Migalhas de Peso

Ao mestre, com carinho

Mais de três décadas de intenso trabalho no exercício da advocacia embrutecem os sentidos, a escrita jurídica domina o texto e retira a leveza do encadeamento das ideias. Como então escrever ao mestre, com carinho?

3/6/2020

Dia longo e pesado de trabalho, como os demais daquela semana. Seguidas reuniões, almoçar em cima da mesa terminando de redigir o testamento de um cliente, ida ao Fórum Central despachar uma petição com o juiz, no retorno atendo uma ligação de um colega de turma da PUC, Antonio Ruiz Filho, que modifica definitivamente meu dia. Um convite – que muito me honra – para escrever um texto sobre o professor Walter Ceneviva para uma edição da Revista do Advogado em homenagem a ele.

Mais de três décadas de intenso trabalho no exercício da advocacia embrutecem os sentidos, a escrita jurídica domina o texto e retira a leveza do encadeamento das ideias. Como então escrever ao mestre, com carinho?

Mandei uma mensagem ao meu ex-marido, também aluno do professor Ceneviva (fomos colegas de classe ao longo do curso de Direito), indagando acerca das boas memórias que ele guardava do querido mestre. Ele me respondeu: “escreva com o coração”.

A lembrança do professor Ceneviva é como abrir na memória uma janela de ar fresco.

Ele me deu aulas de Direito Civil nos cinco anos da faculdade, de 1980 a 1984. Minha primeira aula de Direito na faculdade foi com o professor Ceneviva, que nos recebeu com um alegre sorriso. Foi com o mesmo sorriso, próximo e amigo após cinco anos de convívio, que me entregou o diploma no dia da formatura. Ele foi o paraninfo da Turma de 1984. A última classe da Faculdade de Direito que teve o privilégio de tê-lo como professor de Direito Civil ao longo de todos os anos do curso.

No primeiro dia de aula ele pediu a cada um dos alunos que escrevesse uma carta descrevendo o que entendia por Direito e a razão pela qual desejava ser advogado. No último dia de aula do quinto ano ele devolveu aos alunos a carta escrita no primeiro ano.

Culto, inteligente, aberto ao mundo e bem-humorado, hoje me pergunto como as décadas de trabalho não lhe retiraram a delicadeza do trato e tampouco o interesse genuíno pelas pessoas e pelos causos do Direito. Um professor nato!

Alguns professores se impõem pelo rigor das notas, pelo temor dos alunos e dificuldade das provas. Ele reinava pela generosidade com que compartilhava seu conhecimento jurídico, sua didática, suas aulas repletas de exemplos interessantes e muitos casos do dia a dia de um escritório de advocacia narrados com espontaneidade e humor. Sempre todos os alunos presentes em suas aulas, houvesse ou não chamada.

E assim, com graça e leveza, ele nos ensinou os fundamentos do Direito Civil, donde – para mim – defluem as bases do pensamento jurídico estruturado, dos contratos às ações judiciais.

Na aula de Direito de Família, alegre, ele argumentava que o casamento movido pela paixão era nulo de pleno direito em razão da ausência de agente capaz, mesclando literatura ao matrimônio putativo.

Lembro-me no quinto ano da faculdade de uma prova acerca de sucessão para a qual não consegui estudar toda a matéria, pois nos dias anteriores ao exame havia trabalhado intensamente e até tarde da noite, no estágio que fazia, redigindo um recurso de apelação. Ao receber a prova com quatro questões difíceis, que não sabia responder, fui perguntar ao professor Ceneviva se poderia, em lugar das respostas, narrar um caso concreto contextualizando a matéria das questões. Ele aceitou. Ao receber a prova corrigida por ele havia um traço vermelho acompanhando toda a lateral do texto que escrevi e abaixo uma observação: “Licença poética, nota 8,0”.

Ele acreditava que me tornaria escritora. Tornei-me advogada, por obra e graça de sua generosa influência.

Ao final de outra prova fui procurá-lo na sala dos professores para pedir alguns esclarecimentos sobre um trabalho de classe. Eu o encontrei totalmente absorto examinando uma das provas que havia recolhido dos alunos minutos antes.

Em nossa classe havia um aluno cego. Nos dias de prova o professor Ceneviva o sentava na sua mesa, com a máquina de escrever do aluno, e lhe ditava as perguntas da prova. G. datilografava todas as respostas e costumava se sair muito bem nas provas, especialmente em Direito Civil. Acontece que naquele dia G. havia se esquecido de colocar a fita com tinta preta na máquina de escrever, o resultado foi que o professor Ceneviva tinha em suas mãos uma folha em branco com as respostas da prova, apenas marcada com o peso das letras das teclas da máquina de escrever sem tinta. Cuidadosamente ele pegou um grafite e foi passando pelas letras sem tinta batidas no papel sulfite branco e, aos poucos, o texto foi surgindo. Ao final ele sorriu e com certa dificuldade corrigiu toda a prova, nunca comentou nada com G.

Não era somente G. que ocupava a mesa do professor para fazer provas. Ao saber do namoro com meu ex-marido, em alguns dias de prova, divertindo-se com a situação, o professor Ceneviva sentava-o em sua mesa, dizendo que era para evitar o tédio de corrigir provas iguais.

Não obstante as décadas de exercício da advocacia e os muitos anos de magistério, ele dizia só ter uma certeza: “só sei que nada sei, continuo aprendendo todos os dias”. Talvez essa sua principal lição para nós. Usar todo o conhecimento e a experiência acumulados para permanecer receptivo, continuar curioso e realmente interessado pelo que está por vir. Talvez essa fosse a nascente do seu sorriso que nos acompanhou do primeiro ao último dia de aula ao longo dos cinco anos de faculdade.

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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.

 

 

 

 

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*Renata Mei Hsu Guimarães é advogada na área de Família e Sucessões, graduada pela Faculdade de Direito da PUC-SP (1984).

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