O tema da prova não é novo e certamente ultrapassa os quadros da ciência jurídica – ou mais especificamente da teoria da decisão, tema central deste breve trabalho –, a medida que, a todo momento, o cientista ou estudioso precisa colher evidências para “provar” sua hipótese.
Nesse ponto, parafraseando Ferrer Beltrán1, ainda que exista vasta produção sobre o tema da prova, os teóricos do processo, em sua maioria, dedicaram-se à perspectiva normativa, ou seja, à sistematização dos conceitos de prova e suas consequências em cada sistema jurídico.
Entretanto, a fundamentação da decisão, sob o ponto de vista normativo, com exteriorização das premissas jurídicas valoradas pelo julgador, ainda se mostra insuficiente, mormente quando o sistema não é dotado de uma teoria estruturada sobre o juízo fático. Ou seja, pouco adianta a adequada aplicação da norma, se o sistema não é capaz de padronizar graus de suficiência para considerar como evidenciadas determinadas hipóteses fáticas.
Sem pretensão de defender a retomada do método moderno de origem iluminista, que reduzia, como anotado Baltazar2, o raciocínio judicial à mera subsunção (silogismo), a construção de uma teoria adequada de standards de prova, por outro lado, objetiva afastar, de pronto, a possibilidade de verdade ser aquilo que o julgador, baseado unicamente em sua íntima convicção, escolher como tal.
Mas antes, é preciso perquirir o ideal contemporâneo de verdade buscado na atual quadra do processo penal acusatório.
Segue aquecido, tanto entre os teóricos quanto entre os práticos, o questionamento se a busca da verdade (e qual verdade) é um fim do processo acusatório. Entretanto, em razão de sua limitação, este estudo não pretende estabelecer nenhuma definição do que seja verdade, questionamento estranho ao processo penal, mas tão caro às ciências filosófica e epistemológica.
De início, cumpre advertir que este trabalho parte da premissa teórica da inalcançabilidade da certeza racional sobre determinada hipótese fática. Se nem mesmo a natureza é capaz de alcançar a verdade absoluta, quiçá o processo penal, que encontra, por sua estrutura dogmática, significativas limitações.
Por isso, é no mínimo ingênuo exigir que a verdade alcançada pelo processo acusatório corresponda inteiramente à realidade, razão a qual, na visão de Orlando Faccini Neto e Maurício Ramires3, a noção de verdade real está fulcrada em pilares epistemológicos obsoletos. Essa é também a crítica de Lênio Streck4 à ficção da ideia de verdade real.
Ora, se o processo acusatório nasce da reconstrução de fatos passados – e, como dito por Dallagnol5, o fato pretérito não é passível de ser congelado no tempo e transportado à realidade processual posta sob julgamento –, a hipótese a ser confirmada, seja da acusação ou da defesa, refletirá, no máximo, um juízo de verossimilhança, pois, em razão da falibilidade humana, o raciocínio probatório realizado pelo julgador é sempre calcado em probabilidades.
Não se quer com isso, nem de longe, defender a ideia de que o processo penal não se preocupa com a reconstrução fática adequada ou com a verdade correspondente. Ao contrário, o processo acusatório democrático deve pautar-se, a rigor, em pressupostos epistemológicos verdadeiros, a fim de conter as inevitáveis injustiças decorrentes da falibilidade humana.
E é nessa toada que se propõe que, para o julgador ter como verdadeira determinada proposição fática, imperioso que o faça assentado em uma teoria racional da prova, não bastando, para tanto, sua crença ou convicção pessoal. Até porque, como bem anotado por Gustavo Badaró6, o convencimento subjetivo do julgador pode até ser necessário, mas não suficiente.
Portanto, se a crença pessoal do magistrado, ainda que forte, sobre determinada hipótese fática não basta – porque interna – emerge a necessidade de construção de um modelo objetivo, pautado em critérios controláveis, para que o julgador, por meio de uma valoração racional, tenha determinado enunciado fático como (provavelmente) verdadeiro. É nesse terreno, de propiciar o controle intersubjetivo do raciocínio fático-probatório do julgador, que ganha destaque a teoria de standards de prova.
Standards de prova são modelos de constatação, na terminologia de Knijnik7, capazes de nortear o raciocínio do julgador na apreciação dos enunciados fáticos. Em outros termos, a padronização de critérios objetivos a serem enfrentadas pelo magistrado para que se tenha determinada hipótese como evidenciada é o que pretende a ciência racional da prova. Ou seja, atingido o grau de standard necessário – que deve ter apoio em uma decisão de política criminal e numa teoria racional, e não na crença exclusiva do julgador – dá-se por provada a hipótese.
Nesse ponto, voltando à premissa de que a certeza sobre os enunciados fáticos é inalcançável, o resultado possível do processo acusatório é, no máximo, a conclusão de que a hipótese acusatória desincumbiu do grau de suficiência probatório necessário e, portanto, é mais provável que a tese defensiva.
Porém, eleger o quantum de suporte probatório é suficiente para uma condenação criminal, uma decisão de pronúncia ou mesmo a concessão de medidas cautelares investigativas, tais como expedições de mandados de busca e apreensão, interceptações telefônicas, quebras telemáticas/fiscais/bancárias, é matéria a ser decidida pelo Direito, e não pelo julgador, sob pena deste se valer de considerável espectro de discricionariedade, não controlável pelas partes.
Em solo brasileiro, embora não seja difícil asseverar que, em caso de dúvida, o réu deva ser absolvido, o sistema não atesta, por outro lado, o grau necessário para derrotar a presunção de inocência. Pelo contrário, o art. 155, do CPP faz referência à “livre apreciação da prova”, expressão que padece de intensa dose de subjetivismo, a exemplo da “íntima convicção”, largamente utilizada na prática jurisprudencial nacional.
Definido esse estado da arte, a ideia racionalizada da prova pretende evitar a possibilidade que, ante um mesmo arcabouço fático e probatório, dois julgadores alcancem resultados probatórios diversos, ainda que cada um possua sua própria crença pessoal.
O estabelecimento de padrões mínimos de conformação para evidenciar determinada hipótese não é questão exclusiva da ciência processual. Nesse ponto, cite-se o exemplo de Nardelli e Mascarenhas8, em artigo sobre o tema publicado na Revista del Instituto Colombiano de Derecho Procesal, sobre o que acontece em uma pesquisa farmacêutica para considerar a eficácia de determinado fármaco. Nesses casos, a decisão sobre a segurança do medicamento, por envolver potencial dano à saúde coletiva, é sujeita a rígidos critérios (standards), estipulados pela comunidade científica. Complementam as autoras que, no processo penal, do mesmo modo, em razão do bem jurídico afetado, aliado à escolha política e moral de que é preferível absolver um culpado a condenar um inocente, o devido processo legal deve se agarrar em alguns axiomas, como o da presunção de inocência, mas também dos standards probatórios.
Feitas essas considerações, ainda cumpre advertir acerca da dificuldade na estipulação de critérios de valoração da prova eminentemente objetivos. Veja-se que nem mesmo a experiência norte-americana – uma das pioneiras na consagração de, pelo menos, três dos mais consagrados standards probatórios (evidence beyond a reasonable doubt, para casos criminais; preponderance of evidence, para casos cíveis e clear and convincing evidence, para casos cíveis em que se está em jogo liberdades individuais mais caras) – está imune a críticas. Limitar-se-á ao primeiro deles, no intuito de observar o recorte temático deste estudo.
Ainda que seja utilizado em diversos países fora do solo americano (a exemplo de Chile e Itália, além de possuir regramento específico no Tribunal Penal Internacional9), o parâmetro de evidence beyond a reasonable doubt tem sido alvo de severas críticas por estudiosos (a exemplo de Gustavo Badaró10 e Nardelli e Mascarenhas11), que não acreditam que o standard seja capaz de superar os problemas de outrora, decorrentes da íntima e subjetiva convicção do julgador.
A despeito das críticas – que são compartilhadas por este breve estudo –, o standard para “além da dúvida razoável” tem sido, não raro, aplicado pelas cortes brasileiras, como se viu no significativo case do Mensalão12.
Teme-se que, no objetivo de estruturar o controle sob o juízo fático, a importação do standard, sem o desenvolvimento de uma teoria racional probatória, por sua vagueza terminológica, transmude-se em mero elemento retórico para justificar a narrativa subjetiva do julgador13.
Se por um lado, pressupõe-se que a noção de verdade real está construída em pilares epistemológicos obsoletos, mais grave é permitir que o juízo fático seja lastreado unicamente na livre e íntima convicção do julgador.
E é nessa quadra, no intento de cortar esse amplo espectro de discricionariedade posto à disposição do julgador na apreciação fática, que se levantou a necessidade de construção de uma teoria criteriosa do raciocínio probatório, ou seja, um modelo intersubjetivamente controlável, que seja capaz de estabelecer o necessário grau de corroboração – standards – para considerar como provada determinada hipótese fática.
Conclui-se que o processo acusatório brasileiro não possui um modelo de constatação para confirmação da hipótese acusatória. Ao passo em que, por decisão política, optou-se pelo axioma de que a dúvida deva recair em favor do acusado, por outro lado, o sistema não foi capaz de asseverar o grau necessário de prova para derrotar a máxima da presunção de inocência.
A superação do atual subjetivismo decorrente do modelo de “livre” apreciação da prova pela implementação de parâmetros racionais e controláveis do juízo fático é passo fundamental para construção de um processo penal democrático e legítimo.
Ainda assim, a mera importação de standards, ainda que consagrados internacionalmente, a exemplo da prova “para além da dúvida razoável”, por sua falta de precisão conceitual, não tem sido capaz de superar os problemas decorrentes da íntima e subjetiva convicção do julgador. Sem reforma legislativa nem construção de uma teoria racional adequada, a expressão – por si só, por não ser autoexplicativa –, sofre o risco de se transformar em mero discurso retórico para legitimar a decisão prolatada no case criminal.
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1- FERRER BELTRÁN, Jordi. (Trad. RAMOS, Vitor P.). Prova e verdade no Direito. Col. o Novo Processo Civil. (Coords. MARINONI, Luiz G.; ARENHART, Sérgio C.; MITIDIERO, Daniel). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p 3.
2- BALTAZAR JR., José Paulo. Standards probatórios no processo penal. Revista AJUFERGS, v. 4, p. 161-185, 2007.
3- FACCINI NETO, Orlando; RAMIRES, Maurício. Refutando a indiferença do ceticismo: a estrutura narrativa dos casos penais e a função do juiz na produção da prova. In: SALGADO, Daniel R.; QUEIROZ, Ronaldo P. (Orgs.). A prova no enfrentamento à macrocriminalidade. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 47.
4- STRECK, Lenio L. A Ficção da verdade real e os sintomas da falta de compreensão filosófica da ciência processual. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011. Disponível aqui.. Acesso em: 11 jul. 2020.
5- DALLAGNOL, Deltan M. A visão moderna da prova indício. In: SALGADO, Daniel R.; QUEIROZ, Ronaldo P. (Orgs.). A prova no enfrentamento à macrocriminalidade. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 122.
6- BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 262.
8- NARDELLI, Marcella A. M.; MASCARENHAS, Fabiana A. Os standards probatórios como métrica da verdade: em busca de parâmetros objetivos para a racionalização das decisões sobre os fatos. Revista del Instituto Colombiano de Derecho Procesal, Bogotá, n. 44, p. 45-66, jul./dez. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 06 set. 2020.
9- VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Standard probatório para condenação e dúvida razoável no processo penal: análise das possíveis contribuições ao ordenamento brasileiro. Revista Direito GV, v. 16, n. 2, maio/ago. 2020. Disponível aqui. Acesso em 17 set. 2020.
10- BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: RT, 2019. p. 250.
11- Op. cit. 59.
12- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 470/MG, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Brasília, 18 ago 2012. DJ 22 abr 2013. Disponível aqui.. Acesso em: 06 jul. 2020.
13- MATIDA, Janaina; VIEIRA, Antonio. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova “para além de toda a dúvida razoável” no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 156, p. 221-248. jun. 2019.
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BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: RT, 2019. p. 250.________. Processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 262.
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FACCINI NETO, Orlando; RAMIRES, Maurício. Refutando a indiferença do ceticismo: a estrutura narrativa dos casos penais e a função do juiz na produção da prova. In: SALGADO, Daniel R.; QUEIROZ, Ronaldo P. (Orgs.). A prova no enfrentamento à macrocriminalidade. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 29-55.
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