Migalhas de Peso

O Direito Tributário como instrumento transformador da realidade ambiental brasileira

O debate acerca da questão ambiental é realizado em escala global, e a cada ano ganha importância em virtude da constatação das mudanças climáticas produzidas pelas atividades do homem.

12/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

Durante 2020, o mundo passou por muitas transformações, dentre elas a notável união de esforços para o estabelecimento de um sistema internacional de proteção e prestação de contas ambiental, em face de organizações públicas e privadas, pelos impactos ambientais que decorrem de suas atividades.

Em uma Mesa Redonda realizada à margem da 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 2020, com a presença de líderes globais, o Secretário-geral da ONU António Guterres alertou que, se o mundo continuar no ritmo atual de emissões de carbono, será inimaginável a escala do sofrimento global devido a distúrbios climáticos1. Além disso, apelou aos países a considerar os riscos climáticos em todas as decisões financeiras e políticas tomadas.

A questão ambiental não é novidade. Desde o final da década de 90, a cada ano aumentam os esforços internacionais para o estabelecimento de políticas e ações para o controle das mudanças climáticas, especialmente as produzidas pelo homem em razão da emissão de carbono na atmosfera.

Todavia, adotando postura inédita, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou, em 2019, a Década das Nações Unidas para a Restauração dos Ecossistemas 2021-2030, por meio da resolução 73/284 de 1/3/2019, destacando a importância da regeneração do meio ambiente para o provimento de serviços dos ecossistemas, como o fornecimento de água, e os provenientes da biodiversidade, como a polinização. As agências internacionais que lideram a implementação dos objetivos da ONU estimam que a restauração de 350 milhões de hectares de terras degradadas pode gerar US$ 9 trilhões em renda de serviços globalmente2.

Neste passo, o Brasil pode e deve adotar postura de liderança nos debates relacionados à questão ambiental, já que em seu vasto território se encontram alguns dos biomas mais ricos do planeta, em condições de serem preservados ou explorados sustentavelmente.

Ocorre que, nos últimos anos, o Brasil tem perdido a credibilidade no debate das questões ambientais, inclusive sofrendo pressão em suas relações comerciais, em razão da degradação produzida dentro do seu território.

De acordo com o estudo realizado pelo IBGE3, no período de 2000 a 2018 os biomas brasileiros tiveram suas áreas naturais reduzidas em cerca de 500.000 km², o equivalente a duas vezes o tamanho do Estado de São Paulo. As maiores perdas absolutas ocorreram na Amazônia e no Cerrado, sendo 269.801 km² e 152.706 km², respectivamente.

Recentes posicionamentos de países membros da Organização Mundial do Comércio, sobretudo dos Estados Unidos4 e da União Europeia5, indicam a disposição em impor embargos, sanções econômicas e sobretarifas nos acordos comerciais realizados com o Brasil, em razão da inércia brasileira na questão ambiental.

A conduta brasileira foi também objeto de estudo realizado por pesquisadores das Universidades de Oxford, Louvain e Columbia, publicado em setembro de 20206, que propôs a rejeição dos termos do acordo comercial entre União Europeia e o Mercosul, ainda em tramitação no Parlamento Europeu, em razão da ausência de mecanismos de mitigação dos impactos ambientais provocados pelo comércio entre os blocos.

Esse é um exemplo de como a inação e a falha na efetiva implementação dos compromissos ambientais assumidos pelo Brasil acarretará prejuízos econômicos ao país. Isso sem levar em consideração os prejuízos inestimáveis provocados pelas mudanças climáticas e pela perda da biodiversidade da natureza.

Com o objetivo de colaborar com o debate acerca das medidas para proteção e preservação do meio ambiente nacional, e com a oportunidade trazida pela tramitação, no Congresso Nacional, dos projetos de lei para a reforma do sistema tributário brasileiro, este artigo trata sobre a relevância, pertinência e potencialidade da adoção de mecanismos do Direito Tributário como instrumentos transformadores da realidade ambiental brasileira, notadamente os impostos sobre propriedades imobiliárias.

2. A contribuição do ITR e do IPTU para a preservação do meio ambiente

A importância dos impostos sobre a propriedade imobiliária para a preservação ambiental e uso racional dos recursos naturais advém da função extrafiscal que, por opção do legislador brasileiro, é atribuída a esses tributos. Tanto o ITR quanto o IPTU apresentam em sua sistemática normativa a possibilidade de serem utilizados para a preservação de áreas de interesse ambiental, mediante a redução do valor das obrigações tributárias em contrapartida à manutenção das áreas naturais ou uso racional dos recursos pelos contribuintes.

Com efeito, indo além do aspecto arrecadatório típico da natureza dos impostos, o ITR e o IPTU possuem função extrafiscal que o legislador teve por bem alcançar com a tributação, que é a preservação ambiental, mediante as hipóteses de não incidência ou de redução das alíquotas desses impostos. O ITR e o IPTU podem servir assim como instrumento de incentivo à preservação das áreas importantes para o equilíbrio ambiental.

2.1 Relevância do ITR para o meio ambiente

O ITR foi concebido como um tributo com a finalidade extrafiscal de desestimular a manutenção de propriedades improdutivas, ou seja, propriedades que não cumprem sua função social. O pressuposto desta acepção é que a propriedade rural tem natureza de bem de produção, destinando-se à produção de outros bens ou de renda. Assume-se que a propriedade rural tem como utilidade natural a produção de bens necessários à sobrevivência humana.

Todavia, a função social da propriedade é um conceito amplo que abarca outros fatores além da exploração econômica. Ensina José Afonso da Silva (2014, pg. 833) que:

a produtividade é um elemento da função social da propriedade rural. Não basta, porém, ser produtiva para que ela seja tida como cumpridora do princípio. Se ela produz, mas de modo irracional, inadequado, descumprindo a legislação trabalhista em relação a seus trabalhadores, evidentemente que está longe de cumprir a sua função social.

A Constituição Federal declara em seu artigo 5º, inciso XXIII, que toda propriedade atenderá sua função social, exigindo-se da propriedade rural o atendimento, simultâneo, de cinco requisitos previstos no artigo 186, a saber: a) aproveitamento racional e adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Neste passo, se de um lado o ITR tem a função extrafiscal de desestimular a manutenção de propriedades improdutivas, por meio de suas alíquotas progressivas, de outro ele também serve à promoção e preservação do meio ambiente, já que incentiva o aumento da produtividade em propriedades rurais, em detrimento da abertura de novas áreas mediante desmate da vegetação nativa, bem como não incide sobre as áreas de interesse ambiental existentes no imóvel rural. O ITR consubstancia verdadeiro estímulo à existência e manutenção das áreas de importância ambiental.

A sistemática pensada no regime jurídico do ITR permite concluir que, além da finalidade extrafiscal de desestímulo às propriedades improdutivas, existe também a finalidade de estímulo à manutenção e preservação dos recursos naturais, tanto pelo incentivo à produtividade rural quanto pela isenção das áreas de relevância ao meio ambiente.

Como ensina Sacha Calmon (2020, pg. 372):

se a Constituição admite a expropriação (perda compulsória do direito de propriedade) mediante indenização em títulos da dívida agrária para que cumpra a propriedade a sua função social, que, no caso da propriedade agrária, é produzir e produzir bem no interesse da coletividade, é curial que o Estado possa elevar a tributação em níveis suficientemente insuportáveis de modo a estimular o proprietário rural a produzir adequadamente.

Tratando-se de incentivo a uma conduta ambientalmente positiva, referido raciocínio é aplicável também na justificativa não do aumento, mas sim da diminuição da carga tributária do ITR, em prol da manutenção das áreas de interesse ambiental, no atendimento dos requisitos constitucionais exigidos para o cumprimento da função social da propriedade agrária.

É o ITR, portanto, poderoso instrumento tributário para a consecução dos objetivos constitucionais de preservação do meio ambiente e incentivo do uso sustentável dos recursos naturais. Sua abrangência nacional, sob competência tributária da União, e a capilaridade de sua fiscalização e cobrança por meio dos Municípios, são características que potencializam sua aplicação e sua importância ambiental.

2.2 Relevância do IPTU para o meio ambiente

A potencialidade de utilização do IPTU como instrumento para o incentivo ao desenvolvimento socioeconômico advém da previsão de sua progressividade no tempo, para cumprimento da função social da propriedade, bem como da possibilidade de fixação de alíquotas diferenciadas de acordo com a localização e uso do bem, a permitir ao Poder Público local organizar e estimular a ocupação e uso do território urbano.

Isso na medida em que se reduz a carga tributária diante de fatos desejados pelo legislador, ao passo que se aumenta diante daqueles indesejados. As situações de relevante interesse social podem ser estimuladas pela variação da obrigação tributária imposta ao contribuinte, permitindo o seu desenvolvimento.

Nessa senda, não é mais possível pensar em desenvolvimento e progresso sem que se leve em conta o uso racional dos recursos naturais, a preservação da biodiversidade e o legado ambiental para as gerações vindouras.

O próprio constituinte originário, ainda em 1988, tratou de estabelecer no texto constitucional que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, considerando-o bem de uso comum do povo e essencial à vida, conforme seu artigo 225. E por duas vezes, tanto no artigo 23, inciso VI, como no artigo 225, caput, atribuiu aos entes federativos o dever de proteção do meio ambiente e de combate às atividades degradadoras.

Discorrendo sobre a competência dos Municípios para a defesa do meio ambiente e o combate à poluição, ensina Paulo de Bessa Antunes (2017, pg. 80) que:

o meio ambiente está incluído no conjunto de atribuições legislativas e administrativas municipais e, em realidade, os Municípios formam um elo fundamental na complexa cadeia de proteção ambiental. A importância dos Municípios é evidente por si mesma, pois as populações e as autoridades locais reúnem amplas condições de bem conhecer os problemas e mazelas ambientais de cada localidade, sendo certo que são as primeiras a localizar e identificar o problema.

O estímulo à preservação ambiental pelos Municípios, assim, é antes de tudo exercício do dever constitucionalmente imposto. E não apenas como reflexo do direito social, mas também como princípio geral da atividade econômica, incluído no artigo 170, inciso VI, da Constituição Federal, por força da EC 42/03.

É nesse sentido que se manifesta a função extrafiscal ambiental do IPTU, vez que seu regramento jurídico permite o estímulo à preservação das áreas de interesse ambiental existentes nos imóveis urbanos, bem como nas zonas urbanizáveis e de expansão urbana, por meio da redução das alíquotas do tributo.

Afinal o estabelecimento de isenções do IPTU é compreendido no âmbito da competência tributária atribuída pela Constituição Federal aos Municípios e ao Distrito Federal, sendo possível a cada ente estabelecer as hipóteses de não incidência do imposto de acordo com as necessidades e caraterísticas ambientais de cada cidade. Isso não só como fruto de escolha de política fiscal, mas sobretudo como esforço para a consecução dos deveres constitucionais de proteção do meio ambiente e promoção do desenvolvimento econômico sustentável.

De acordo com dados e projeções da ONU7, em 2018 havia 182.546.000 pessoas morando nas cidades brasileiras; em 2050, esse número será de 215.063.000 pessoas. Ou seja, as cidades brasileiras receberão acréscimo de mais de 32 milhões de habitantes em somente 30 anos.

Logo, inevitável a ocorrência do fenômeno de expansão das fronteiras urbanas e o avanço sobre as áreas de interesse ecológico. É sobretudo nas áreas urbanizáveis e de expansão urbana, conforme o Plano Diretor de cada Município, que se encontram as áreas florestais que podem ser poupadas da degradação ambiental, tal como se verifica nas zonas já urbanizadas. Assim se manifestam a extrema importância do planejamento urbanístico e da utilização do mecanismo de incentivo fiscal do IPTU, para estimular a preservação ambiental e permitir o crescimento sustentável das cidades atuais e do futuro.

5. Conclusão

O debate acerca da questão ambiental é realizado em escala global, e a cada ano ganha importância em virtude da constatação das mudanças climáticas produzidas pelas atividades do homem. A degradação ambiental é preocupante para o futuro socioeconômico das nações, de forma que aumenta a pressão da comunidade internacional para que os países adotem medidas de contenção e reparação dos danos ambientais, além de preservação dos ecossistemas ainda intactos.

Nesse sentido, cabe ao Brasil adotar medidas eficientes, de curto, médio e longo prazo, capazes de reduzir o ritmo da degradação dos seus biomas e preservar as áreas importantes para a biodiversidade e manutenção dos ecossistemas.

Dentre essas medidas, capazes de auxiliar na tarefa de proteção e preservação das coberturas florestais brasileiras, verifica-se que a tributação das propriedades rurais e urbanas, por meio do ITR e do IPTU, apresenta mecanismos importantes para o alcance dos objetivos ambientais almejados.

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1 "Não há tempo a perder", ONU renova apelo sobre urgência climática. ONU News. Reportagem de 24 de setembro de 2020. Acesso em: 17 de dezembro de 2020.
2 New UN Decade on Ecosystem Restoration offers unparalleled opportunity for job creation, food security and addressing climate changeReportagem de 1º de Março de 2019. Acesso em: 17 de dezembro de 2020.
3 Contas de ecossistemas: o uso da terra nos biomas brasileiros: 2000-2018 / IBGE, Coordenação de Recursos Naturais e Estudos Ambientais, Coordenação de Contas Nacionais. Rio de Janeiro. Editora IBGE. Ano 2020. Acesso em: 17 de dezembro de 2020. 
4 Brazil's Bolsonaro slams Biden for 'coward threats' over Amazon. Reuters. Reportagem de 30 de setembro de 2020. Acesso em: 17 de dezembro de 2020.
5 Pressão política do G7 impõe 'risco real' de implosão do acordo entre Mercosul e UE. BBC Brasil. Reportagem de 23 de agosto de 2019. Acesso em: 17 de dezembro de 2020.
6 Inclusion, Transparency, and Enforcement: How the EU-Mercosur Trade Agreement Fails the Sustainability Test. Laura Kehoe and others. On Earth 3. 18.09.2020. Celpress. Acesso em: 17 de dezembro de 2020.
7 Estatísticas sobre perspectivas de urbanização globaisWorld Urbanization Prospects 2018. Department of Economics and Social Affairs, Population Dynamics. Acesso em: 17 de dezembro de 2020.

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ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2017. Pg. 80.
CARNEIRO, Claudio. Impostos federais, estaduais e municipais. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 17ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

 

Daniel Henrique Zanichelli
Mestrando em Função Social do Direito pela FADISP. Pós Graduado Lato Sensu em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas. Pós Graduado Lato Sensu em Direito Processual Civil pela PUC/SP.Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Renan Camilo Passos
Escrevente Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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