O bis in idem tributário nas operações imobiliárias: Análise da dupla incidência do IBS e ITBI
A sobreposição do IBS e ITBI nas transações de imóveis gera tributação cumulativa, impacta o mercado e desafia o sistema constitucional tributário.
quinta-feira, 10 de abril de 2025
Atualizado em 9 de abril de 2025 16:48
A EC 132/23, ao instituir o IBS - Imposto sobre Bens e Serviços e a CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços, promoveu transformação estrutural no sistema tributário nacional. O IBS, concebido como tributo sobre valor agregado para unificar o ISS e ICMS, passa, agora, a incidir também sobre operações imobiliárias - criando uma preocupante sobreposição com o tradicional Imposto sobre transmissão onerosa, intervivos, de bens imóveis (ITBI, ou ITIV).
Antecipando-nos à conclusão deste breve texto, que não se propõe a esgotar o tema: essa dupla incidência sobre idêntico fato gerador configura caso paradigmático de bis in idem tributário, demandando análise criteriosa sob a ótica dos princípios constitucionais.
Pois bem, a extensão da incidência do IBS às operações imobiliárias representa mudança paradigmática no regime tributário brasileiro, que historicamente excluía tais transações da base de cálculo do ISS e ICMS. O novo imposto, com sua ampla base de incidência, cria sobreposição direta com o ITBI, que continua aplicável aos mesmos fatos geradores: (i) alienação onerosa de bem imóvel; (ii) permuta com torna; (iii) transmissão de direitos reais, entre outros.
A análise comparativa da regra-matriz de incidência tributária, revela coincidência preocupante entre IBS e ITBI, em três aspectos fundamentais:
- **Critério quantitativo**: idêntica base de cálculo;
- **Critério material**: fato gerador coincidente; e
- **Critério pessoal**: mesmos sujeitos ativo e passivo da relação tributária.
Essa tríplice convergência configura, sem margem para dúvidas, caso flagrante de bis in idem tributário, em nítida afronta aos princípios constitucionais da não-cumulatividade (Art. 146-A, §2º da CF/88) e da capacidade contributiva (Art. 145, §1º da CF/88).
A doutrina tributária majoritária e balizada, com destaque para os trabalhos de Paulo de Barros Carvalho1, é unânime em reconhecer o bis in idem quando ocorre cobrança cumulativa sobre mesmo fato gerador pelo mesmo ente tributante. No caso em análise, a manutenção da incidência do ITBI, conjugada à introdução do IBS sobre operações imobiliárias, viola o cerne do novo sistema tributário, que tem como fundamento basilar a não-cumulatividade plena, e um suposto e alegado não incremento de carga tributária - que assim seja.
A tentativa legislativa de mitigação do problema - mediante exclusão do ITBI da base de cálculo do IBS (art. 4º, §5º, II da LC 214/25) - revela-se claramente insuficiente, pois mantém intacta a cobrança simultânea destes tributos, sobre a mesma operação econômica, preservando a dupla incidência nas operações imobiliárias.
As consequências econômicas desse bis in idem são especialmente preocupantes para o setor imobiliário e a população (ante o nosso conhecido déficit habitacional), considerando: (a) o aumento expressivo dos custos de transação imobiliária; (b) a redução da liquidez e dinâmica do mercado; (c) o desestímulo a investimentos no setor; e (d) a crescente judicialização, com elevação dos custos de compliance.
O direito comparado oferece importante parâmetro sobre o tema: nos países que adotam o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), base do nosso sistema de IVA Dual (IBS e CBS), não se verifica a existência de tributo análogo ao ITBI. Ou seja, nos outros países o IVA incide sobre o consumo de bens e serviços (incluindo imóveis) sem tributação adicional sobre a transmissão de propriedade.
Esse aspecto fundamenta outra crítica à viabilidade da coexistência dos dois tributos nas operações imobiliárias: a competência para instituir o IBS é compartilhada entre Estados e Municípios, enquanto as demais competências tributárias desses entes permanecem exclusivas. Sob essa perspectiva, a incidência do IBS sobre transações imobiliárias - cuja tributação é de competência exclusiva dos municípios (CF, art. 156, I) - configuraria uma usurpação de competência municipal pelos Estados Membros, violando o princípio federativo e a repartição constitucional de rendas.
Diante desse quadro, conclui-se que a manutenção da dupla incidência IBS/ITBI nas operações imobiliárias representa retrocesso na construção de sistema tributário racional; urge rever, por processo legislativo, a aplicação do IBS às operações imobiliárias, ou extinguir o ITBI, alinhando nosso ordenamento às melhores práticas internacionais.
Ressalte-se que o IBS terá implementação gradual a partir de 2026, com aplicação progressiva de alíquotas em fase experimental. Este período de transição constitui janela de oportunidade crucial para correção legislativa dessa distorção. Caso mantido o atual cenário de bis in idem, inevitável será o acionamento do Poder Judiciário pelos contribuintes, objetivando enfrentar diretamente o tema.
Nesse cenário, a batalha jurídica que se avizinha transcenderá as discussões de técnica tributária, assumindo contornos de verdadeira reforma do federalismo fiscal. O Supremo Tribunal Federal (STF), como guardião da Constituição, será instância decisória desse embate histórico entre a "unificação" pretendida pelo IBS e as competências tributárias constitucionalmente resguardadas aos entes federativos.
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1 CARVALHO, Paulo de Barros. "Dupla Tributação e Bis In Idem: Limites Constitucionais". In: Estudos em Homenagem a Roque Antonio Carrazza. São Paulo: Quartier Latin, 2017
Igor Bastos de Almeida Dias
Advogado Tributarista da MoselloLima Advocacia. Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).