Migalhas de Peso

A autonomia dos municípios para a compra de vacinas da covid-19 independente do ministério da Saúde

Da autonomia dos municípios para a compra e fornecimento de vacinas contra a covid-19 independentemente do plano nacional de imunização do ministério da Saúde.

27/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Sabemos que os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), previstos constitucionalmente, constituem as bases e as ferramentas para o funcionamento e organização do sistema de saúde em nosso país, afirmando direitos conquistados historicamente pelo povo brasileiro e o formato democrático, humanista e federalista que deve caracterizar sua materialização e concretização do Sistema Nacional de Saúde do Brasil.1

Com efeito, inobstante tais ferramentas e diretrizes – instrumentos de comandos para o gestor público – a pandemia do novo coronavírus nos trouxe uma lição prática sobre o modelo ineficiente de gestão pública para com a saúde da população em geral.

Por mais que o Governo Federal tenha vontade em aderir a imunização da covid-19 em nível nacional e de forma tempestiva, restou corroborado que a pandemia desencadeada pelo novo coronavírus, em menos de um ano, infectou e vitimou fatalmente mais de duzentas mil pessoas no país, revelando, dentre outras coisas, as fraquezas e virtudes de nossa forma de governança, em especial do sistema público responsável por assegurar os direitos fundamentais à vida e à saúde contemplados nos arts. 5°, 6° e 196 da Constituição Federal.2

Fato é que, na prática, a União, através do ministério da saúde, necessariamente, precisa de uma ação coordenada com os demais entes da federação – Estados, Municípios e Distrito Federal – para concretizar da forma mais eficiente possível os comandos principiológicos do sistema nacional de saúde previstos no art. 196 e seguintes da Constituição da República.

É nesse contexto, amplificado pela magnitude da pandemia decorrente da covid-19, que se exige, mais do que nunca, uma atuação fortemente proativa dos agentes públicos de todos os níveis governamentais, sobretudo mediante a implementação de programas universais de vacinação, pois, como adverte o professor José Afonso da Silva, da Universidade de São Paulo, "o direito é garantido por aquelas políticas indicadas, que hão de ser estabelecidas, sob pena de omissão inconstitucional."3

Com base nestas premissas, foi que o Supremo Tribunal Federal na ADPF 770, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, em 17.12.2020, concedeu medida liminar para autorizar os Municípios a importar e distribuir vacinas aprovadas em caráter emergencial pela ANVISA, nos termos da resolução DC/ANVISA 444, de 10/12/2020.

Nesta decisão, restou assentado que caso a UNIÃO não cumpra o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19, ou que este não forneça cobertura imunológica a tempo e em quantidades suficientes, os entes da federação – incluindo os Municípios - poderão imunizar a população com as vacinas de que dispuserem.

Nas palavras do ministro relator:

"No âmbito dessa autonomia insere-se, inclusive, a importação e distribuição, em caráter excepcional e temporário, por autoridades dos Estados, Distrito Federal e Municípios, de "quaisquer materiais, medicamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus", observadas as condições do art. 3°, VIII, a, e § 7°-A, da lei 13.979/2020, alterada pela lei 14.006/2020.

Como se vê, a própria lei 13.979/2020, nos precitados dispositivos, encaminha uma solução para a questão, ao assinalar que as "autoridades" - sem fazer qualquer distinção entre os diversos níveis político administrativos da federação – poderão lançar mão do uso de medicamentos e insumos na área de saúde sem registro na Anvisa.

Isso posto, com fundamento nas razões acima expendidas, defiro em parte a cautelar, ad referendum do Plenário do Supremo Tribunal Federal, para assentar que os Estados, Distrito Federal e Municípios (i) no caso de descumprimento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, recentemente tornado público pela União, ou na hipótese de que este não proveja cobertura imunológica tempestiva e suficiente contra a doença, poderão dispensar às respectivas populações as vacinas das quais disponham, previamente aprovadas pela Anvisa..."

(grifos nossos)

Com efeito, foi visto que na data de 17.01.2020, a Anvisa aprovou em caráter emergencial o uso de duas vacinas em território brasileiro, quais sejam: Coronavac do Instituto Butantan e o imunizante da AstraZeneca – desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com a Fiocruz.4

Portanto, já existe registro do medicamento na nossa agência de regulação nacional de saúde.

Ressalte-se, assim, que não se está tratando, aqui, de vacinas experimentais, desprovidas de comprovação científica a respeito da sua eficácia, mas sim da permissão de fornecimento de vacinas que já concluíram todas as etapas, que já foram aprovadas e registradas em órgãos de controle estrangeiros reconhecidos por sua especialidade técnica e com aprovação de uso emergencial na Anvisa no Brasil.

Assim, diante de tais circunstâncias práticas, estas agravadas pela situação de calamidade vivenciada por Manaus e por recentes decisões manipulativas do Supremo Tribunal Federal, foi que o Ministério da Saúde (MS), apresentou o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19 - como medida adicional de resposta ao enfrentamento da doença, tida como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), mediante ações de vacinação nos três níveis de gestão.5

Entretanto, fato é que será questão de tempo corroborar que, infelizmente – não por questões políticas do governo, mas sim por logísticas e burocráticas práticas de governança - o plano nacional de imunização não dará conta de abarcar eficientemente e tempestivamente todos os 5.568 municípios do país, pois a descentralização e o plano de logística em nível nacional em um país intercontinental como o Brasil requer tempo, algo que, infelizmente, pelo momento que estamos passando, não podemos esperar.

Assim, em havendo morosidade na logística de entrega das vacinas em todo território nacional de forma tempestiva e de acordo com as particularidades de cada ente federativo, surge para os municípios o direito/dever de aquisição de tais vacinas diretamente ao Instituto Butantan, a Fiocruz ou de entes internacionais responsáveis pelos insumos de tais vacinas, não só em observância ao decidido na ADPF 770/DF, mas também em homenagem ao pacto federativo, bem como aos comandos do art. 197 e seguintes da Carta de 1988.

Aliás, sobre a operacionalização da compra das vacinas e demais insumos de tais entes públicos, foi publicada em 6/1/2021, a MP 1.026/2021, que prevê medidas excepcionais necessárias para a aquisição de vacinas, insumos, bens e serviços destinados à vacinação contra a covid-19.

Em linhas gerais, a respectiva MP 1.026/21 facilita a compra de vacinas, insumos e outros artigos necessários para a vacinação contra a covid-19, com dispensa de licitação e regras mais flexíveis para os contratos.

Dessa forma, autorizado o uso de vacinas em caráter de urgência – como já foi -, possível os municípios de forma proativa e eficiente providenciar tais insumos, para que – em eventual compra de vacinas – possa ter materiais suficiente disponíveis para a população dos seus municípios.

Nesse sentido, resta possível em caráter excepcional – na hipótese do plano nacional de imunização não proveja cobertura imunológica tempestiva e suficiente contra a doença - que os municípios, dentro da conveniência e oportunidade, de forma independentemente do plano nacional de imunização do governo federal, possa adquirir o fornecimento de vacinas contra a covid-19 – Coronavac ou de Oxford – pois já liberadas pela ANVISA, considerando a urgência humanitária na prevenção a novas ondas de coronavírus, bem como ao que restou consignado na decisão da ADPF 770/DF.

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Vamário Soares Wanderley de Souza Brederodes
Advogado, membro da OAB Pernambuco e da Anacrim de Pernambuco, especialista em Direito Administrativo e Penal, autor do enunciado 16 da I Jornada de Processo Penal do Conselho da Justiça Federal, atuante nos Tribunais Superiores, escritor e recentemente aprovado no Concurso da Magistratura do Estado do Piauí.

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