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APP de restinga em faixa mínima de 300m contados da linha de preamar máxima: A revogação que nunca ocorreu

Muito já foi debatido sobre a deliberação do Conama pela revogação de sua resolução 303/02 mas algumas questões formais envolvendo essa problemática merecem maior atenção.

29/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

Em 28 de setembro de 2020, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), em sua 135ª Reunião Ordinária, “declarou a revogação” de sua resolução 303, de 20 de março de 2002 (doravante referida apenas como “Conama 303”), dando ensejo a um amplo debate acerca da proteção dos ecossistemas de restinga, haja vista que a alínea “a)” do inciso IX do art. 3º da r. resolução constitui o único suporte físico da norma que protege, como Área de Preservação Permanente, a faixa do litoral brasileiro de trezentos metros contados, terra adentro, a partir da linha de preamar máxima, independentemente da efetiva existência de vegetação de restinga em determinado ponto dessa região.

O presente trabalho avalia o fundamento jurídico alegado pelo Conama para motivar a r. deliberação, avaliando sua validade de acordo com entendimentos já manifestados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pela doutrina do direito administrativo.

2. Da proteção jurídica ambiental da faixa de trezentos metros medidos a partir da linha de preamar máxima

Foi a resolução Conama 004, de 18 de setembro de 1985, que, sob a égide do Código Florestal de 1965, introduziu, no direito brasileiro, a faixa mínima de trezentos metros, a contar da linha de preamar máxima, como critério para definição de regiões sujeitas a proteção ambiental, definindo, como Reservas Ecológicas, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas nessa faixa (art. 3º, VII).

Essa resolução foi posteriormente revogada pela Conama 303, que elevou a faixa mínima de trezentos metros contados da linha de preamar máxima ao status de Área de Proteção Permanente (APP), tornando prescindível, assim, a efetiva existência de vegetação para garantir a proteção ambiental da região1, o que permitiu a atuação de órgãos ambientais, da sociedade civil organizada e do Ministério Público em busca da recomposição do ecossistema de restinga nos vários pontos da costa brasileira em que a vegetação nativa fora irregularmente suprimida, notadamente, por construções irregulares à beira-mar.

3. Da alegada motivação da deliberação do Conama de 28/9/20

Os fatos e fundamentos jurídicos que subsidiaram a deliberação do Conama de 28/9/20, no que é afeto à problemática abordada no presente trabalho, constam do item 33 do parecer 59/20, da Consultoria Jurídica do Ministério do Meio Ambiente (Conjur/MMA)2.

Em apertada síntese, a Conjur/MMA manifestou o entendimento de que, apesar de a Conama 303 ter encontrado suporte legal no Código Florestal de 1965, tal sustentação teria sido perdida com a publicação do Código Florestal de 2012, uma vez que, no código mais recente, a definição de APPs administrativas deixou de ser competência do “Poder Público” (conceito que incluiria o Conama) e passou a ser competência do “Chefe do Poder Executivo” (conceito que não incluiria o Conama):

33.3. Ou seja, a presente hipótese não pode ser mantida, posto que editada pelo sujeito incompetente - o CONAMA. Sob a égide do revogado Código Florestal, a hipótese tinha guarida porque o CONAMA era subsumido como "Poder Público" (art. 3º). A lei 12.651/12, foi categórica em exigir que o novo ato seja editado pelo Chefe do Poder Executivo. Houve retirada, portanto, da competência para edição deste ponto do ato pelo CONAMA.

33.4. No ponto, tratando-se de um ato normativo secundário destituído de um ato primário que o sustente, este passa a inovar o ordenamento jurídico por si, o que é vedado pela Constituição (CRFB/88, artigos 1º; 2º, 37, caput; 68 e 84, IV e VI).  

33.4. Deve este trecho do ato, portanto, ser expurgado do ordenamento jurídico.

Dentro do esforço para simplificação do arcabouço regulatório brasileiro promovido pelo decreto 10.139 de 28 de novembro de 2019 (vulgo “revisaço”), o Conama resolveu então “declarar a revogação” da Conama 303, conforme redação adotada em sua resolução 500, de 19 de outubro de 2020, que se encontra com efeitos suspensos em razão de tutelas provisórias adotadas pela Ministra Rosa Weber (já referendadas, por unanimidade, pelo Pleno do STF) no âmbito das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 7473, 7484 e 7495.

4. Da incompatibilidade da decisão do Conama de 28/9/20 com a jurisprudência do STJ

Foi ao apreciar o REsp 1.544.928/SC que o STJ abordou a validade da Conama 303 pela última vez.

Trata-se de demanda do Ministério Público Federal contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que, apesar de ter reconhecido a validade da Conama 303 e sua aplicação ao caso concreto de modo a assegurar o reconhecimento de uma determinada área do litoral catarinense como APP, não reconheceu o dever de indenizar do poluidor em questão.

A par da discussão envolvendo a existência de dano in re ipsa pela mera violação de APP constituir a questão central do recurso especial, a devolução da demanda ao STJ fez com que a corte responsável por dar uniformidade à interpretação das leis federais debatesse outras questões de direito, inclusive a validade da Conama 303 após a edição do Código Florestal de 2012.

Quanto a isso, o voto-condutor, da lavra do ministro Herman Benjamin, que foi seguido por unanimidade, retoma julgados da primeira e da segunda turma daquela corte que confirmaram a existência de autorização legal apta a habilitar o Conama a editar regulamentos ambientais6 para declarar expressamente que a Conama 303 constitui “texto normativo recepcionado pelo regime do Código Florestal de 2012”.

Outros julgados do STJ não mencionados no r. voto dão suporte a esse entendimento. É o caso Recurso em Mandado de Segurança 14.219/PR7, no qual ficou decidido que:

A revogação expressa de uma lei nova, nem sempre acarreta a derrogação do regulamento. Se os dispositivos do regulamento são compatíveis com os novos preceitos, o regulamento é recebido pelo diploma superveniente

E do Habeas Corpus 108.190/SP8, cuja ementa veicula, dentre outros, o entendimento que:

[...] A revogação de uma lei por outra que vem disciplinar a mesma matéria não implica na revogação automática do decreto que a regulamentava, o qual é eficaz para reger as relações que são objeto do aludido diploma revogador até o advento do novo decreto.

Com fundamento nesses julgados, Rafael Martins Costa Moreira9 enfrentou especificamente o fundamento alegado pela Conjur/MMA afirmando que:

A incompetência superveniente do órgão que editou a resolução, a nosso ver, não acarreta automática ilegalidade dessa resolução. Por se tratar apenas de incompatibilidade formal com o novo quadro legal, o ato pode ser recepcionado pela nova lei, tal como ocorreu, v.g., com os "decretos-leis" recepcionados como lei ordinária ou lei complementar pela CF/88. E não seria razoável imaginar outro cenário, pois, do contrário, a alteração legislativa poderia conduzir a um estado desproporcional e lesivo de "vácuo regulamentar", sobretudo em matéria de grande complexidade e dinamicidade como o direito ambiental.

Parece correto esse entendimento. Justamente por se tratar de uma incompatibilidade meramente formal, deve ser aplicada a teoria do ato jurídico perfeito, não importando à análise de validade do ato administrativo normativo se a autoridade que o editou era competente no momento da análise, mas sim se o era no momento da prática do ato.

A mera perda de competência para edição do ato administrativo normativo não pode ser utilizada como fundamento para se declarar a revogação tácita do regulamento, mormente quando tal entendimento ocasiona um vácuo regulamentar; afinal, além dos bem mencionados decretos-leis, convivemos com uma série de regulamentos editados por chefes de repartições públicas que nem mais existem e que são essenciais à segurança jurídica das relações sociais.

O rigor formal proposto pela Conjur/MMA coloca em xeque a própria competência do Conama para “expurgar” a Conama 303 do ordenamento jurídico, conforme se almejou com a resolução 500/20, pois quem tem competência para revogar o ato administrativo é (i) aquele a quem compete a prática do ato, (ii) uma autoridade superior a esta ou (iii) outra autoridade com competência expressa para tanto10.

É dizer: se se entender que o Conama não detém mais competência material para deliberar sobre a criação de APPs administrativas, também deve-se entender que a revogação da Conama 303 também não compete ao Conama. Nessa hipótese, a resolução Conama 500/20 veicularia uma mera opinião daquele Conselho, permanecendo a alínea “a)” do inciso IX do art. 3º da Conama 303 vigente até que seja propriamente revogada pelo Presidente da República.

A par das questões constitucionais que envolvem a matéria, Rafael Martins Costa Moreira faz a seguinte reflexão sobre a solução do impasse instaurado:

Se efetivamente for reconhecido que a Resolução 303 não foi totalmente revogada pelo novo Código Florestal, questiona-se: essa revogação pelo Conama pode ser invalidada pelo Judiciário? Entendemos que sim. Do Conama, como qualquer ente público, exige-se motivação [...] para emissão de atos, inclusive revocatórios de outros. Motivação que deve ser explícita, clara, veraz, congruente e suficiente, inclusive mediante demonstração de que atende a critérios de sustentabilidade, racionalidade intertemporal e justiça intergeracional [...]. Se o motivo alegado (revogação da resolução pela Lei 12.651/12) não subsiste, a motivação é viciada e o ato (ou seja, a revogação da resolução) é nulo. Invalidade que inclusive deve ser decretada com apoio na teoria dos motivos determinantes.

Com efeito, a lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, dispõe que:

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

[...]

VI - decorram de reexame de ofício;

VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;

VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.

§ 1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.

Desse modo, seja por afetar direitos ou interesses sociais, por decorrer de reexame de ofício, por deixar de aplicar a jurisprudência do STJ sobre a recepção da Conama 303 pelo Código Florestal de 2012 ou por importar em revogação de ato administrativo, a motivação constitui requisito de validade da r. deliberação do Conama, devendo, portanto, ser declarada nula, conforme teoria dos motivos determinantes11, uma vez que o fundamento jurídico alegado se mostra patentemente insubsistente.

Finalmente, é interessante pontuar que toda a cautela alegada acerca de possível incompetência do Conama se torna pouco justificável quando se considera que, se o Congresso Nacional entendesse que o Conama abusou de seu poder normativo ao editar a r. resolução ou mesmo ao mantê-la vigente após a entrada em vigor do Código Florestal de 2012, bastaria fazer uso do art. 49, V, da Constituição Federal para sustá-la. Afinal, se, de um lado, o Congresso Nacional concedeu ao Conama competência para editar regramentos sobre determinadas matérias, de outro, remanesce inabalada sua prerrogativa constitucional de sustar esses atos quando eles exorbitarem do poder regulamentar. Nesse sentido:

O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua contra legem ou praeter legem, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, V, da Constituição da República e que lhe permite "sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (...)". Doutrina. Precedentes (RE 318.873 AgR/SC, rel. min. Celso de Mello, v.g.). Plausibilidade jurídica da impugnação à validade constitucional da Instrução Normativa STN 1/2005. (AC 1.033 AgR-QO, Rel. min. Celso de Mello, DJ de 16/6/06)

5. Conclusão

A par da abordagem constitucional devida, a tese adotada pelo Conama para “declarar a revogação” da Conama 303 é incompatível com a jurisprudência do STJ sobre a recepção de regulamento por lei nova e com o entendimento expressamente manifestado no julgamento do Recurso Especial nº 1.544.928-SC, podendo ainda ser considerada incoerente porquanto deslegitima o próprio Conama para proceder com a aludida revogação. Tal deliberação é, portanto, incapaz de produzir efeitos práticos, seja por ter uma motivação insubsistente (o que a torna nula), seja por ter sido praticada por autoridade incompetente para promover a revogação.

_________

1 Tanto o Código Florestal de 1965 quanto o de 2012 estabelecem as APPs como áreas a serem protegidas independentemente de efetiva cobertura por vegetação nativa.

2 Clique aqui. Acesso em 15 out. 2020.

3 Clique aqui. Acesso em 22 nov. 2020.

4 Clique aqui. Acesso em 22 nov. 2020.

5 Clique aqui. Acesso em 22 nov. 2020.

6 REsp 1.462.208/SC, rel. ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de 6/4/15 e REsp 994.881/SC, rel. ministro Benedito Gonçalves, 1ª turma, DJe de 9/9/09

7 RMS 14.219/PR, rel. ministro Humberto Gomes de Barros, 1ª turma, DJe de 24/6/02.

8 HC 108.190/SP, rel. ministro Jorge Mussi, 5ª turma, DJe de 8/9/09.

9 A proteção das APPs e os limites da desregulação nas revogações do Conama. Revista Consultor Jurídico. Acesso em: 15 out. 2020.

10 De acordo com Miguel Reale (Revogação e anulamento do ato administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 37), “só quem pratica o ato, ou quem tenha poderes, implícitos ou explícitos, para dele conhecer de ofício ou por via de recurso, tem competência legal para revogá-lo por motivos de oportunidade ou conveniência, competência essa intransferível, a não ser por força de lei, e insuscetível de ser contrasteada em seu exercício por outra autoridade administrativa”. Já para Sílvio Luís Ferreira da Rocha (Manual de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2013, p. 334), “o agente da revogação pode ser quem produziu o ato ou autoridade superior no exercício do poder hierárquico, ou, ainda, quem não integra a pessoa jurídica da qual emanou o ato, mas a quem a lei confira, fora da linha hierárquica, competência revogatória”.

11 De acordo com José dos Santos Carvalho Filho (Manual de Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 119), “mesmo que um ato administrativo seja discricionário, não exigindo, portanto, expressa motivação, esta, se existir, passa a vincular o agente aos termos em que foi mencionada. Se o interessado comprovar que inexiste a realidade fática mencionada no ato como determinante da vontade, estará ele irremediavelmente inquinado de vicio de legalidade”.

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BRASIL. Advocacia-Geral da União. Parecer n. 00059/2020/CONJUR-MMA/CGU/AGU. Disponível clicando aqui. Acesso em 15 out. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 108.190/SP. Disponível clicando aqui. Acesso em 15 out. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.544.928/SC. Disponível clicando aqui. Acesso em 15 out. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.462.208/SC. Disponível clicando aqui. Acesso em 15 out. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 994.881/SC. Disponível clicando aqui. Acesso em 15 out. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança nº 14.219/PR. Disponível clicando aqui. Acesso em 15 out. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 747. Disponível clicando aqui. Acesso em 22 nov. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 748. Disponível clicando aqui. Acesso em 22 nov. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 749. Disponível clicando aqui. Acesso em 22 nov. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem em Agravo Regimental na Ação Cautelar nº 1.033-1/DF. Disponível clicando aqui. Acesso em 22 nov. 2020.

CARVALHO FILHO, J.S. Manual de Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2015.

MOREIRA, R. M. C. A proteção das APPs e os limites da desregulação nas revogações do Conama. Revista Consultor Jurídico. Acesso em: 15 out. 2020.

REALE, M. Revogação e anulamento do ato administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1980.

ROCHA, S. L. F. R. Manual de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2013.

Igor Luna Moura
MBA em Regulação de Serviços Públicos pela FGV/RJ. Bacharel em Direito e em Oceanografia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Ex-analista Ambiental da Diretoria de Licenciamento do Ibama. Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Aquaviários.

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