Por conta da atual pandemia e da quarentena imposta, vivemos dias atípicos, inclusive em nossa relação com o mundo natural. Ao alvorecer, o canto dos pássaros tem ecoado com distinção pela cidade de São Paulo; já durante o dia, respiramos um ar cada vez mais limpo, e ao anoitecer, o céu de nossa metrópole vem se revelando mais estrelado.
O fato é que passaremos as próximas semanas protegidos em nossos lares, como se "bunkers" fossem, de modo que um pouco de bucolismo será essencial para enfrentarmos a crise humanitária, econômica e jurídica que vem pela frente.
O mundo praticamente "parou", mas as relações jurídicas continuam mais vivas do que nunca: uma infinitude de obrigações foram afetadas pela pandemia do novo coronavírus, Sars-CoV-2, causador da covid-19.
As consequências serão sentidas nas mais diversas áreas: com relação aos empregados que tiverem os salários prejudicados, quais serão os seus direitos trabalhistas? Sem receber o aluguel, poderá o locador denunciar o contrato de locação? Caberá despejo? Terá o locatário direito de renegociar o valor da locação? Será possível ao devedor de alimentos rediscutir a pensão alimentícia ou mesmo o acordo de convivência? Haverá prisão civil por dívida alimentar? O pagamento por serviços não utilizados, como clube, academia, escola, transporte escolar e passagens aéreas, será devido? E com relação a eventos que tiveram de ser cancelados, como festas de casamento? Como ficam as obras em edifícios? Podem os síndicos impedí-las de terem marcha durante a pandemia? Se não houver condições de pagar a mensalidade do seguro saúde, será legítima a suspensão do plano? No tocante ao compromisso de compra e venda inadimplido por perda da capacidade financeira do promitente comprador, será possível a retenção do sinal pelo promitente vendedor? E por aí vai, sem limites.
Como advogados atuantes no foro, muito nos preocupa a perspectiva de que o Poder Judiciário se torne refém de uma enxurrada de ações judiciais, em detrimento de todos os jurisdicionados. Aliás, o PL 1.179/2020, de autoria do senador Anastasia, que estabelece um Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET), expressamente demonstra preocupação em mitigar a revisão judicial das obrigações, assim como evitar que o Judiciário seja inundado por demandas visando a rediscussão de obrigações pretéritas (consoante a exposição de motivos do parecer exarado pela senadora Simone Tebet, relatora do PL no Senado).
Seria interessante, nesse contexto, que o RJET vislumbrasse um novo requisito para o regular trâmite processual: a comprovação de prévia tentativa de autocomposição, o que certamente mitigaria o número de demandas, uma vez que teríamos partes adequadamente assistidas, em momento anterior ao desgastante embate judicial. Ora, para enfrentarmos o atual momento, será preciso solidariedade, compreensão, colocar-se no lugar do próximo e pensar além dos próprios interesses – qualidades que deveriam fazer parte da cultura de todos os brasileiros.
Ainda que o ordenamento jurídico pátrio não imponha aos litigantes a comprovação de precedente tentativa de autocomposição, existem procedimentos interessantes pelos quais se faz possível evitar uma contenda: os métodos alternativos para a solução de conflitos, com destaque para a mediação.
O mediador, nos termos do §3º do artigo 165 do Código de Processo Civil, atuará preferencialmente (mas não só) nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliando os interessados a "compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos".
Vale a pena esclarecer ao leitor algumas diferenças fundamentais entre mediação e conciliação: enquanto a conciliação é um método de solução de controvérsias pelo qual um conciliador (que não necessariamente domina o assunto do embate) buscará facilitar a comunicação, permitindo que as partes "conversem", espera-se do mediador ampla experiência no tema em pauta, devendo atuar não apenas para mediar os interesses, como também para alertar as partes, com imparcialidade e isenção, sobre as consequências, riscos e benefícios de cada posição, procurando conduzí-las à solução que melhor as atenda, evitando assim um longo litígio (e consequentemente gastos com custas judiciais e honorários advocatícios), contribuindo de forma inestimável com o já saturado Poder Judiciário.
Dessarte, nos parece altamente recomendável que nossas instituições iniciem em curto espaço de tempo campanhas de conscientização da sociedade quanto à importância da solução consensual de conflitos no período crítico que vivemos, chamando especial atenção para a mediação.
Nesse sentido, cumpre lembrar que o artigo 9º da lei 13.140/15, autoriza que a mediação extrajudicial seja desempenhada por "qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação, independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou associação, ou nele inscrever-se".
A pandemia do novo coronavírus faz-nos lembrar de nossa vulnerabilidade. O mundo, tal como conhecemos, não será mais o mesmo. Para que a atual e as futuras gerações sobrevivam, será fundamental uma sociedade mais solidária, colaborativa e consciente.
O emprego da mediação vem de encontro com essa nova era, por ser recurso mais econômico, ágil na resolução de disputas e dotado de responsabilidade social, oportunizando às partes ques construam, de comum acordo, soluções que sejam economicamente mais interessantes e privilegiem a autonomia da vontade.
Mutatis mutandis, assim como o distanciamento social é um dever cívico, o mesmo se pode dizer quanto ao empenho das partes para que reequilibrem a sua avença sem depender de uma imprevisível imposição do Estado-Juiz, a qual pode a um só tempo desagradar ao vencedor e ao vencido.
Seremos os protagonistas de um novo capítulo da história da civilização moderna. Como gostaríamos de ser lembrados? Como litigantes individualistas, ou como integrantes do novo mundo?
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*Arthur Zeger é advogado, mestre, professor de Direito Civil, Direito do Consumidor e Processo Civil.
*Hugo Chusyd é formado pela primeira turma da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado (1999/2004), membro da Comissão de Direito de Família do Instituto dos Advogados de São Paulo e advogado.