpabilidad, por el camino de su reemplazo por la ficción. (ZAFFARONI, 1999)

Desnecessário recorrermos ao mestre argentino. Juarez Cirino dos Santos, em sua nota para a 9ª edição de sua obra, comenta:

a) a elevação do máximo de execução da pena privativa de liberdade para 40 (quarenta) anos legaliza uma teoria vulgar de criminalidade, em contrate com as verificações empíricas da Criminologia, pela qual quanto maior a pena, maior a reincidência – afinal, a prisão só ensina a viver na prisão; (2020, p. 5)

Mas, por que estamos discutindo isso mesmo? Pelo menos motivo que um desembargador sobre uma prisão preventiva, algo que de alguma forma tem relação com impunidade?

Mas, sejamos justos ao afirmar que a desconexão com a realidade não se opera unicamente no judiciário, do qual este desembargador, ora citado, é um fiel retrato, longe de ser a exceção. Ela opera também na academia, que se limita quase que exclusivamente a pesquisas de natureza bibliográfica. Quando foi a última vez que um dos que leem essas palavras viram uma pesquisa empírica do direito? Parabéns para a Revista de Estudos Empíricos em Direito bastião solitário cuja última edição (Volume 9, 19 de fevereiro de 2021) contém 6 (seis!) artigos.

O processo de esquizofrenização, tão bem representado pelo acórdão que capitaneia o presente artigo, caminha a passos largos. “Mais pena!”, gritam as mesmas vozes que separam maniqueisticamente a sociedade entre “bandidos” e “cidadãos de bem”, sem lembrar que a diferença está em quem foi ou não tocado pelo direito penal, e não naquilo que fazem (ou, pior ainda, naquela essência do ser atribuída ao sujeito assujeitado na modernidade). Essa separação está também na construção legislativa:

As teorias tradicionais compreendem que os antecedentes e a reincidência criminal constituem fatores de diferenciação dos indivíduos. Estes, quando reincidentes criminais ou detentores de antecedentes, são inseridos em um grupo específico, considerado como perigoso (os criminosos), que representa o mal e que merece tratamento processual específico (p. ex. sujeição à prisão preventiva, óbices à fiança, impedimento do recurso em liberdade, etc.). […] (BISSOLI FILHO, 1998, p. 214)

Quem é o violador das normas? Quem é o “criminoso”? O “bandido”?

Se

Praticamente, não existe conduta – nem mesmo as ações mais privadas – que não seja objeto de vigilância por parte dos órgãos do sistema penal ou daqueles que se valem de sua executividade para realizar ou reforçar seu controle, embora mostrem-se mais vulneráveis as ações realizadas em público, o que acentua a seletividade da vigilância em razão da divisão do espaço urbano que confere menores oportunidades de privacidade aos segmentos mais carentes. (ZAFFARONI, 2001, p. 24-25)

Então

Certo é que o Direito Penal tem seu público-alvo. Nem todas as pessoas farão parte de sua “clientela”. Aqueles que militam nessa seara podem testemunhar, com segurança, que o Direito Penal tem cor, cheiro, aparência, classe social, enfim, o Direito Penal, também como regra, foi feito para um grupo determinado de pessoas, pré-escolhidas para fazer parte do show. (GRECO, 2009, p. 6)

Que é o cliente do Direito Penal? Quem vive a realidade? Certamente não os desembargadores em suas torres de ouro. Também não os acadêmicos em suas torres de marfim. Exceto aqueles que, por escolha, descem os degraus e olham, de perto, tentando observar, ainda que sem verdadeiramente compreender, a realidade da enxovia, e tão terríveis parcelas da desgraça humana. É preciso des-pensar:

Des-pensar é uma tarefa epistemologicamente complexa porque implica uma desconstrução total, mas não niilista, e uma reconstrução descontínua, mas não arbitrária. Além disso, por ser efectuada no encalço da ciência moderna, o momento destrutivo do processo de des-pensar tem de ser disciplinar (o direito e cada uma das ciências sociais), ao passo que o seu momento construtivo deve ser interdisciplinar: o processo de des-pensar equivale a uma nova síntese cultural. (SANTOS, 2005, p. 186).

Faço minhas as palavras dos citados autores, pois confesso estar afônico ao ver um desembargador comprar um presídio com um centro de convívio onde “[o]s infelizes que os povoam têm quase tudo”. A realidade não existe. A realidade é o que dizem ser. O sujeito assujeita os sentidos. O cachorro chamado gato passa a miar.

_________

BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da Criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998.

GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio. 4. ed. rev, ampl e atual. Niterói, RJ: Impetus, 2009.

SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2005.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 9. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.

ZAFFARONI, E. Raúl. Em busca das penas perdidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001.

_____. La Culpabilidad em el Siglo XXI. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 28/1999, out./dez. p. 56-71. 1999.

Rodrigo Pedroso Barbosa
Mestre em Direito, especialista em Direito Penal e Processual Penal, autor e advogado criminalista.

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