Devido à pandemia que está ocorrendo no Brasil, bem como no resto do mundo, alguns governos vêm adotando, como medida de proteção para a população, a quarentena e o fechamento total ou parcial de alguns seguimentos do comércio e da indústria. Existem ramos de atividades em que é possível o trabalho remoto de todos os empregados, mas outros não, precisando criar alternativas nesse momento de crise para preservar o emprego e a renda do trabalhador.
A fim de tentar solucionar esse impasse, alguns empregadores estão optando por alterar as funções de parte dos seus funcionários, de modo a permitir a execução remota do serviço, também conhecido como home office, ou em atividade mais demandada naquele momento.
Com essas alterações de funções dos empregados, forçadas em razão da pandemia, há o risco de haver a caracterização de desvio de função? A resposta não é tão simples e exige a análise individualizada e circunstancial da situação.
O desvio de função não é um instituto regulado pela legislação. Na verdade, é uma construção jurídica, gerando – por isso - pontos de divergências e discussões na sua aplicação prática.
O desvio de função ocorrerá – via de regra – quando um empregado é contratado para realizar funções específicas de um cargo, mas acaba atuando em atividades distintas daquelas para as quais fora contratado, de forma habitual. Isso pode acontecer dentro dos níveis de um mesmo cargo ou, havendo alternância, de uma carreira para a outra.
Uma vez caracterizado o desvio funcional, o empregado poderá ter direito ao pagamento de uma diferença salarial a ser suportada pelo empregador.
Para que seja caracterizado o desvio de função, é importante que as funções do trabalhador sejam pré-definidas e anotadas, conforme estabelece o artigo 456 da CLT. Caso contrário, permanece o entendimento corriqueiramente aplicado de que o empregado, ao ser contratado, se obrigou a prestar qualquer serviço que seja compatível com a sua condição pessoal, na forma do parágrafo único do mesmo artigo 456 da CLT. Portanto, nesse caso não haveria a caracterização do desvio de função.
A regra geral, entretanto, pode ser afastada em ocasiões excepcionais, tal como a do atual regime de exceção gerado pela pandemia e reconhecido pela decretação do Estado de Calamidade pelo Congresso Federal. Note-se que é obrigação do empregador zelar pela saúde e segurança dos seus empregados e a principal medida para tanto – no atual momento – é mantê-los em casa, principalmente no caso daqueles que se enquadram no grupo de risco.
Logo, quando o reenquadramento de funções for necessário para a manutenção do emprego, reputar-se-á lícita e válida, desde que condizente com as condições físicas, morais e a dignidade do trabalhador.
Cumpre frisar que adequações de funções exercidas pelos empregados e adaptações de novas situações são permitidas pelo ordenamento jurídico, tal como ocorre quando do retorno ao trabalho do empregado acidentado, que – por vezes – deve ser adaptado e nova função, em razão de algumas limitações permanentes ou temporárias que venha a ser acometido. Justamente para preservar o emprego, a empresa o adapta em nova função, compatível com a sua condição pessoal.
Algumas cautelas merecem, entretanto, ser observadas nesse movimento, especialmente vinculadas à preservação do valor do salário-hora. De modo que a afastar a redução salarial decorrente da alteração de função.
Cabe salientar que todas essas movimentações de pessoal devem ser acompanhadas do bom senso, proporcionalidade e razoabilidade, a fim de evitar o exercício abusivo do poder diretivo do empregador, seja para menos ou para mais. Estes últimos vinculados à atribuições de responsabilidades novas, compatíveis aos cargos de confiança e respectivamente com o padrão salarial dele decorrente.
O momento exige ponderação, união e clareza. Logo, a empresa que tiver que realizar adequações funcionais temporariamente, como forma de viabilizar o trabalho home office, deverá comunicar essas alterações aos empregados com antecedência de 48 (quarenta e oito) horas, prazo previsto no artigo 4º, §2º da MP 927/20, que regula o teletrabalho e aplicável por analogia.
No atual estado de guerra declarado, o inimigo é comum, tem nome "covid" e sobrenome "19" e para combatê-lo imprescindível a união de esforços entre empregador e empregado na tentativa de não parar a empresa e exercer – sem abusos – cada qual os seus direitos e deveres.
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*Marcelle Lerbak Gomes é advogada do Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados.