Acordo de sócios e regras de gestão em sociedades médicas
Sociedades médicas estruturam a gestão de clínicas e hospitais, divididas entre empresárias e não empresárias, com acordo de sócios para governança.
terça-feira, 25 de março de 2025
Atualizado em 24 de março de 2025 16:07
1. Introdução
Em um cenário marcado pela crescente especialização e colaboração entre profissionais da saúde, a formação de uma sociedade surge como o modelo mais eficiente para estruturar a gestão, captar recursos e viabilizar a profissionalização do negócio. Essa organização coletiva facilita a expansão das atividades médicas e fortalece a posição competitiva no mercado.
As sociedades médicas podem ter como objeto atividade profissional de médico, gestão de clínicas e hospitais até a realização de procedimentos em conjunto, podendo ser empresárias ou não empresárias, conforme possuam (ou não) o elemento de empresa.1
As principais diferenças entre essa classificação estão (i) na aplicação da lei de falência e recuperação de empresas apenas para as sociedades empresárias e; (ii) o local de registro: as sociedades empresárias são registradas na Junta Comercial, enquanto as não empresárias são registradas no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas.
2. Sociedades simples
As sociedades não empresárias, são denominadas de sociedades simples lato sensu, registradas no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, geralmente se estruturam como sociedade simples pura ou LTDA. - sociedade limitada.2
- A sociedade simples pura (stricto sensu) é caracterizada pela responsabilidade ilimitada de todos os sócios, que respondem com seus bens pessoais pelas obrigações da sociedade.
- A sociedade limitada, por sua vez, restringe a responsabilidade dos sócios ao valor do capital social subscrito e não integralizado, oferecendo maior proteção patrimonial aos sócios.
Essas estruturas costumam ser escolhidas por grupos médicos que buscam simplicidade administrativa e um regime tributário mais favorável, mantendo o foco na atividade profissional sem as complexidades das sociedades empresárias.
Sociedades empresárias
As sociedades empresárias surgem quando a atividade intelectual deixa de ser o foco principal do negócio, passando a prevalecer uma estrutura organizacional com caráter empresarial - o chamado elemento da empresa. Nesses casos, as formas societárias mais comuns são aquelas que limitam a responsabilidade dos sócios, como:
- LTDA. - Sociedade Limitada: Modelo amplamente utilizado, oferece flexibilidade administrativa e protege o patrimônio pessoal dos sócios, limitando sua responsabilidade ao valor do capital social subscrito e não integralizado.
- S.A. - Sociedade Anônima: Mais adequada para empreendimentos de grande porte, possui estrutura mais complexa e permite a captação de investimentos por meio da emissão de ações, com responsabilidade limitada aos acionistas.
Essas modalidades possibilitam uma organização mais robusta, com foco no crescimento do negócio, maior capacidade de captação de recursos e uma governança mais estruturada, adequada a um perfil mais capitalista de gestão.
Além disso, permite a sociedade se beneficiar do instituto da recuperação judicial e extrajudicial em caso de crise econômica-financeira.
3. Importância do acordo de sócios
Ao escolher a forma societária, é fundamental que os grupos médicos considerem fatores como o porte da clínica, a responsabilidade dos sócios e as exigências de governança, adequando a estrutura à natureza e aos objetivos do negócio.
Entretanto, independentemente da área de atuação, um elemento essencial para o bom funcionamento de qualquer sociedade é a existência de um acordo de sócios, que discipline o funcionamento e a governança da sociedade.
O acordo de sócio é um instrumento parassocial, que está intimamente relacionado ao contrato social, mas que traz regras de convivência entre os sócios e entre os sócios a sociedade, sem que a publicidade do contrato social, pois o acordo de sócios não é registrado na Junta Comercial ou no Cartório de Registro de Pessoas Jurídicias.
O acordo de sócio pode tratar de qualquer aspecto estrutural da sociedade, desde que não seja contrário ao contrato social e a lei, especialmente sobre governança corporativa, que é um aspecto essencial para a estabilidade e o crescimento sustentável de sociedades médicas.
Entre as cláusulas mais importantes de um acordo de sócios em sociedades médicas, destacam-se aquelas que regulam a governança, a permanência estratégica dos sócios, a atividade individual de cada sócio na sociedade, a distribuição de lucros e perdas sociais e os mecanismos de proteção contra conflitos. Tais dispositivos são essenciais para garantir o alinhamento entre os sócios e proteger o negócio em momentos críticos.
4. Principais regras dos acordos de sócios
As regras de governança definem como as decisões serão tomadas, delimitando os direitos de voto e estabelecendo quórum qualificado para temas sensíveis, como alterações no objeto social ou decisões financeiras relevantes. A clareza sobre os poderes da administração e a definição de papéis entre sócios administradores e investidores evitam impasses e fortalecem a governança.
Lock-up clause
A lock-up clause (cláusula de permanência) desempenha um papel crucial em sociedades médicas, onde a continuidade dos sócios médicos é estratégica para o desenvolvimento do negócio. Essa cláusula estabelece um período mínimo de permanência dos sócios, com previsão de multa em caso de saída antecipada.
Seu objetivo é proteger a sociedade em momentos críticos, como períodos de fusões, expansões ou transições de liderança, preservando a estabilidade do quadro societário.
Em sociedades médicas, a fidúcia (confiança entre os sócios) e a qualidade técnica são essenciais para a reputação e a continuidade das operações. Por isso, a lock-up clause se torna indispensável, garantindo que a saída de um sócio estratégico não comprometa o desempenho da sociedade ou o relacionamento com os pacientes.
Tag e Drag Along
Caso as sociedades médicas adotem a forma empresarial, especialmente com foco em uma possível operação de M&A, as cláusulas de Tag Along e Drag Along tornam-se essenciais para proteger os interesses dos sócios e garantir segurança nas futuras alienações da sociedade.
- Tag Along (direito de venda conjunta): Essa cláusula protege os sócios minoritários ao garantir que, se o sócio majoritário vender sua participação, os minoritários tenham o direito de vender suas quotas nas mesmas condições e pelo mesmo preço. Esse mecanismo assegura isonomia e evita que minoritários fiquem com um novo sócio sem seu consentimento.
- Drag Along (direito de arrastamento): Essa cláusula, por sua vez, protege os interesses do sócio majoritário e facilita uma eventual venda da sociedade. Ela concede ao majoritário o direito de obrigar os minoritários a vender suas participações sob as mesmas condições de uma proposta recebida para 100% da sociedade. Por meio do Drag Along, evita-se entraves e se valoriza a empresa como um ativo único em caso de venda.
Em sociedades médicas estruturadas como empresárias, essas cláusulas são ainda mais importantes, pois garantem segurança jurídica, protegem os sócios minoritários e viabilizam operações estratégicas com maior atratividade para investidores.
Right of First Refusal e Right of First Offer
Além disso, é importante incluir mecanismos de controle sobre a venda de participações com as ROFR e ROFO clauses (Right of First Refusal e Right of First Offer). O ROFR concede aos sócios o direito de comprar quotas antes de terceiros, enquanto o ROFO obriga o sócio vendedor a oferecer sua participação aos sócios remanescentes antes de buscar novos compradores.
Non-compete
A proteção do goodwill da sociedade é garantida por uma Non-compete Clause (cláusula de não concorrência), impedindo que sócios saiam e atuem em negócios concorrentes. Essa cláusula deve ser razoável em escopo, prazo e território, alinhada ao mercado médico.
Mecanismos de resolução de impasses (deadlock resolution mechanisms)
Em sociedades médicas, a resolução eficiente de impasses entre sócios é fundamental para garantir a continuidade da sociedade. Entre os mecanismos mais comuns, destacam-se:
- Shotgun clause: Prevê que, diante de um impasse, um sócio ofereça comprar a participação do outro. O sócio que recebe a oferta deve aceitar a venda ou comprar as quotas pelo mesmo preço oferecido. É um método rápido, mas exige equilíbrio financeiro entre as partes.
- Buy-Sell agreement: Define que, em situações de impasse, qualquer sócio pode iniciar um processo de compra ou venda de quotas com base em critérios pré-estabelecidos, como avaliação de mercado ou laudo contábil.
- Russian roulette clause: Variante da shotgun clause, onde um sócio faz uma proposta de compra ao outro, que deve aceitar a oferta ou comprar as quotas pelo mesmo preço.
- Texas shootout: Utilizado em situações de licitação interna: ambos os sócios apresentam propostas seladas para comprar as quotas um do outro, e aquele que oferecer o maior valor adquire a participação.
Esses mecanismos, se adequadamente definidos no acordo de sócios, previnem litígios prolongados, preservam o patrimônio da sociedade e oferecem uma solução ágil para divergências, assegurando a continuidade do negócio.
Exclusão extrajudicial
A convivência em sociedade pode gerar disputas que, muitas vezes, inviabiliza a continuidade da sociedade. A disputa entre sócios pode ser resolvida com os mecanismos de resolução de impasses (deadlock resolution mechanisms), mas muitas vezes não é o melhor caminho e, portanto, é sugerido incluir cláusula que autorize a exclusão extrajudicial de sócio por justa causa.
Nessa hipótese, os demais sócios poderão excluir de forma extrajudicial o sócio que estiver colocando em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade.
Limitações de responsabilidade
Além de tudo isso, especialmente, em sociedades profissionais de médicos, o acordo de sócios pode ser um instrumento essencial para definir regras de responsabilização interna em casos de erro médico. Afinal, no âmbito do direito do consumidor, a responsabilidade do médico, conforme observa a doutrina, é tratada com severidade:
[...] As regras, por assim dizer, procedimentais do Código de Defesa do Consumidor substituíram tais considerações pela possibilidade de inversão, tout court, do ônus da prova, em favor do consumidor, pelo juiz. Assim, a pretensão indenizatória daquele que sofreu dano causado por certo profissional liberal no exercício de sua atividade não precisa mais demonstrar a natureza contratual dessa responsabilidade, nem ingressar no mérito da natureza da obrigação (de meios ou de resultado), para eximir-se do ônus de provar a culpa pelo inadimplemento.
Mais do que uma simples mudança de técnica jurídica, trata-se, como se percebe, de substituir a imprescindível investigação dos elementos do caso concreto (fosse para a qualificação da natureza - de meios ou de resultado - da obrigação, conforme as expectativas legitimamente geradas no paciente pelo médico, fosse para a identificação da responsabilidade contratual ou aquiliana, a partir da própria existência de uma avença prévia entre eles) por um juízo de verossimilhança ou hipossuficiência que, cumpre ressaltar, são reconhecidas invariavelmente em nossa prática jurisprudencial diante de relação de consumo. Da caracterização do paciente como consumidor decorre de modo quase automático a justificativa da inversão do onus probandi, sem maiores considerações quanto ao vínculo concretamente estabelecido entre as partes.
Assiste-se, assim, ao agravamento da responsabilidade do médico com base na lógica consumerista - muito embora seja questionável se se deve mesmo aplicar à relação médico-paciente disciplina idêntica àquela que protege o adquirente de produtos e serviços no mercado de consumo. [...]
Sem prejuízo de eventual desconsideração da personalidade jurídica que pode levar à responsabilidade dos sócios, a sociedade, em regra, responde perante terceiros pelos atos praticados em seu nome. Nesse quadro, a proteção do caixa da sociedade em caso de possíveis erros de seus sócios, deve ser equacionado visando a proteção do interesse comum.
Nesse sentido, o acordo e sócios pode estabelecer mecanismos de reembolso e compensação entre os sócios, garantindo que prejuízos decorrentes de condutas individuais não afetem o patrimônio coletivo.
A cláusula de indenização e reembolso pode prever que, se um sócio causar prejuízos à sociedade em decorrência de erro médico por culpa ou dolo, ele será responsável por ressarcir os danos causados. Assim, protege-se o caixa social e evita-se que os demais sócios arquem com prejuízos alheios.
O acordo de sócios, ainda, pode estipular regras de rateio de custos com processos judiciais, acordos extrajudiciais e honorários advocatícios, definindo em que situações esses custos serão de responsabilidade individual ou compartilhada.
Outra cláusula relevante é a de exclusão de responsabilidade, que pode dispor que, caso um sócio cometa erro grave fora das boas práticas médicas ou com má-fé, ele responderá individualmente, isentando a sociedade de arcar com eventuais indenizações.
Embora essas regras sejam internas à sociedade e não tenham validade para evitar que a sociedade arque com o prejuízo, elas garantem que a sociedade possa ser indenizada por tais prejuízos.
Ademais, no mesmo âmbito da responsabilidade civil, os sócios podem impor regras que obrigam a contratação de seguro por erro médico, garantindo a proteção da sociedade perante esse risco.
5. Conclusão
O acordo de sócios é documento essencial para boa estruturação jurídica de sociedade de médicos, pois suas regras não apenas protegem o patrimônio social, mas também preservam o equilíbrio nas relações entre os sócios E a manutenção harmônica e sustentável da sociedade.
Com isso, o acordo de sócios torna-se um importante pilar de governança, trazendo segurança e clareza nas responsabilidades, especialmente em sociedades médicas, onde a pessoalidade e a qualidade técnica são cruciais.
A estruturação jurídica de sociedades de médico deve ser tratada com escritório de advocacia especialista em direito societário e visão multidisciplinar sobre a área da saúde.
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1 José Edwaldo Borba explica muito bem o que seria o elemento de empresa, mencionado no art. 966, parágrafo único, do Código Civil: "O trabalho intelectual seria um elemento de empresa quando representasse um mero componente, às vezes até o mais importante, do produto ou serviço fornecido pela empresa, mas não esse produto ou serviço em si mesmo.
A casa de saúde ou o hospital seriam uma sociedade empresária porque, não obstante o labor científico dos médicos seja extremamente relevante, é esse labor apenas um componente do objeto social, tanto que um hospital compreende hotelaria, farmácia, equipamentos de alta tecnologia, além de salas de cirurgia dotadas de todo um aparato de meios materiais.
Uma clínica médica, composta por vários profissionais sócios e contratados, ainda que dotada de uma estrutura organizacional, mas cujo produto fosse o próprio serviço médico, que se exerceria por meio de consultas, diagnósticos e exames, e que, portanto, teria no exercício de profissão de natureza intelectual a base de sua atividade, seria evidentemente uma sociedade simples.
No primeiro caso (o hospital), o trabalho intelectual é um elemento de empresa (um componente); no segundo caso (a clínica médica), o trabalho intelectual é o próprio serviço oferecido pela sociedade." (Borba, José Edwaldo T. Direito Societário - 20ª Edição 2024. Disponível em: Minha Biblioteca, (20th edição). Grupo GEN, 2024, p. 11)
2 Há outros tipos societários, no entanto, não são tão usuais no mercado brasileiro.
Jansonn Mendonça Batista
Coordenador da Área de Societário, Contratos e Reestruturação do Bismarchi | Pires. Especializado no atendimento de demandas consultivas e contenciosas nessas áreas, com foco na prevenção e no gerenciamento de crises financeiras empresariais. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Itu e atualmente cursando LL.M. em Direito Societário pelo Insper.