Crime da 113 Sul: Quando a investigação virou arma da acusação
O documentário "O Crime da 113 Sul" expõe falhas nas investigações do assassinato de José e Maria Villela, revelando manipulação de provas e confissões forçadas.
quarta-feira, 26 de março de 2025
Atualizado às 12:52
"Francisco Mairlon ele não tem nada a ver disso. Ele é inocente, entendeu? Ele é inocente!1 Ele foi levado num processo a pagar por um crime que não cometeu. Ele tá 14 anos inocente", disse Paulo Santana, custodiado na Penitenciária de Montes Claros (MG), ao assumir sua culpa para advogados do Innocence Project Brasil, em janeiro de 2024.
Se o dia 28/9/09 ficou marcado para muitos em razão do brutal assassinato dos advogados José Guilherme Villela e Maria Villela, e da funcionária que residia com eles há mais de 20 anos, ocorrido no Edifício Leme, da Superquadra 113 Sul do Distrito Federal, atualmente o motivo de choque de grande parcela da sociedade brasileira, especialmente a operadores do Direito, encontra contornos distintos dos fatos em si.
O recente documentário intitulado "O Crime da 113 Sul", desenvolvido pelos jornalistas Reynaldo Turollo e Gabriel Tibaldo, veiculado na Globoplay, tem feito surgir naqueles que tomam conhecimento do caso de 2009 reflexões diversas, agora voltadas também para os desmandos perpetrados por agentes públicos que atuaram desde as investigações policiais.
Realmente, não têm como passar despercebidos os tropeços no início das investigações policiais, que contaram com a fantasiosa solução do crime a partir dos sentidos "aguçados" de uma vidente, que teria visto o piscar de olhos de uma das vítimas em folha de jornal. Foi esse "testemunho" (com o perdão técnico da qualificação empiricamente equivocada) que impulsionou a primeira delegada de polícia a presidir o inquérito a plantar uma prova da cena dos fatos (chave da porta de serviço) na casa de um inocente e a noticiar publicamente que a polícia havia chegado à solução dos crimes.
Ao lado desse indivíduo, que nunca teve qualquer relação com o triplo homicídio, outros dois homens igualmente inocentes foram colocados na cena dos fatos pela autoridade policial e presos, sem qualquer rastro de prova que justificasse suas imaginadas atuações.
No entanto, poucos dias mais tarde, veio à tona perícia técnica realizada na suposta chave apreendida, em que ficou configurada a farsa perpetrada pela delegada de polícia e alguns de seus agentes, que acabaram processados e condenados pela manipulação das investigações, cumprindo inclusive tempo de prisão.
Importante destaque merece o fato de que, aquele primeiro indivíduo, inocente, que foi vítima da ação criminosa e injustamente apontado como autor do delito, chegou a confessar que aquela prova plantada em sua casa seria de seu conhecimento - o que não nunca foi verdade. Pois esse foi só o primeiro episódio de uma confissão falsa, extraída de um inocente, no Crime da 113 Sul.
Somente um ano após a identificação da manipulação intentada pelos agentes de polícia é que surgiu o primeiro indício verdadeiro acerca dos executores do grave crime. Curiosamente, essa informação foi obtida por uma Delegacia de Polícia de Brasília distinta daquela que presidia o inquérito policial e que, ainda assim, acabou atuando em uma investigação paralela dos mesmos fatos.
Naquela altura, setembro de 2010, a filha do casal Vilella, Adriana, havia acabado de ser denunciada como a suposta mandante do triplo assassinato, embora fossem absolutamente desconhecidos os executores do crime. Tal hipótese, que até hoje vigora, foi construída pela CORVIDA, delegacia especializada em crimes dolosos contra a vida, que assumiu o caso depois do fiasco da primeira etapa das investigações.
Assim, em 16/11/10, Leonardo Alves, que havia sido porteiro no Edifício Leme por mais de uma década, prestou seu segundo depoimento sobre os fatos (fora ouvido anteriormente na condição de ex-porteiro do Edifício Leme) e, desta vez, confessou sua participação como um dos executores do crime, ao lado do sobrinho Paulo Santana. Dois dias depois, o próprio Paulo reiterou, em pormenores, a narrativa de Leonardo, tendo explicitado à autoridade policial como ambos planejaram o crime no mesmo dia em que o executaram, com específico propósito financeiro, mas que acabaram assassinando as vítimas - em nítida confissão da prática de um crime de latrocínio.
Mas tais confissões colidiam com a narrativa já apresentada pela CORVIDA e endossada pelo Ministério Público do Distrito Federal. Aqueles crimes, com inequívoca brutalidade em sua execução, materializada em mais de 70 facadas, na opinião da autoridade policial, exigia a presença de um mentor intelectual, de uma mandante.
E como se todos os delegados que conduziam as investigações estivessem tomados pela mesma visão turva, impossibilitados de enxergar com a objetividade técnica que se espera desses profissionais - visão de túnel é o fenômeno que ocorre quando a autoridade se agarra a uma suspeita inicial, buscando coletar somente provas que corroborem essa crença e descartando as que a contrariem -, os próximos depoimentos que viriam a ser extraídos de Leonardo Alves e Paulo Santana - isso mesmo, extraídos -, serviriam tão somente para preencher as lacunas fáticas existentes no imaginário desses delegados de polícia e de suas equipes de investigadores.
Assim, como em uma história contada do fim para o início, passou-se a escrever o enredo do que, até o passado recente, grande parte das pessoas acreditava ter acontecido no sexto andar do bloco C da 113 Sul, no longínquo dia 28/8/09, uma sexta-feira à noite.
A partir de seu quinto depoimento prestado à autoridade policial, Leonardo Alves mudou radicalmente sua versão sobre os fatos: passou a indicar Adriana Villela como a mandante dos crimes, retirou-se da execução do crime no apartamento e incluiu terceiro em seu lugar, como o executor das facadas ao lado de Paulo, identificando-o inicialmente como "Mairton", com T, mas, após novos ajustes em depoimentos, passou a apontar como Francisco Mairlon.
Em estrita harmonia, Paulo Santana, após ser transferido para a mesma Delegacia especializada em que estava preso Leonardo, logo mudou sua versão sobre os fatos, repetindo os nomes Francisco Mairlon e Adriana Vilella nos mesmos momentos da cronologia fática inaugurada na quinta narrativa de Leonardo.
Pois, Francisco Mairlon, no mesmo dia em que se viu acusado pelo bárbaro crime que resultou no assassinato de três pessoas, após ter sido submetido a três depoimentos, sem a presença de um defensor, sem a possibilidade de descansar, dormir ou se alimentar por horas a fio, passou envolver a si mesmo no Crime da 113 Sul, mas com uma versão inédita dos fatos, tendo ficado do lado de fora do apartamento do casal Villela, como vigia, enquanto os executores Leonardo e Paulo subiram no apartamento.
No total, foram quinze depoimentos prestados na fase policial por Leonardo, nove por Paulo e seis por Francisco Mairlon. Por algum motivo, definiu-se por uma versão construída com parte da narrativa de Leonardo e parte da de Paulo. Nenhuma credibilidade foi conferida à narrativa "confessada" por Francisco Mairlon, que seguiu como executor do crime, ao lado de Paulo, enquanto Leonardo teria atuado como intermediário da suposta mandante Adriana.
Incrivelmente, a retratação de Paulo ainda em solo policial, em seu nono e último depoimento, quando confirmou que tudo o que havia sido falado sobre Francisco Mairlon não passava de absoluta invenção por parte dele e de Leonardo, simplesmente foi ignorada pelo Ministério Público quando do oferecimento da denúncia e pelo juízo que pronunciou Mairlon.
E uma vez construída a narrativa acusatória a partir das confissões extrajudiciais de Leonardo, Paulo e Francisco Mairlon, muito embora colidentes entre si, as autoridades simplesmente deixaram de buscar outros elementos que pudessem melhor esclarecer o ocorrido. Em completo paradoxo, uma cena de crimes que envolveu 73 facadas, três vítimas e diversos cômodos de um apartamento não aguçou a curiosidade nem da CORVIDA, nem do Ministério Público, nem do juízo de conhecimento, por elementos periciais que pudessem corroborar o cenário assumido como real.
Nem mesmo a prova mais evidente que deveria ter sido buscada à época, o confronto genético entre o DNA dos réus "confessos" e o material genético extraído dos diversos objetos e vestígios coletados na cena do crime, chegou a ser produzida.
Em 2023, o Innocence Project Brasil chegou a protocolar um pedido de produção antecipada de provas, em nome de Francisco Mairlon, para que fossem realizados confrontos genéticos e novo mapeamento de ERBs. O requerimento, contudo, restou indeferido em primeiro e segundo grau de jurisdição ao argumento de que sua condenação estava ancorada nas malsinadas confissões do inquérito policial e não em provas técnicas.
A recusa em conhecer a verdade é desconcertante.
Um só match positivo entre o DNA de Leonardo e um resíduo qualquer colhido no apartamento das vítimas faria cair por terra a mirabolante narrativa de que teria sido Francisco Mairlon, e não Leonardo, a ingressar no apartamento e assassinar as vítimas, na companhia de Paulo.
Mas a verdade ainda assim veio à tona. Até recentemente, há quem pudesse sustentar que um dos crimes mais traumáticos cometidos no planalto central do país havia sido de fato desvendado, com a punição dos culpados. Hoje, não mais.
A realidade que ilustra os inúmeros vídeos gravados pelos delegados que protagonizaram cenas explícitas de má condução investigativa, evidencia, a quem quiser enxergar, que nunca houve uma apuração interessada efetivamente na identificação dos fatos ocorridos no dia 28/8/09, mas sim uma orquestração de narrativas, manipuladas pelos inquiridores, para a manutenção de uma hipótese concebida de forma precoce e fatalmente equivocada.
Com o estigma de uma avaliação definida e aplicada no período medieval, a partir de práticas probatórias que ficavam a cargo dos "juízos de Deus" ou ordálios, fato é que medidas investigatórias abomináveis permanecem encontrando eco no processo legal, tal como a "rainha das provas", a confissão.
Ao ser indagada pelos jornalistas sobre as pressões ignominiosas que exerceu para obter uma mudança de versão dos investigados, a delegada Mabel Faria limitou-se a classificar suas promessas enganadoras como "técnicas de inquirição". Em determinado depoimento, registrado em vídeo, a autoridade não se furta a dizer a Paulo que sua família inteira estaria sob risco enquanto ele não validasse a tese do crime de mando.
O fenômeno das falsas confissões e seus graves reflexos para a ocorrência de condenações injustas tem como respaldo dados sólidos, publicados pelo Innocence Project de Nova York, que revelam que 29% dos 375 réus inocentados por exame de DNA nos Estados Unidos confessaram crimes que não cometeram.2
Esses números indicam que, apesar da confiança cultural no poder da confissão, muitos fatores podem comprometer a veracidade da autoincriminação.
Mas, afinal, por que uma pessoa confessa um crime que não cometeu?
Coerção policial, vulnerabilidade mental, idade e condições físicas e socioeconômicas adversas, são algumas das razões que levam pessoas inocentes a confessarem falsamente.
A intimidação policial em interrogatórios longos e exaustivos, fome, sede, estresse, limitações mentais ou educacionais podem levar o suspeito a confessar falsamente um crime simplesmente para encerrar seu tormento.
O uso de técnicas maliciosas por parte de investigadores, com afirmações falsas de que foram encontradas provas que incriminam o suspeito ou que o coautor do crime já teria confessado, igualmente impulsionam indivíduos a assumirem crimes de terceiros.
Por último, mas não menos frequente, promessas de alívio imediato (daquela tortura psicológica) ou punições mais brandas acabam sendo métodos eficientes para a produção de falsas confissões.
A organização norte-americana False Confessions, referência no levantamento de dados envolvendo condenações equivocadas a partir de falsas acusações, apurou que 68% dos jurados acreditam que uma pessoa inocente dificilmente confessaria um crime que não cometeu, e que entre 73% e 81% dos acusados são considerados culpados, mesmo quando a falsidade da confissão é comprovada.3
Tais dados refletem a supervalorização da confissão como prova no processo penal, por vezes adotada como alternativa rápida e prática para a solução de um crime, embora absolutamente falha.
É por essas e tantas outras razões que, em junho de 2024, a 3ª seção do STJ estabeleceu novas diretrizes que deverão guiar todos os processos criminais na valoração de confissões extrajudiciais (AgRg no REsp 2.123.334/MG).
A confissão extrajudicial deverá ser analisada sob o prisma global das condições em que foi obtida, das vulnerabilidades do acusado e da existência de outros elementos que a ela deem guarida. Deve guardar coerência intrínseca e extrínseca, em confronto com o restante da prova. E, uma vez produzida à revelia de métodos comprovadamente legítimos e seguros, deverá ser relegada como meio de prova, no intuito de evitar a condenação de inocentes.
Como restou cristalino no terceiro episódio da série O Crime da 113 Sul, o desenrolar das falsas confissões extraídas pela polícia especializada corresponde à exatidão ao "conjunto de erros no interrogatório policial", detalhado pelo Exmo. ministro Ribeiro Dantas no referido precedente, sepultando qualquer credibilidade que se pretendesse conferir às confissões obtidas exclusivamente em solo policial.
Foram dezenas de horas de depoimentos, com ajustes nas narrativas a partir de informações fornecidas pela própria autoridade policial e até mesmo de alusões a ameaças a que estariam expostos os familiares dos depoentes, além de promessas de benefícios inverídicos acaso novas pessoas fossem incluídas na dinâmica dos fatos.
Embora estarrecedores, uma vez que ilustram os diversos métodos de manipulação que envolveram as confissões extraídas à época, esses vídeos nunca foram sopesados pelos julgadores que, no entanto, fizeram dessas confissões o único lastro da autoria delitiva para justificar a condenação de Francisco Mairlon a 47 anos de reclusão, pela prática de um crime que nunca cometeu, dos quais já cumpriu assombrosos 14 anos.
O comportamento das autoridades policiais no Crime da 113 Sul deveria entrar nos anais da Justiça não como um exemplo de "técnicas de inquirição" de uma investigação séria e confiável, como sugeriu a delegada Mabel Faria, e sim o oposto disso, como uma prática a ser abolida de uma vez por todas dos métodos investigativos em nosso país.
É triste constatar a complacência de uma advogada diante do que se passou naquela delegacia. Mas causa ainda mais espanto a postura do Ministério Público em seguir defendendo a atuação da polícia especializada com unhas e dentes, ao invés de exigir consequências para tantos e tão graves desmandos.
A soberania dos veredictos inscrita na CF/88 jamais pode ser lida como dispensa da incumbência que recai sobre o Judiciário de realizar o controle jurisdicional da legalidade da prova. Confissões arrancadas sob falsos pretextos não podem, isoladamente, servir de lastro à condenação de quem quer que seja. É imprescindível a realização de novo julgamento, livre de tais elementos ilicitamente produzidos.
Não será surpresa alguma se, no futuro próximo, o Crime da 113 Sul assumir o nada orgulhoso lugar do caso dos irmãos Naves como leading case da falha no controle judicial da atividade policial, que promoveu a condenação de pessoa inocente, a partir de falsas confissões e incriminações extraídas na fase de inquérito.
Nunca é tarde demais para desfazer os erros do passado. Ainda que o tempo não volte atrás, é preciso fazer cessar a injustiça e só assim evitar que se repita.
___________
1 Trecho de depoimento de Paulo Santana, reproduzido em matéria veiculada no Jornal Nacional de 01 de fevereiro 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2024/02/01/crime-da-113-sul-depoimento-de-assassino-confesso-pode-provocar-reviravolta-no-caso.ghtml.
2 Dados obtidos em https://innocenceproject.org/false-confessions/#:~:text=It's%20hard%20to%20imagine%20why,lying%20about%20evidence%2C%20and%20more
3 Dados obtidos em https://falseconfessions.org/fact-sheet/
Dora Cavalcanti
Advogada criminal, sócia da Cavalcanti Sion Advogados.