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A filiação na pós-modernidade: a multiparentalidade

A filiação pode ser entendida como a relação existente entre os genitores e sua prole, independentemente da existência de vínculo biológico entre eles.

5/5/2020

Introdução

A configuração da família muito se alterou no decorrer do tempo histórico. A verdade, o afeto, a autonomia da vontade passaram a desempenhar papéis preponderantes na sua formação, em detrimento da rigidez do costume, da influência religiosa, da vileza do interesse econômico ou mesmo da conveniência.

Analisaremos a seguir alguns aspectos da filiação presentes no Direito Civil contemporâneo.

Desenvolvimento do tema

A filiação pode ser entendida como a relação existente entre os genitores e sua prole, independentemente da existência de vínculo biológico entre eles.

O desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida fez surgirem novas modalidades de filiação, suprimindo inclusive a necessidade de conjunção carnal entre as partes. A filiação pode também decorrer da adoção ou de uma relação socioafetiva resultante da posse do estado de filho.

A determinação da filiação, tendo em vista os efeitos jurídicos e morais que dela decorrem, é de vital importância para a pessoa natural. O direito estipula critérios sobre sua identificação, permitindo, inclusive, a propositura de ações de investigação e de exclusão da paternidade ou maternidade, e vale-se de critérios de presunções para definir a paternidade.

Em vista da evolução histórica do instituto da filiação, temos que a família sempre desempenhou um papel fundamental na vida do homem.

Nas sociedades primitivas, os primeiros grupos sociais não constituíram efetivamente a família com base nos padrões conhecidos na atualidade; basearam-se no instinto sexual, e foi a existência da prole, aliada à ampliação do universo cultural, a responsável pela implantação de uma estrutura social mais rica, capaz de desempenhar funções e garantir a higidez da espécie (MALUF, 2010, p. 9 e 10).

Como uma das características mais importantes da família antiga era a religião, a existência de filho varão se fez necessária para a perpetuação da religião doméstica.

"O filho que perpetuaria a religião doméstica deveria ser fruto do casamento religioso. Logo, o filho natural não podia desempenhar o papel determinado pela religião ao filho, posto que o mero laço sanguíneo isoladamente não constitui, para o filho, a família" (COULANGES, 2000, p. 46 e 47).

Sob o Direito Romano, a família conheceu diversas formas constitutivas, mas apresentou uma estrutura tipicamente patriarcal, detendo o pater familiae o controle total da entidade familiar enquanto vivesse, tanto no âmbito pessoal quanto no patrimonial (SAN TIAGO DANTAS, 1991, p. 20).

Distinguiram-se duas espécies de parentesco: o agnatício, que se transmite apenas pelos homens, e o cognatício, que se propaga pelo sangue, portanto por via masculina e feminina. Somente com Justiniano é abolida essa diferença, passando o parentesco a ser apenas o de sangue, o cognatício, como ocorre na atualidade (ALVES, 2003, p. 247).

Eram encontrados no Direito Romano três categorias de filhos: "os iusti ou legitimi, nascidos das justas nuptiae, os adotivos e, no Direito Pós-Clássico, os legitimados; os vulgo quaesiti, também denominados vulgo concepti ou spurii, que são nascidos de união ilegítima; e os naturales liberi, que no Direito Pós-Clássico são nascidos do concubinato".

Dessas categorias, aduz que as duas primeiras existiram do Direito Clássico e a terceira surgiu apenas no Direito Pós-Clássico.

Os filhos legítimos seguem a condição do pai, são ligados pelo parentesco consanguíneo e possuem, entre si, direitos e deveres. Já os filhos espúrios não possuíam juridicamente a figura do pai, não podiam ser legitimados; mas, quanto à mãe, de quem seguem a condição, possuem os mesmos direitos que os filhos legítimos.

A legitimação era desconhecida em Roma até a época clássica, surgindo com Constantino e desenvolvendo-se com seus sucessores. O posterior casamento dos pais legitimava a prole, como também o oferecimento à cúria, para os filhos varões, e a destinação ao casamento, às filhas mulheres (CRETELLA JR., 1970, p. 108 e 109).

Quanto aos filhos nascidos de relação concubinária, poderiam, pela legitimatio, tornar-se legítimos, vigendo reciprocamente aos genitores direitos e deveres no que tange aos alimentos e à sucessão ab intestato (ALVES, 2003, p. 313 a 315).

Era presente também a adoptio, ato pelo qual se ingressava, como filius familias, em familia próprio iure que não é a sua de origem. Distingue esta ainda duas formas constitutivas conforme seja o adotado alieni iuris ou sui iuris, a saber: a adoção em sentido estrito (adoptio) e ad-rogação (adrogatio) (MODESTINUS; GAIUS, 2002, p. 73).

Grande importância teve a adoção entre os romanos, no sentido de dar herdeiro a quem não tem, por motivos familiares ou políticos (CRETELLA JR., 1970, p. 110).

Aos poucos, a família romana evoluiu, havendo uma diminuição gradativa da patria potestas, apresentando, por via de consequência, uma discreta melhora na situação dos filhos, extremamente vulneráveis à vontade do pater (GILISSEN, 1995, p. 611).

Durante a Idade Média, a organização da família recebeu três influências marcantes: a do Direito Romano, que continuava a reger os povos dominados; a do Direito Canônico, que se alargava com o prestígio da Igreja; e a do Direito Bárbaro, trazida pelos povos conquistadores (SAN TIAGO DANTAS, 1991, p. 54).

Importante foi a influência da Igreja neste período, a qual determinava as bases existenciais dos fiéis, legislava sobre a família e o matrimônio, instituindo-o como um sacramento. Ocupou-se das questões que envolviam amor e concupiscência, regulando-os. Em face disso, intensa foi a repercussão sobre a filiação.

O cristianismo exerceu uma profunda influência sobre a evolução do poder paterno-filial. Visou proteger as crianças, desenvolver ideias morais, que deram origem ao princípio de que o pai, ao lado de possuir direitos sobre os filhos, é também detentor de obrigações para com estes. Introduziu o conceito de que as relações familiares devem repousar sobre a afeição e a caridade; sua missão é orientar e zelar pela integridade da prole.

A esse panorama, havia uma exceção: os filhos naturais, havidos fora do casamento dos pais. Estes eram divididos em várias categorias: bastardos simples; nascidos de uniões proibidas – incestuosas, adulterinas ou sacrílegas. O primeiro deles poderia ser legitimado pelo posterior casamento de seus pais (GILISSEN, 1995, p. 612 e 613).

Os filhos havidos fora das relações maritais eram considerados "sem família", seu nascimento não lhes concedia nenhum direito, estando fora de cogitação a investigação de paternidade. Só por volta do século XVII, passou-se a se admitir a prova de paternidade por todos os meios, inclusive por indicação da mãe, sob juramento, durante a gravidez (PEREIRA, 1996, p. 13).

O filho nascido de um casamento anulado perdia o estatuto de filho legítimo, à luz do Direito Romano. No Direito Medieval, surgiu a teoria do casamento putativo, no século XII, estipulando que, se pelo menos um dos pais estivesse de boa-fé no momento do casamento, os filhos continuariam a ser legítimos, apesar da anulação (GILISSEN, 1995, p. 613).

A adoção não foi utilizada no Direito costumeiro dos países da Europa ocidental, posto que a estrutura da família medieval era fundada nos laços de sangue no seio da linhagem e, assim, opunha-se à introdução de um estranho (GILISSEN, 1995, p. 614).

Na Idade Média, o que funda a família não é mais a existência do pater, mas o casamento válido convolado entre pessoas de sexos diferentes, em que a filiação desempenha um papel fundamental para a transmissão da herança e da regulação da função protetiva da família (THOMAS, Yann. L’union de sexes: le difficile passage de la nature au droit apud NADAUD, 2002, p. 22).

No Direito Moderno, houve o declínio da religiosidade, atingido pela Reforma religiosa. Da mesma forma, a revogação do Édit de Nantes, em 1685, conduziu à perda do caráter sacramental do casamento, abrindo espaço para a regulamentação do mesmo pelo Estado, levando à sua secularização e laicização.

A família continuou a obedecer a um modelo patriarcal, e era formada por todos aqueles que detinham entre si uma relação de parentesco, estendendo-se este tanto quanto permitir o reconhecimento dos laços de sangue.

Havia, no período, grande disparidade no tratamento dos filhos: se legítimos ou naturais. Ora é permitida, ora não é a investigação de paternidade; ora estão ampliados, ora restritos, os efeitos do reconhecimento.

Foi graças às ideias de igualdade da Revolução Francesa e às teorias jusnaturalistas que o panorama dos filhos havidos fora do casamento começou a mudar, passando-se a suprimir qualquer menção discriminatória em relação ao status dos filhos havidos fora da relação casamentária. O Código de Napoleão de 1805 regulou o instituto da adoção (GILISSEN, 1995, p. 619).

Na comunidade internacional, permitia-se o reconhecimento dos filhos naturais: o Código italiano de 1865; o Código português de 1867; o Código Civil alemão de 1896. O Direito inglês, por outro lado, não concedia nenhum direito ao filho ilegítimo, sendo este colocado sob o status de filius nullius, ou seja, filho sem ascendentes; sendo, neste caso, sua mãe, se não for casada, obrigada a sustentar esse filho até os 16 anos, se varão, ou até se casar, se mulher. Ao pai assiste o direito de sustento do filho até 13 anos (PEREIRA, 1996, p. 15 e 16).

Desde os primórdios do século XIX iniciou-se um movimento pró-reconhecimento dos filhos ilegítimos, consagrando-se apenas a partir do início do século XX nos diversos Códigos europeus, como o Código de Napoleão, que passou a permitir a investigação de paternidade com todos os efeitos daí recorrentes; a lei portuguesa, de 25/12/1910, admite a perfilhação voluntária e a perquirição paternal, com exceção dos filhos incestuosos; o Código Civil italiano admitia também o reconhecimento voluntário e judicial da paternidade, com amplos efeitos; no Direito inglês se operaram significativas modificações: através do Legitimacy Act, de 1926, foi permitida ao filho ilegítimo a sucessão ab intestato no caso de falecimento materno. Através da Family Law Reform Act, de 1969, foram atribuídos amplos direitos sucessórios à prole ilegítima. A Affiliation Proceedings representou o fundamento legal para o acesso ao direito sucessório, identitário e direito aos alimentos (PEREIRA, 1996, p. 16 a 19).

No Brasil, o casamento representou a fonte legítima da família, havendo, por via de consequência, várias modalidades de filhos, em decorrência de estes nascerem ou não no âmbito da sociedade conjugal.

À luz das disposições contidas nas Ordenações do Reino, Ordenação do Livro IV, Título 92, mantinha-se diferença no status da filiação. Os filhos ilegítimos concorriam juntamente com os legítimos à herança do pai plebeu e, no caso de ausência de filhos legítimos, eram nomeados herdeiros universais.

Quando filhos de pais nobres, não herdavam ab intestato, nem concorriam com os legítimos ou com os ascendentes, havendo só direito aos alimentos.

Na falta de descendentes legítimos ou ascendentes, se o pai nobre falecesse sem ter feito testamento, herdavam os colaterais. Somente na ausência total de outras classes de herdeiros legítimos, podiam os ilegítimos ser instituídos herdeiros dos bens deixados pelo de cujus.

A Constituição Imperial de 1824, em seu art. 179, n. 13, estabeleceu a igualdade entre todos perante a lei, igualando todos os filhos legítimos ou não.

Foi a lei 463, de 2/9/1847, que acabou com a distinção entre os filhos de nobres e de peões, declarando que os primeiros gozariam dos mesmos direitos hereditários que a Ordenação do Livro IV, Título 92, conferia aos segundos. Instituiu também que a filiação natural só se provaria por escritura pública ou testamento.

Com o advento do decreto 3.069, de 17/4/1863, os filhos naturais dos acatólicos puderam ser reconhecidos pelo pai, no assento de nascimento, tal como dispõe seu art. 45, n. 5, o que implica que o termo de nascimento tinha o mesmo valor da escritura pública, produzindo para o reconhecido todos os efeitos legais.

Com a decretação do casamento civil pelo decreto 181, de 24/1/1890, a paternidade natural passou a ser comprovada pela confissão espontânea ou pelo reconhecimento do filho em escritura pública, no ato de nascimento, ou em qualquer outro documento autêntico emanado do pai, como dispunha seu art. 7º, § 1º (PEREIRA, 1996, p. 20 a 22).

No Direito moderno, a situação dos filhos era extremamente diferenciada de acordo com o status de seu nascimento. Foram da lavra de Clóvis Beviláqua os primeiros rudimentos no sentido da proteção dos filhos naturais, quando da elaboração do Código Civil (CC) de 1916, encarregado pelo governo de Campos Sales (PEREIRA, 1996, p. 22).

Paulatinamente, a filiação foi equiparada à luz do modelo legislativo nacional, como a Carta Constitucional de 1937, que equiparou todos os filhos.

Posteriormente, na pós-modernidade, a situação dos filhos se alterou. Isso decorre das profundas mudanças no pensamento e na técnica, que o período conheceu, levando a uma alteração paradigmática do comportamento humano.

Nesse sentido, "a família pós-moderna pode ser entendida como o organismo social a que pertence o homem pelo nascimento, pelo casamento, pela filiação ou pela afinidade, que se encontra inserido em determinado momento histórico, observada a formação política do Estado, a influência dos costumes, da civilização, em que se encontra inserida" (MALUF, 2010).

No que tange à filiação, outras formas tomaram vulto, como o estabelecimento dos elos de filiação também entre pessoas do mesmo sexo ou nos estados intersexuais.

Houve também a equiparação legal entre os filhos, oriundos ou não da relação matrimonial, aos quais incidem os mesmos direitos e obrigações; as relações paterno/materno-filiais passaram a ser relações equitativas e de cooperação, visando à completa integração familiar (CORNU, 2001, p. 134).

No Brasil, o conceito de família e, consequentemente, da filiação sofreu uma significativa alteração de caráter ampliativo, pela Constituição Federal (CF) de 1988 e pelo CC de 2002, diferindo das formas antigas em face das suas finalidades, composição e papel de seus componentes em seu seio, com a mulher adquirindo os mesmos direitos que o marido.

Assim sendo, na pós-modernidade, podemos definir como filho todo ser gerado, de forma natural ou mediante o emprego de técnicas de reprodução artificial, que pertence ao núcleo familiar e que é equiparado entre si, por força do seu art. 227, § 6º, que veda qualquer designação discriminatória no tocante à filiação.

Assim sendo, a família e a filiação passaram a apresentar formas novas, fincadas no afeto, que passou a ter força de princípio jurídico.

É válido ressaltar que, em face do disposto na CF, arts. 226 e 227, que equiparou o status jurídico de todos os filhos, descabe na atualidade fazer qualquer menção discriminatória em matéria de filiação.

No que tange à filiação matrimonial, esta pode ser entendida como aquela que provém do casamento válido, convolado entre os pais, ainda que este venha a ser anulado ou considerado nulo, ainda que não tenha sido considerado putativo.

Congrega uma gama de presunções de filiação, elencadas no art. 1.597 do CC: "presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - os nascidos dentro dos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - os havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - os havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido".

A doutrina civil distingue três critérios de paternidade: a biológica (fruto do liame biológico entre os genitores e a prole), a jurídica (fruto da elaboração do registro de nascimento válido) e a socioafetiva, que decorre do vínculo de afetividade. É causa excludente da presunção de filiação, como dispõe o art. 1.599 do CC: "A prova da impotência do cônjuge para gerar, à época da concepção, ilide a presunção da paternidade".

Por outro lado, dispõe o art. 1.600 do CC que "Não basta o adultério da mulher, ainda que confessado, para ilidir a presunção legal da paternidade"; e também o art. 1.602 do CC: "Não basta a confissão materna para excluir a paternidade".

Na atualidade, ante os progressos da ciência, entendemos que não há mais razão em se manter a presunção de paternidade, em face do adultério confesso da mulher, podendo nesse sentido ser interposta a ação contestatória da paternidade.

Nos termos do art. 1.601 do CC, "Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos ilhós nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível" (PEREIRA, 2004, p. 332; SILVA, 2016, p. 1.597).

Assim, entendemos, com Regina Beatriz Tavares da Silva, que, "embora o direito à contestação da relação de filiação não possa caber indiscriminadamente a qualquer pessoa, se o filho é oriundo de casamento, esse direito não deve ser tido como privativo do marido", deve também ser atribuído ao companheiro, ao próprio filho e ao pai consanguíneo, em virtude do princípio constitucional da igualdade entre os filhos e da verdade real nas relações de filiação.

Há na jurisprudência posicionamentos favoráveis e desfavoráveis à ampliação do rol de legitimados a contestar a filiação oriunda do casamento (SILVA, 2016, p. 1.660).

Em relação à exigibilidade ou não da realização do exame de DNA contra a vontade do demandado na ação contestatória, constitui violação de direito da personalidade o constrangimento à realização do exame, mas a recusa em fazê-lo faz presumir-se a inexistência de vínculo parental, caso em que se aplica o disposto no art. 232 do CC, pelo qual a recusa à realização da perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretenda produzir com o exame.

Quanto à filiação socioafetiva, é inegável na atualidade o reconhecimento de que o afeto, além de ser um sentimento ligado à vida psíquica e moral do ser humano, apresenta também um valor ético e jurídico, ligado intrinsecamente aos princípios constitucionais, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana, presente no art. 1º, inciso III, da Carta Constitucional.

Assim, a filiação é, na pós-modernidade, fundada no afeto e na vontade, acima dos vínculos biológicos, ou legais.

A paternidade socioafetiva pode se manifestar na adoção, na reprodução assistida heteróloga, na posse do estado de filho oriundo da adoção à brasileira e na adoção informal ou de fato, gênese do chamado filho de criação.

Dispõe o art. 1.593 do CC que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem".

E assim, dada a pluralidade das formações familiares, esse conceito passou também a compreender a paternidade e a maternidade socioafetivas, cujo vínculo não advém de laço de sangue ou de adoção, mas de reconhecimento social e afetivo da parentalidade.

Como exemplos de paternidade socioafetiva, podemos citar a hipótese em que um homem registre, como seu, filho que sua esposa ou companheira teve de relacionamento anterior, criando e educando o filho alheio como se fosse seu, formando-se assim fortes elos familiares. No caso em que este homem venha a se separar da mulher, poderia pleitear a anulação do registro civil do menor?

Segundo entendimento anterior à entrada em vigor do CC de 2002, indiscutivelmente, a resposta seria sim. Hoje em dia, a resposta poderia ser não.

Essa situação refere-se à chamada "adoção à brasileira", por se tratar de reconhecimento voluntário da paternidade, quando não existe vínculo biológico, aproximando-se, desta forma, da paternidade adotiva, embora não se submeta ao devido processo legal.

No que tange à manutenção do vínculo da paternidade quando há dolo da mãe, que engana o pai registral, fazendo-o pensar que o filho é seu quando não o é, vemos que há, nesse caso, o vício de consentimento, que macula o elo socioafetivo por indução a erro (MONTEIRO; SILVA, 2010, p. 469 e 470).

Pode ocorrer, ainda, que o filho queira anular o registro de nascimento em que consta o nome do pai socioafetivo, para buscar o reconhecimento de sua paternidade biológica. Nesse caso, também devem ser analisados os interesses envolvidos, para que se conclua sobre a prevalência ou não da paternidade socioafetiva sobre a biológica.

Além das hipóteses supra, pode-se também questionar a validade de se ajuizar ação declaratória de paternidade ou de maternidade socioafetiva, com vistas ao reconhecimento da filiação, com todos os seus efeitos, como o direito a alimentos, o direito a visitas, direitos sucessórios, além de outras consequências da relação de parentesco, sendo válido ressaltar que na atualidade já vem sendo aceito o reconhecimento de parentalidade socioafetiva por via extrajudicial.

Um outro exemplo bastante comum é aquele em que o marido ou companheiro da mãe, que não registra como seu o filho desta mulher, mas vive com ela e acompanha a formação e o desenvolvimento daquela criança, criando-se vínculo afetivo entre eles, mesmo porque aquele homem, em várias situações, fez as vezes de pai, porque o pai biológico mostrava-se omisso em relação ao menor.

No caso de uma separação do casal, teria ele direito de continuar a ver a criança, mesmo que a mãe não queira?

Diante do princípio da prevalência dos interesses do filho e do princípio da paternidade socioafetiva, esse direito é assegurado pelo CC de 2002, cujo art. 1.593 estabelece que "O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem".

Vemos, assim, que a socioparentalidade vem prestigiada no CC atual, desde que mostre efetivo benefício à higidez psicofísica do filho.

Entendemos que na atualidade "não há como acreditar em regras absolutas no Direito de Família, pois cada caso deve ser analisado diante das circunstâncias concretas apresentadas, embora, por trás, esteja sempre a lei, dando as diretrizes maiores para a solução dos conflitos" (CARBONNIER, 1992, p. 20; MONTEIRO; SILVA, 2010, p. 471 e 472).

Isto porque a família abrange, como vimos, um componente histórico e sociológico, cujas normas jurídicas são moldadas pelos conteúdos sociais (MALUF, 2010, p. 3).

A pós-modernidade trouxe ainda a possibilidade da multiparentalidade, tendo em vista a parentalidade socioafetiva. Ou seja, a possibilidade de o filho possuir dois pais reconhecidos pelo Direito: o pai biológico e o pai socioafetivo.

A essa concepção completa Christiano Cassettari, para quem é possível "ter dois pais ou duas mães totalizando três ou quatro pessoas no assento de nascimento da pessoa natural" (CASSETTARI, 2017, p. 183).

Analisemos o seguinte exemplo: uma determinada pessoa é registrada por um pai e convive com ele por anos como seu filho biológico.

Posteriormente a mãe confessa que este não era o seu verdadeiro pai biológico. O filho em questão tem o direito personalíssimo do conhecimento de sua origem biológica. Por outro lado, não se pode negar o papel assumido pelo pai socioafetivo, uma vez que se estabeleceu um liame de afetividade entre as partes fruto da convivência paterno-filial.

O tema exige acurado exame e muita ponderação, pois traz consignado o inconveniente de abrir sério precedente para o estabelecimento da filiação com o fim único de atender preponderantemente a interesses patrimoniais.

A multiparentalidade é, portanto, um fato que decorre da atual conjuntura social, que apresenta diversas modalidades de família, e em especial a família reconstituída ou recomposta, decorrente do número crescente de divórcios que acometem os casais, levando assim à convivência dos filhos com seus padrastos e madrastas, novos cônjuges/companheiros de seus pais.

Entendemos que, em face da dignidade da pessoa humana, a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto a biológica.

Assim sendo, entendemos que devem ser mantidas incólumes as duas paternidades, a biológica e a sociafetiva, com o acréscimo de todos os direitos parentais, já que ambas fazem parte da trajetória humana.

Nesse sentido, na chamada teoria tridimensional de filiação, entende-se possível a determinação de uma multiplicidade de critérios de filiação: fazendo coexistir o critério biológico, afetivo, ontológico.

Diante disso, se uma pessoa tem mais de um pai, poderia ter mais de um sobrenome, uma herança, uma relação de parentesco.

O Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou recentemente importante tese sobre Direito de Família no atual cenário brasileiro. O tema de Repercussão Geral nº 622 (RE nº 898.060-SC) envolvia a análise da prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da biológica. O Plenário do STF deliberou que "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".

Pode-se, assim, concluir que, na atual valorização do afeto como bem jurídico, podem plenamente coexistir duas relações de afeto com a mesma criança: a biológica e a socioafetiva, tendo em vista o melhor interesse da criança. Uma tendência contemporânea é, em suma, a valorização da teoria tridimensional da condição humana, que destaca a influência genética, a afetiva e a ontológica na formação da pessoa.

Conclusão

O passar do tempo histórico, a evolução dos costumes, as alterações legislativas e as decisões judiciais que ocorreram nos últimos tempos recepcionaram diversas modalidades de família e de filiação, equiparando as diversas formas convivenciais e as diversas origens dos vínculos de filiação existentes, fazendo com que o afeto obtivesse status de princípio jurídico e, dentre as diversas modalidades de multiparentalidade, surgisse e se sedimentasse como forma legítima de filiação existente.

__________

O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.

 








__________

*Carlos Alberto Dabus Maluf é professor titular de Direito Civil da USP. Conselheiro do IASP. Advogado em SP.

*Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf é mestre e doutora em Direito Civil pela Fadusp. Membro do IASP. Advogada em SP.

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