MARÇO DE 1950
Com passos tímidos adentro a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Sinto orgulho de passar pelas arcadas e ver que ali será minha casa pelos próximos cinco anos. Na manhã ainda fria, tento identificar algum conhecido, alguém que apazigue minha ansiedade pelo início das aulas do desejado curso de Direito, para cujo vestibular estudara o ano inteiro no cursinho de Castelões, o melhor então existente para preparar candidatos a uma vaga na famosa Academia de Direito. Dou uma volta breve, buscando conhecer o espaço desconhecido, e sem perceber me vejo admirando os vitrais que iluminam a imponente escadaria localizada próximo à entrada do prédio, logo após as arcadas.
Receoso pelo trote, que sabia certo ocorrer, procuro pesquisar o local em que seria ministrada a aula inaugural e me dirijo à sala indicada a passos largos, como se fosse um velho conhecedor dos corredores, das salas, dos vitrais. No breve espaço de tempo até chegar ao salão nobre da faculdade, minha mente divaga, a imaginar que o mesmo caminho havia sido percorrido por Joaquim Nabuco, Castro Alves, Prudente de Moraes, José de Alencar, Monteiro Lobato e tantos outros personagens de nossa história política e cultural.
Sou despertado de meu devaneio pelo barulho feito por alguns veteranos, que aos altos brados entoavam músicas até então desconhecidas para mim e gritavam trovas acadêmicas. Amedrontado, corri os últimos metros e adentrei o imponente salão, sentindo um grande impacto e um encantamento instantâneo pelo ar solene e austero que ali imperava.
Identifico algumas caras conhecidas, alguns poucos amigos de colégio, um número maior de colegas do Castelões, e até mesmo minha vizinha Célia, que mora na casa ao lado, geminada à de meu avô, onde resido. Dou um alô discreto e dirijo-me a um grupo pequeno de alunos, que nervosamente conversam sobre amenidades, tentando fazer o tempo passar mais rápido. Cumprimento dois deles, ambos conhecidos do curso preparatório, e me apresento para os outros três. Um deles se sobressai pela calma, destoando dos demais. Com olhos claros e voz de locutor, ele se apresenta como Walter.
A empatia foi imediata e recíproca. Somos interrompidos pelo sinal de início da aula e rapidamente nos sentamos para começar nosso curso de Direito.
MARÇO DE 1975
Dirigindo minha Brasília creme, recebida dias antes como presente de meus pais, vou feliz ouvindo uma fita de um rock qualquer. Sozinho, quase não consigo disfarçar a alegria do primeiro automóvel, presente de aniversário e meio de locomoção para a Faculdade de Direito a que acabara de ser admitido. No longo percurso entre a casa de meus pais, na Granja Julieta, e a faculdade, localizada em Perdizes, vou pensando no que me espera, com a voz de meu pai ecoando em minha mente, para que dirigisse com cuidado.
Já haviam me alertado do trote, mas o frio na barriga vinha mais do novo, do desconhecido, do que iria encontrar no curso de Direito.
Estacionei e procurei me esquivar de alguns alunos veteranos que, de tesouras em uma mão e batom na outra, estavam postados na entrada principal da PUC e atacavam todos os que tinham cara de calouro e ar de não saber para onde ir.
Desci a rampa e me defrontei com um papel grudado em uma espécie provisória de mural, com indicações a respeito da sala de cada um. Pelo que pude ver, tinha que me dirigir para uma sala no prédio antigo da faculdade, que mais tarde fui saber ser conhecido como o “prédio velho”, contrapondo-se ao “novo”, ainda em construção e mesmo assim já parcialmente utilizado. Ainda com tempo, procurei me localizar e facilmente encontrei a sala indicada.
Sentei-me em uma cadeira na última fileira e fiquei esperando o início da aula, estranhando a pequena dimensão da sala e o grande número de mulheres que ali já aguardavam sentadas. Poucos minutos antes da hora prevista para a aula começar, uma mulher entra na sala e pergunta se alguém ali não era aluno do curso de Letras. Somente eu e um rapaz que estava sentado ao meu lado levantamos a mão e quase que ao mesmo tempo falamos que cursávamos Direito. Naquele momento descobri que aquela seria minha sala de aula do curso básico da PUC, em que a universidade católica mistura nas classes os alunos de todos os cursos, e que eu deveria me dirigir para uma outra sala, em que o curso de Direito teria sua aula inaugural.
No caminho fui conversando com o colega que acabara de conhecer, sem jamais imaginar que em menos de cinco anos ele se casaria com minha irmã e se tornaria meu cunhado.
Entramos na sala quase no mesmo instante em que o professor e nos apressamos para encontrar dois lugares vagos. Ao olhar para a frente, tive uma sensação estranha, de déjà vu. Com um semblante calmo e sereno, o professor se apresentava como aquele que nos ministraria o curso de Direito Civil pelos cinco anos seguintes.
Disse chamar-se Walter Ceneviva e, com a lista dos alunos na mão, passou a fazer a chamada, de forma calma e pausada, fazendo questão de olhar fixamente para cada um de nós, como se fosse, a partir de então, identificar todos pelo próprio nome. Ao ser chamado, identifiquei-me e Walter, como fizera com alguns poucos alunos, abaixou a lista e perguntou-me se eu era filho do Mário Sérgio. Ao responder-lhe afirmativamente, vi o sorriso iluminar o seu rosto e ele dizer que era muito amigo e admirador de meu pai.
Após a chamada, pronto para receber as primeiras lições de Direito Civil, sou surpreendido pelo professor, a pedir que todos nós destacássemos uma folha de nossos cadernos e escrevêssemos a razão pela qual cada um de nós havia escolhido cursar Direito.
Ao entregar o que havia escrito, de perto dou uma última e detalhada olhada no professor Walter e sinto um arrepio. De idade próxima à de meu pai, possuía ele alguns traços muito semelhantes aos dele. Os mesmos cabelos precocemente grisalhos e ondulados penteados para trás, o mesmo bigode farto e branco tratado com esmero e cuidado, os mesmos olhos claros, a mesma suavidade de voz e de trato, o mesmo jeito gentil e cavalheiresco.
Só falta terem estudado juntos, pensei eu já correndo para pegar o meu carro e dar carona ao novo colega, que descobri morar perto de casa, numa travessa da Avenida Santo Amaro, bem na rota de meu caminho de volta.
DEZEMBRO DE 1954
Atrasados, Célia e eu galgamos rapidamente os degraus para o segundo andar da faculdade, felizes, de mãos dadas e apertadas, em direção à sala onde em minutos colaríamos grau, após o término do curso de Direito.
Naqueles últimos cinco anos, a então colega de classe e vizinha de casa havia se tornado minha namorada e noiva, com quem iria me casar em pouco mais de um mês. Os preparativos das bodas e da nova fase de nossas vidas acabaram nos atrasando àquele que seria o último compromisso relacionado à nossa graduação.
Cumpridas as formalidades protocolares e terminada a sessão de fotos, íamos sair correndo para a maratona que nos espreitava até o dia 26 de janeiro, data da cerimônia religiosa de nosso casamento.
Detivemo-nos um instante para abraçar Walter que, de igual forma, corria para os afazeres de sua nova profissão.
Ao nos despedirmos de Walter, Célia e eu passamos um bom tempo enaltecendo as suas qualidades e expressando a nossa certeza de seu sucesso na advocacia. Lembramo-nos de sua trajetória no curso de Direito, como ótimo aluno e gentil colega, sempre leal e amigo, à disposição para auxiliar quem necessitasse.
A dedicação de Walter pelo estudo aliava-se ao seu inegável senso de justiça, ao seu dom pela advocacia, à sua ótima capacidade de expressão, oral e escrita, tornando-o um exemplo a ser seguido.
Antes de terminarmos nosso percurso, tive a oportunidade de confessar a Célia a minha admiração por Walter e lamentar o afastamento que, de forma inexorável, o término do curso de Direito provocaria entre nós.
NOVEMBRO DE 1979
Sentado em meu lugar cativo no anfiteatro do terceiro andar do prédio "novo", onde as aulas de meu curso de Direito ocorriam, aguardava o início da aula de Direito Civil, uma das últimas a se realizar naquele ano derradeiro de meu curso universitário.
Já não havia mais matéria nova a ser ministrada. As provas finais já haviam sido realizadas e as notas publicadas. Com certeza, seria mais uma das ocasiões em que o mestre Walter se disporia a conversar a respeito da profissão da advocacia, sua grande paixão.
Amigo de todos os alunos, Walter já havia sido eleito paraninfo de nossa turma e, nessa condição, promovido um disputado concurso para a escolha do orador que falaria em nome dos alunos na solenidade de nossa formatura.
A escolha de Walter como nosso paraninfo fora óbvia e contou com o apoio de quase a unanimidade da classe. No jargão turfístico, a sua indicação havia sido uma barbada, famosa pule de dez, sem qualquer possibilidade de disputa.
A sua identidade com os alunos era total. Nos cinco anos em que nos acompanhou, Walter ministrou o curso de Direito Civil com rara maestria e competência. Sem jamais erguer a voz, fez-se respeitar em todas as ocasiões, criando um clima amistoso e próximo.
Sempre disponível, nunca se recusou a atender um aluno fora do horário das aulas, mantendo abertas as portas de seu escritório, ainda que para uma questão banal, sem maior importância.
Incentivou a pesquisa, o estudo e o debate. Muitas foram as aulas em que, sem balbúrdia ou bagunça, Walter provocava o debate e instigava todos a emitir sua opinião. Mais do que respostas, buscava sempre a coerência do raciocínio lógico, do fundamento a justificar tal ou qual opinião.
Inovou ao aplicar provas precedidas por debates livres. Apresentava a questão sobre a qual deveríamos dissertar e concedia um tempo para os alunos debaterem livremente. Fomentava, ali, o exercício da advocacia, sempre professando ser o Direito uma ciência dinâmica, humanista, dependente da reflexão.
Naquela que seria uma das últimas aulas do curso, Walter mais uma vez surpreendeu. Trouxe para a sala de aula e devolveu a cada um dos alunos a redação que havíamos elaborado no primeiro dia de nosso curso, identificando a escolha pelo Direito.
Eu já nem me lembrava mais de tê-la escrito, ou melhor, do que havia escrito, na suposição de que havia muito ela já fora para o lixo. Não havia nenhuma anotação nem comentários, somente a certeza de que fora lida e de alguma forma ajudara o mestre Walter a traçar o perfil de cada um de seus alunos, a entender um pouco mais de cada um de nós.
O curso ainda não terminara, mas a falta do convívio semanal e quase diário com o professor Walter já se fazia sentir.
JANEIRO DE 1982
Era um verão quente e Célia e eu reunimos a família toda na casa de praia que eu comprara fazia pouco em Ubatuba, para passarmos juntos alguns dias de férias. No decorrer do dia de um sábado somos agradavelmente surpreendidos com a visita de Walter, que estava hospedado em uma casa de amigos, próxima à nossa.
A nossa semelhança física, com a idade, se acentuara. Embora ambos assim não nos víssemos, a parecença era voz corrente entre os amigos e conhecidos, e alvo de brincadeiras, que muito nos divertia.
Após um tempo, saímos os dois, em conjunto com Mário, meu filho, para um passeio a pé pelas ruas do condomínio, aproveitando a agradável brisa do final de tarde, jogando conversa fora e lembrando-nos das coincidências da vida, de termos sido colegas de classe, de Walter ter sido professor do Mário, de nosso convívio nas lutas da advocacia, como companheiros no Conselho e na Diretoria da querida AASP, e na OAB.
A conversa ia leve e descontraída quando notamos que estávamos sendo observados por duas mulheres que, fitando-nos sem nenhuma cerimônia, cochichavam algo ao ouvido, certamente a nosso respeito.
Ao nos aproximarmos um pouco mais, uma delas não resistiu e, antes desculpando-se, perguntou: "Vocês são gêmeos?". Sem esboçar qualquer sorriso, Walter prontamente respondeu: "Sim! Somos!". Aquela que fizera a pergunta prontamente se virou à outra e, com o orgulho e a alegria de quem houvera ganhado a aposta, bradou solenemente: "Eu te disse! Eu te falei! Só podiam ser gêmeos! São idênticos!!!".
A gargalhada foi geral, tendo elas certamente suposto que a graça advinha do inusitado da situação.
O passeio se estendeu por um bom tempo, alimentado pelas inúmeras e divertidas histórias que giravam em torno de nossa semelhança física, algumas delas incluindo a figura de Modesto Carvalhosa, amigo fraterno e contemporâneo de faculdade, a quem também dizem se parecer conosco.
NOVEMBRO DE 2004
Comemoração dos 130 anos do Instituto do Advogados de São Paulo (IASP)! A mais longeva instituição da advocacia brasileira, berço da OAB, comemora o seu 130º aniversário de fundação. A efeméride, formal por natureza, foi organizada para ser comemorada solenemente em evento a ser realizado no Palácio do Governo do Estado.
Meu pai e eu chegamos um pouco antes do horário marcado, na expectativa de encontrar Walter Ceneviva, que será homenageado com o Prêmio Barão de Ramalho, láurea maior concedida pelo Instituto.
Justíssima a homenagem, comentamos no caminho da solenidade. É o coroamento de uma carreira de 50 anos dedicados ao Direito e à advocacia. Na verdade, ressalto a meu pai, Walter está inserido no mundo jurídico de forma completa. É professor de raras qualidades, unindo o seu alto conhecimento jurídico à excelente capacidade de lecionar e transmitir aos alunos os seus conhecimentos de Direito Civil, campo de sua atuação acadêmica e de sua especialidade profissional. É jurista de peso, autor de diversos e importantes trabalhos, dentre os quais se destacam os seus Comentários à Lei de Registros Públicos, obra essencial para os operadores do Direito nas matérias relativas ao Direito Registral. É e sempre foi advogado militante e brilhante, atuando de forma leal, respeitosa e atenciosa.
Como se não bastasse, comento também o excelente trabalho de pesquisa por ele realizado, resgatando a história do Instituto dos Advogados do Brasil e auxiliando de maneira fundamental a realização da obra elaborada pela instituição para registrar a sua existência.
Walter chega com a calma e a simplicidade de sempre, como se não fosse ele o ilustre homenageado da noite. Ao nos ver, abre um sorriso largo e retribui o nosso abraço. Conversamos brevemente e relembro a ele a minha admiração por discurso por ele feito em evento do próprio IASP, todo ele deliciosamente elaborado com frases da música popular brasileira. Enquanto ele segue para o seu lugar de honra, apressamo-nos para buscar um bom lugar na plateia, onde pudéssemos assistir à homenagem e ouvir o homenageado.
JUNHO DE 2008
O Conselho Diretor da AASP delibera homenagear Walter Ceneviva, seu ex-conselheiro e ex-vice-presidente, concedendo-lhe o título de “Associado Honorário”, em reconhecimento por toda a sua grandiosa obra jurídica, jornalística e humanitária. Recebo a notícia do presidente da entidade, Marcio Kayatt, que me convida para saudar o homenageado em nome da Associação, na solenidade marcada para o final do mês.
Aceito com orgulho o convite e, no final da tarde do dia 25, comparecemos, Mário e eu, às novas instalações da AASP, na Rua Álvares Penteado.
A homenage m, singela e discreta, como é característica da entidade, tem lugar na sala de reuniões do Conselho. Walter se fez acompanhar da esposa e dos filhos, todos orgulhosos do marido e pai homenageado.
Aproveito a intimidade do ambiente, repleto de pessoas conhecidas e amigos, e informalmente saúdo o homenageado. Abro o coração e resgato um pouco de nossa história comum, das coincidências de nossas vidas e carreiras, e tento retratar a importância de Walter para a advocacia, a sua dedicação ao Direito e à sociedade. Tento, também sem fazer justiça ao homenageado, enaltecer as suas qualidades nas diversas funções que exerceu e exerce, procurando dar um pálido contorno do que Walter fez para a AASP, enquanto seu conselheiro e diretor. Tudo o que eu disse foi pouco, muito pouco, para a dimensão do homenageado.
O que ali não disse, confesso, foi a emoção sentida em poder saudar o colega de uma vida, amigo admirado, com quem tive o privilégio de conviver por mais de 50 anos.
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*Mário Sérgio Duarte Garcia é advogado. Ex-conselheiro e ex-presidente da AASP. Ex-conselheiro e ex-presidente do Conselho da OAB-SP. Conselheiro honorário e ex-presidente do Conselho Federal da OAB.
**Mário de Barros Duarte Garcia é advogado. Ex-conselheiro e ex-presidente da AASP.