Migalhas de Peso

Prisão e pandemia

O texto é uma radiografia sobre as discussões das políticas de encarceramento da cidade do Rio de Janeiro durante a pandemia do SARS-CoV-2 (“coronavírus”), causador da doença Covid-19.

21/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Uma cólera nos infecta: a crença na prisão como remédio para todos os nossos problemas. Uma espécie de cloroquina. Quanto mais os avanços do pensamento científico desnudam o fracasso do projeto de encarceramento em suas finalidades retributivas ou preventivas, mais ele é incentivado. Enquanto na ciência em sentido lato, “está encerrada a idade da inocência”, conforme disse o professor Nilo Batista1.

Em relação a cloroquina, seus defensores chamam os organismos internacionais de globalistas, comunistas, arquitetam decretos para modificar a composição química do fármaco, seus efeitos, como se por decreto fosse também possível mudar a natureza das coisas, evitar que a terra gire em torno do sol, tirar ouro do deserto.

Já acerca das prisões, um exemplo que simboliza bem esse estado de coisas foram as primeiras declarações do ex-ministro de Justiça sobre o pacote “anticrime” quando afirmou que incomodaria muitos professores de direito e de processo penal. Justifica seu projeto não com razões científicas, mas em sua experiência pessoal, certamente inacessível aos que não acessam sua subjetividade, baseando-se na construção mítica do juiz herói que está acima da instituição. Imaginemos se propusemos soluções para o combate à epidemia com projetos que irritassem infectologistas, biólogos, médicos, químicos etc?

Como diria um príncipe, assolado pelas revoluções antimonarquistas : “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. A profusão de leis, decretos, atos normativos se avolumam na mesma célere velocidade com que esses imperativos são ignorados, vilipendiados e suspendidos. O juiz de garantias, por exemplo, foi suspenso por decisão do presidente do STF. O artigo 316 que tentava evitar o excesso de prazo da prisão preventiva pulou do CPP e correu por aí.

Temos em voga, o que o cineasta João Moreira Salles muito bem afirmou, um projeto de autodestruição2. Um presidente que odeia a política e seus partidos. Uma ministra de Direito Humanos cujo foco é acabar com os Direitos Humanos. Um ministro de Desigualdade Racial cujo foco é defender a inexistência do racismo. Um ministro do Meio Ambiente cujo objetivo é “passar a boiada”. Um ministro de Justiça que a intenção era incomodar estudiosos de direito. Um ministro de Saúde... Bem, durante boa parte de uma das maiores pandemias este não havia.

Antes da pandemia3 tínhamos cerca de 750 mil presos. Destes, quase 40% eram presos provisórios. No Rio de Janeiro são cerca de 50 mil. A maioria negros e pardos. Conforme pesquisa recente da Defensoria Pública, de cada 10 presos em flagrantes, 8 são negros. 40% dizem ter sido agredidos.4 Presos por roubo ou tráfico de drogas. A renda familiar em sua grande maioria mal chega a 2 salários mínimos, têm entre 18 a 29 anos, são acusados de tráfico de drogas ou roubo e sequer chegaram ao ensino médio. A terceira maior população carcerária do mundo.

Certo é que a pena privativa de liberdade no Brasil na prática nunca existiu sozinha, uma vez que sempre acompanhada de violências à saúde, à integridade física, à dignidade do preso e de sua família e aos demais bens jurídicos que a pena não deveria atingir. A maior prova disso é que se comunicarmos alguém de sua prisão o que mais lhe preocupará não será sequer a perda da liberdade. O que é sabido e declarado até pelo STF:

“A maior parte desses detentos está sujeita às seguintes condições: superlotação dos presídios, torturas, homicídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida imprestável, falta de água potável, de produtos higiênicos básicos, de acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho, bem como amplo domínio dos cárceres por organizações criminosas, insuficiência do controle quanto ao cumprimento das penas, discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual. Com o déficit prisional ultrapassando a casa das 206 mil vagas, salta aos olhos o problema da superlotação, que pode ser a origem de todos os males” (ADPF STF MC-ADPF 347. Rel. Min. MARCO AURÉLIO cautelar)lo STF).

No começo da pandemia, a primeira coisa feita foi determinar que ninguém poderia sair do presídio de jeito algum. Presos que saiam para trabalhar, saiam para visitar a família. Não mais. Foram fechados a maior parte dos tribunais. Aderimos ao teletrabalho. Raras instâncias se davam ao trabalho de responder e-mails, ligações etc.

A primeira atitude tomada pelo Ministro da Justiça foi se revoltar contra a recomendação nº 62 do Conselho de Justiça. Se pararmos para ler a recomendação, que basicamente inspira na revisão das prisões preventivas de crimes sem violência, na antecipação de benefícios a presos que de alguma forma já preenchiam as condições, é impossível termos outra interpretação senão que foi a medida mais aceitável a ser tomada para evitarmos um verdadeiro genocídio. Principalmente se quisermos ainda dizer que nosso país tem como preceito o respeito à dignidade da pessoa humana.

Até poderíamos dizer que a recomendação do Conselho Nacional de Justiça poderia se dar inclusive sem a pandemia, pois se fizéssemos um mutirão de verdade, com juízes interessados em garantir os direitos dos presos, e não de serem chamados para compor governos autoritários de ocasião, provavelmente grande parte da massa carcerária seria desencarcerada.

As visitas foram suspensas por quase 6 meses. A falta de preocupação de garantir o contato com a família por meio de telefone ou mesmo de cartas foi a regra. Foram suspensas as audiências de custódia. O que aconteciam com os presos? Ninguém sabia.

O Mecanismo de Combate a Tortura5 trabalhou incessantemente para tentar trazer a lume o que estava acontecendo nos presídios. Os agentes estavam começando a se infectar. Sem saber o que fazer. Volta e meia o presidente da República era contra o uso obrigatório de máscaras no presídio, vez ou outra ia contra normas sobre equipamentos de segurança.

Até o momento que o presidente tentou acabar de vez com a instituição de inspiração internacional editando um decreto para que todos os peritos fossem voluntários e que fossem contratados diretamente por ele, um entusiasta de um dos maiores autodeclarados torturadores durante a nossa ditadura civil-militar6.  

Na Justiça, a experiência dos defensores era muitas vezes pedir a liberdade de um preso que atendia aos requisitos da recomendação do CNJ e ouvir a lacônica resposta da Justiça de que a Secretaria de Administração Penitenciária estava tomando todas as medidas.

Ora, por maior boa vontade institucional não parece muito crível corrigir os problemas de higiene e de superlotação do presídio em semanas. Seria necessária a melhor engenharia do mundo.

 Nesse ínterim, o Ministro da Justiça teve a abrilhantada ideia de custodiar os presos doentes e idosos em contêineres, numa completa violência contra os direitos humanos7. Não é coincidência que o governador do Estado do Rio de Janeiro comprou contêineres muito parecidos para abrigar os mortos por Covid8. O que foi acertadamente rejeitada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

É interessante para quem não conhece tanto o sistema carcerário explicar como se dão os pedidos de assistência à saúde nos presídios. Na maior parte dos casos, o preso tem de pedir o transporte que muitas vezes não vem. Quando vem, pode aparecer a qualquer horário, então o preso pode passar dias sem almoçar, sem tomar café da manhã. Fica além de enfermo, em jejum.

No Hospital Hamilton Agostinho, que trata da maior parte dos casos, não há leitos de CTI. Então se o preso tem uma complicação mais grave, deve ser colocado no sistema Sisreg e direcionado para um Hospital fora do presídio. No Hamilton, ele aguarda atendimento num local chamado Maracanã, que é uma cela com presos de todos os outros presídios. Lá encontram-se inimigos capitais de facções rivais, milicianos, ex-policiais etc. Então, normalmente tudo o que o preso não quer é ser atendido nesse hospital.

Por excesso de inocência, convencionou-se dizer que as mortes não foram tantas como imaginaríamos. Ou, quiçá, quanto alguns gostariam. Um pouco inspirado pelos discursos negacionistas do país da miscigenação abençoado por Deus. Sobretudo em razão do índice enorme de mortos por doenças infectocontagiosas como tuberculose, facilmente tratáveis exceto em ambientes de total insalubridade.

Não obstante, o índice de testes de Covid 19 nos quais nos baseamos para todas as afirmações representam exatos 2.46% da massa carcerária9, o que representa a total ausência de fundamentação científica para qualquer afirmação além da evidente constatação do descaso. Em dados de agosto, morre 1 preso a cada 45 horas. O maior índice de morte em presídio há muito. Temos 3 respiradores no hospital Hamilton Agostinho. Havia promessas de hospitais de campanha, novos respiradores, mas nada se concretizou até o momento – e provavelmente não se concretizará.

Nos Tribunais o que se dá é o voluntarismo. Alguns juízes que insistem em fazer valer direitos frente ao Estado de Coisas Inconstitucional que vivemos garantiram que presos pudessem ser soltos sem fiança, por exemplo, mas a quantidade de presos soltos por causa do coronavírus não representa sequer 5% da massa carcerária. O TJ/SP, por exemplo, deferiu apenas 3% dos pedidos de soltura com base na recomendação do CNJ.

Aumentamos de 30 para 40 anos o tempo máximo de encarceramento, instituindo na prática a pena perpétua. Com a inobservância as graves condições de presos com comorbidade em situação de risco ululante frente aos impactos do coronavírus, instituímos também a pena de morte.

9- MEPCT/RJ

Luis Flávio Biolchini
Advogado criminalista, procurador da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ, membro permanente da Comissão de Direito Penal do Instituto de Advogados do Brasil, membro da Sociedade dos Advogados Criminal.

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