O Humpty Dumpty de Toga
Uma crítica à hermenêutica arbitrária do ministro Alexandre de Moraes, comparada à figura literária de Humpty Dumpty, revelando riscos à segurança jurídica e ao Estado Democrático de Direito.
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Atualizado em 10 de abril de 2025 15:33
No famoso diálogo entre Alice e Humpty Dumpty, na obra Alice Através do Espelho1, de Lewis Carroll, encontramos um dos momentos mais reveladores sobre a relação entre poder e significado:
"Quando eu uso uma palavra", disse Humpty Dumpty num tom um tanto escarninho, "ela significa exatamente o que eu quero que signifique - nem mais, nem menos."
"A questão é", disse Alice, "se você pode fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes."
"A questão é", disse Humpty Dumpty, "quem é que manda, só isso."
Aqui está o cerne da questão: não se trata de uma simples divergência interpretativa, mas de quem detém o poder de decidir o significado das palavras.
Esta lógica explica perfeitamente o raciocínio exposto pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes ao declarar, em sua aula magna na FGV2:
"Se vier uma nova legislação, ótimo. Mas, se não vier, nós não viveremos um momento de anomia. Basta uma simples interpretação. Basta interpretar. O Direito é interpretação."
A fala veio no contexto de suposta falta de regramento3 sobre as redes sociais, e segundo o ministro, mesmo sem lei nova para tanto, se poderia usar a legislação já existente, interpretando-a de modo a suprir eventuais lacunas, de modo a surtir os efeitos desejados por ele.
A hermenêutica jurídica sempre foi um campo de debate intenso, oscilando entre diversas escolas interpretativas, especialmente quanto à interpretação constitucional, desde o Originalismo de um Antonin Scalia ao conceito de uma "Constituição viva" (Living Constitution). No entanto, o ministro Alexandre de Moraes conseguiu estabelecer uma abordagem singular, que transcende qualquer teoria clássica: a hermenêutica de Humpty Dumpty.
A aula magna em questão contém vários outros pontos que renderia muitos artigos, mas interessa-nos aqui focar neste ponto apenas, sobre a interpretação. Todavia, antes de analisar a fala e suas consequências, é importante tecer algumas palavras sobre linguagem, comunicação e significado.
Linguagem, comunicação e interpretação do Direito
As teorias da interpretação têm por objeto a linguagem e a comunicação, e atuam por diversas vertentes, como a filosofia da linguagem, a semiótica, hermenêutica, teoria dos atos de fala, semiótica, estruturalismo, desconstrutivismo, dentre outras. Sejam quais forem as linhas, há duas formas fundamentais de analisar o fenômeno: teoria positiva e teoria normativa. A positiva analisa como se dá a comunicação, no contexto da linguagem e do uso dela, entre os seus utentes. A normativa propõe métodos de interpretação, que podem variar a depender do fenômeno linguístico específico - linguagem científica, moral, ordinária, técnica, jurídica etc.
Por sua vez, a teoria matemática da comunicação, desde os tempos de Claude Shannon4 e Warren Weaver, enfoca na dinâmica da linguagem em movimento, detectando os elementos primordiais como emissor, receptor, código, canal, mensagem e ruído. O emissor é a fonte primária da comunicação, enviando uma mensagem por um canal físico (que pode ser o ar, em uma conversa pessoal, uma linha telefônica ou uma rede de transmissão de dados da internet) ao receptor (destinatário), e se pressupõe que compartilhem de um código comum, que pode ser o mesmo idioma, ou a mesma linguagem técnica (comunicação entre operadores do Direito, ou entre médicos, ou engenheiros etc) ou até mesmo a linguagem binária entre sistemas de computação. O ruído, por sua vez, são as interferências ou distorções que afetam a transmissão ou a recepção/compreensão da mensagem. Como mecanismo calibrador de ruídos há o feedback, que opera a partir do retorno do receptor ao emissor sobre a compreensão da mensagem.
Não existe comunicação, portanto, sem esses elementos.
Já a Teoria dos Atos de Fala, criada pelo filósofo inglês John L. Austin5 e, posteriormente, desenvolvida por seu aluno em Oxford, o filósofo norte-americano John R. Searle6, enfoca no aspecto pragmático da linguagem, tendo por elemento nuclear o ato ilocucionário. O aspecto que nos interessa nisso, é que o foco da teoria é sobre o emissor (falante) do ato ilocucionário, sendo que é secundário o receptor (ouvinte), cabendo a este o ato perlocucionário, que é a reação deste ao ato do emissor. Por exemplo, se o ato ilocucionário é uma ordem (função diretiva), e a ordem é obedecida (ato perlocucionário) o ato ilocucionário do comando se mostra bem-sucedido.
No âmbito constitucional, as duas principais vertentes no debate acadêmico - o originalismo e a living constitution - são teorias normativas da interpretação. Enquanto o Originalismo busca manter o significado original da Constituição, cabendo ao legislativo adaptá-la se necessário, a living constitution defende a adaptação semântica do texto aos problemas contemporâneos7. Ainda assim, seja qual for a linha, não se ignora o significado pretendido pelo emissor do texto. O Originalismo o preserva; a living constitution o ultrapassa, mas não o ignora.
Para exemplificar, imagine que você está no Japão e não fala o idioma local. Alguém lhe pergunta as horas, e você não entende. Ele então aponta para o próprio pulso, gesticulando. Isso reduz o ruído e reforça o sentido da mensagem: "Que horas são?". Se, ainda assim, você não compreende, a troca comunicativa é frustrada. Do ponto de vista da teoria da comunicação, o emissor e receptor não compartilham do mesmo código (idioma), e foi tentada uma alternativa (gestos universais), porém o feedback dado pelo receptor demonstrou que a mensagem não foi compreendida.8 Pela ótica da Teoria dos Atos de Fala, a reação do ouvinte (ato perlocucionário) demonstra que o falante (ato ilocucionário) não foi bem-sucedido, uma vez que o seu pedido não foi atendido. Dito de forma mais simples: sem compreender o emissor, não é possível a comunicação.
O mesmo se dá com o Direito. Se em um mandado de segurança o juiz indeferir a liminar, não cabe ao autor "interpretar" essa decisão como se tivesse sido deferida. Caso o faça, sofrerá as sanções cabíveis. Por outro lado, quando a decisão é omissa, obscura ou contraditória, recorre-se aos embargos de declaração, que funcionam como feedback para que o juiz esclareça sua mensagem (art. 1.022, do CPC).
Alguém poderia dizer que textos antigos estariam abertos a múltiplas interpretações sem contato direto com o emissor original. Mas, mesmo nesses casos, é necessária alguma conexão com a intenção original, sob pena de desvirtuar por completo o significado. Para compreender os clássicos, é imprescindível conhecer o contexto de sua época, e não avaliá-los simplesmente à luz do presente. Por isso, na hermenêutica jurídica, além da interpretação literal, existem também a teleológica e a histórica, que buscam resgatar a intenção do legislador e o contexto social da época que a norma foi criada9. Considerando que o sistema jurídico é complexo, formado por diversos legisladores ao longo de várias épocas, e é preciso que as normas conversem entre si e se harmonizem, é necessária igualmente a interpretação sistemática. Sejam lá quais forem os ângulos hermenêuticos no caso concreto, nunca se pode ignorar o texto legal, pois a interpretação o pressupõe. Do contrário, não teremos interpretação da lei10, mas a criação de outra lei ex nihilo, como se o hermeneuta fosse um legislador originário.
Voltando à fala de Moraes, o que ela revela?
Desconhecimento sobre a mecânica da linguagem: não é assim que a interpretação opera, pois nenhuma teoria séria sustenta que ela possa ocorrer sem vínculo algum com o texto. Mesmo a living constitution não autoriza decisões que se oponham frontalmente ao texto; 2) "Vontade de poder": ao dizer que sua interpretação "basta", Moraes ignora a necessidade de previsibilidade jurídica, colocando a interpretação a serviço de sua própria vontade.
Muito além da living constitution: Moraes e o Estado de exceção hermenêutico
A hermenêutica constitucional contemporânea se divide entre visões mais textualistas (como o Originalismo de Antonin Scalia, Clarence Thomas e Randy Barnett) e abordagens mais flexíveis (como a living constitution, Cass Sunstein11 e Stephen Breyer). Mesmo dentro desta segunda vertente, no entanto, nenhum teórico sério defende a interpretação como um ato totalmente solipsista.
O que Moraes sugere não é interpretativo, mas decisionista, semelhante à lógica de Carl Schmitt12 e seu conceito de soberania: "Soberano é quem decide sobre o estado de exceção."
Em sua lógica, se uma nova legislação não surgir, ele mesmo decide o que deve ser válido, sem necessidade de um fundamento normativo superior. Nesse modelo, não há uma pirâmide normativa no sentido kelseniano, mas um círculo autorreferente, onde a legalidade depende exclusivamente da sua interpretação.
O perigo dessa abordagem é que ela elimina a segurança jurídica, pois nenhuma norma tem validade própria sem o aval do intérprete supremo. Se no modelo kelseniano há um mínimo de objetividade, no modelo moraesiano o Direito é fluido, ad hoc, volátil e imprevisível, pois depende da subjetividade (e vontade) do juiz no momento da decisão.
Schmitt defendia que, em momentos de crise, o governante poderia suspender a ordem legal para garantir a estabilidade do Estado. Moraes segue esse mesmo princípio, mas de maneira ainda mais sofisticada: 1) Ele não suspende a Constituição, mas a esvazia por meio da interpretação, dando a si próprio a autoridade de decidir quando um direito deve ser restringido. 2) Suas decisões não se baseiam em um método interpretativo claro, mas em um imperialismo judicial disfarçado de hermenêutica. 3) A jurisprudência criada por ele não tem previsibilidade, pois depende do seu próprio julgamento político e circunstancial. O precedente de ontem não necessariamente vale hoje, e o de hoje pode não valer amanhã.
Essa abordagem leva à formação de um Estado de exceção hermenêutico, no qual as regras podem ser interpretadas conforme a necessidade política do momento.
Com o que foi dito até agora, percebe-se que a interpretação defendida pelo ministro, conforme a sua fala na FGV, não se refere a alguma das escolas ou vertentes hermenêuticas da Constituição, mesmo as mais flexíveis e abertas. Não se trata da aplicação de uma teoria da interpretação, mas de alusão retórica a interpretação jurídica como forma de legitimação, o que Friedrich Nietzsche chamou de "vontade de poder" (Wille zur Macht)13. Para o filósofo alemão, interpretar é essencialmente um ato de dominação: quem interpreta exerce poder sobre a realidade. O ministro, ao afirmar que "basta interpretar", expressa precisamente essa dinâmica: não busca uma verdade objetiva, ou mesmo uma relação entre decisão judicial e normas constitucionais e legais, mas estabelece sua vontade pessoal como critério supremo de interpretação.
Conclusão: De Humpty Dumpty a Schmitt, a interpretação jurídica como instrumento de poder
A trajetória interpretativa de Moraes revela um fenômeno perigoso no Direito brasileiro: um ativismo judicial sem amarras, onde a interpretação não precisa de base normativa real, apenas da autoridade de quem decide.
Se Humpty Dumpty distorcia palavras para consolidar seu próprio poder, Moraes reinventa a interpretação do Direito para justificar as suas decisões. Se Kelsen imaginava uma norma hipotética fundamental como fonte de validade última do sistema jurídico, Moraes a substitui por sua própria interpretação, tornando-se o centro absoluto da legalidade. Se Carl Schmitt via a soberania como decisão sobre o estado de exceção, Moraes a traduz para uma prática onde a exceção se torna a regra.
O resultado é um modelo jurídico onde o Direito deixa de ser um sistema normativo previsível e passa a ser um instrumento de vontade de poder, no léxico nitzscheano. O Humpty Dumpty de toga reina supremo, e qualquer tentativa de contestá-lo pode ser rebatida com um argumento simples: "A questão é quem manda, só isso."
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1 No original Through the Looking Glass, and what Alice found there, de Lewis Carrol. Disponível em https://books.google.com.br/books/about/Through_the_Looking_glass_and_what_Alice.htmlid=lllVAAAAcAAJ&printsec=frontcover&source=kp_read_button&hl=en&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false
2 Aula Magna proferida em 11 de março de 2025, no MBA em Defesa da Democracia e Comunicação Digital, promovido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em parceria com a Advocacia-Geral da União (AGU), na sede da FGV em Brasília. No evento, discutiu-se os desafios da regulação das plataformas digitais.
3 O que não procede, considerando que o marco regulatório foi plenamente instituído pela Lei n. 12.695, de 2014, o denominado "Marco Civil da Internet". A regulação por esta lei atende a Constituição Federal do Brasil, estipulando, por exemplo, remédios e formas de reparação ex post para eventuais abusos pelos usuários da internet, especificamente no artigo 19. No entanto, qualquer desejo de se regular o conteúdo expressado de forma "ex ante" é puro eufemismo para censura prévia, vedada pela Constituição.
4 Disponível em: https://people.math.harvard.edu/~ctm/home/text/others/shannon/entropy/entropy.pdf
5 How to do things with words. Harvard University Press, 1999. Publicado originalmente em 1955.
6 Speech Acts. An Essay in the philosophy of language. Cambridge: Cambridge University Press, 1968.
7 Não confundir com o Neoconstitucionalismo, como por exemplo o que o Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, se coloca como representante teórico e aplicador. Por mais que a living constitution queira adaptar a Constituição aos tempos em que se a aplica em casos concretos, há uma relação direta com o texto da Carta, e respeito aos precedentes, sem falar por ser uma doutrina robusta teoricamente, especialmente quando aplicada pela SCOTUS. Na verdade, o que o neoconstitucionalismo tupiniquim parece ser é uma forma de relativismo jurídico, onde tudo pode e tudo vale, desde que sirva para implantar objetivos de alguma agenda política de seu aplicador, liberando-o das amarras da interpretação da lei.
8 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
9 Quando se diz "a norma é fruto da interpretação" e que "toda norma é construída e não extraída", não se quer significar que o intérprete é livre para ignorar o texto objeto de sua exegese.
10 Recomendo a obra A Constitution of Many Minds.Why the Fouding Document doesn't mean what it meant before. Woodstock: Princeton University Press, 2009.
11 Teologia Política. São Paulo: Del Rey, 2006, p. 7.
12 O conceito é desenvolvido em Além do Bem e do Mal (capítulo 1, §13 - "A vida é simplesmente vontade de poder.") e Genealogia da Moral (II Tratado, §12 e III Tratado, §§12, 18 e 27).