O Brasil tem assistido, nos últimos anos, ao aumento do punitivismo estatal, por meio da relativização dos Princípios e Garantias fundamentais previstos constitucionalmente e que representam pilares essenciais ao Estado Democrático de Direito.
À primeira vista, seria de se pensar que essa visão menos garantista ficaria restrita à esfera penal. Contudo, tem-se verificado a extensão desse pensamento para as questões tributárias, por meio de uma aplicação indevida do próprio direito/processo penal, com intuito único de forçar o pagamento de tributos, desconsiderando as ferramentas legais tributárias já existentes.
A exemplo disso, destacam-se duas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE 1.055.941 e do RHC 163.334 que, respectivamente, permite o envio de informações do Fisco ao Ministério Público, para fins penais, sem necessidade de decisão judicial e que classifica como crime o mero inadimplemento do ICMS, ainda que declarado.
A decisão proferida nos autos do RE 1.055.941, ainda não publicada e sobre a qual não vamos nos estender, permite que os órgãos de controle da Fazenda Federal, que englobam a Receita Federal e o antigo COAF, atual Unidade de Inteligência Fiscal (UIF), enviem dados ao Ministério Público sem decisão judicial, o que, na prática, equivale à quebra de sigilo fiscal, para fins penais, sem necessidade de intervenção do Poder Judiciário.
A colaboração entre órgãos do Estado poderia ser justificada pelo interesse público. Contudo, esse tipo de colaboração, sem a devida regulamentação e vigilância, pode dar ensejo a diversas ilegalidades cometidas contra o contribuinte.
Na esteira dessa mitigação das garantias constitucionais, nos autos do RHC 163.334, o STF novamente contrariou sua jurisprudência consolidada, de forma ainda mais grave, ao decidir que pode haver a equiparação ao crime de apropriação indébita, previsto no inciso II do art. 2º da lei 8.137/90, nos casos de inadimplência do ICMS próprio.
Corre-se o risco de que tais decisões signifiquem a banalização dos processos criminais como medida de coerção para o pagamento de tributos, o que é vedado por súmulas editadas pelo próprio STF:
“Súmula nº 70 – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo”.
“Súmula nº 323 – É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”.
“Súmula nº 547 – Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.
Dentre esses posicionamentos, destaca-se a Súmula 70 que proíbe a interdição de estabelecimento como método de coerção tributária, ou seja, proíbe que a Administração exerça seu poder de polícia, previsto no art. 78 do Código Tributário Nacional, com escopo único de forçar o pagamento do tributo.
De forma coerente, a súmula resguarda a atividade empresarial, nos moldes da previsão insculpida no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Por isso, os entendimentos são perigosos, pois demonstram uma diminuição no respaldo da Suprema Corte às garantias constitucionais e, por consequência, conduzem à criminalização, ainda que indireta, de eventuais percalços na atividade empresarial.
Isso porque no cotidiano das empresas, muitas vezes, o ICMS é declarado, porém não há como quitá-lo, uma vez que o empresário, por exemplo, em determinados casos de insuficiência do fluxo de caixa, pode e deve dar preferência para a quitação da folha de pagamento.
Em outros casos, o sistema de apuração de débito e crédito do ICMS aponta que há créditos relativos às mercadorias que adentraram o estabelecimento, porém não há débito porque não houve saída dessas mercadorias. Nesse sentido, haveria apenas uma expectativa de surgimento da obrigação tributária.
Além disso, com a complexidade do sistema tributário brasileiro, não raro existem situações em que há divergência dentro da própria Administração quanto à possibilidade de aproveitamento de créditos tributários que, a depender da interpretação a ser feita, pode gerar uma responsabilização criminal advinda da divergência entre o entendimento aplicado pela empresa e aquele fixado pela Administração.
Dentro dessa complexidade, o exercício da atividade empresarial, muitas vezes, implica em problemas com o Fisco. Por isso, a criminalização do nãorecolhimento do ICMS próprio, ainda que declarado, acaba por significar a criminalização da própria atividade empresarial.
Em decorrência desse contexto, a decisão, por si só, traz imensa insegurança jurídica, ainda mais considerando que para a configuração do crime, exigiuse a existência de dolo e reiteração na conduta, entretanto, não foram estabelecidas balizas para tal apuração.
Indaga-se se a prova a respeito da ausência de dolo poderia ser feita mediante apresentação dos dados contábeis da empresa, o número de meses em que a ausência de recolhimento se configuraria como reiterado, porém, são implicações processuais práticas que seguem sem resposta.
O entendimento firmado permite a utilização de medidas penais para cobrança do tributo inadimplido quando, em verdade, o meio adequado seria o ajuizamento da Execução Fiscal ou, se muito, uma medida cautelar fiscal para evitar dilapidação patrimonial que impossibilite o pagamento dos tributos supostamente devidos.
Por isso, o argumento de que o ICMS é tributo indireto e, como tal, integra o preço da mercadoria, sendo pago pelo consumidor final, e, por isso, o seu inadimplemento equivaleria à apropriação indébita não encontra fundamento, já que o fato de o consumidor final arcar com o valor do tributo não o transforma em sujeito passivo deste.
Ademais, essa interpretação não pode servir de mecanismo para a criminalização de uma conduta que constitui eminentemente mero inadimplemento, como o próprio ministro Marco Aurélio Mello, contrário ao entendimento firmado, ressaltou durante o julgamento:
“É uma cobrança por dívida, uma coação política para ter-se a arrecadação do tributo, o que o Tribunal não admite”.
O argumento, fixado pelo STF no RE 574.706, de que o ICMS não integra a base de cálculo do PIS e da Cofins, porque é receita dos Estados e não do contribuinte, também não pode servir de embasamento para a criminalização em comento justamente porque reforça a posição de que se configura apenas como dívida tributária, ainda mais quando se leva em conta que o crédito, em regra, estará declarado e, portanto, devidamente constituído para que a Fazenda diligencie em busca do pagamento.
Até porque todo tributo é devido a algum dos entes federativos, então, por esse raciocínio, todo inadimplemento tributário poderia ser tipificado como crime, havendo uma extensa margem para que o entendimento alcance outros tributos e prolifere ações criminais, de forma indevida.
Quanto a eventuais sanções pela ausência de pagamento, além da multa incidente sobre o montante do tributo devido, existem penalidades administrativas para o contribuinte inadimplente, como a inscrição no CADIN (estadual) e a recusa na emissão de Certidão Negativa ou Positiva com Efeito de Negativa, as quais, por si só, já trazem consequências para as empresas que, uma vez sancionadas dessa forma, passam a ter uma série de restrições, como por exemplo, para obter empréstimos bancários, concorrer em licitações etc.
Por isso, a equiparação do simples inadimplemento tributário a ilícito penal é desnecessária e equivale a estabelecer a possibilidade de prisão civil por dívida, esta vedada pelo art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal e pelo Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.
Entretanto, nas eventuais ações penais intentadas com escopo de apuração do crime tributário, haveria a possibilidade de afastamento da responsabilidade criminal pelo parcelamento que suspende a punibilidade penal (art. 83, §2º da lei 9.430/96) ou pelo pagamento que a extingue, desde que ambos sejam feitos antes do recebimento da denúncia, como previsto no art. 34 da lei 9.249/95.
Considerando que a denúncia só poderá ser apresentada após o lançamento definitivo do débito, isto é, após o encerramento de eventuais discussões administrativas, como prevê o art. 83 da lei 9.430/96, o contribuinte poderá avaliar a pertinência do pagamento.
Todavia, há casos em que não há possibilidade de discussão de determinada matéria na esfera administrativa, a exemplo da arguição de inconstitucionalidade, o que torna imprescindível levar a discussão ao Judiciário.
Nesse cenário, é possível que a empresa seja cobrada por tributo inconstitucional que esteja lançado e que, antes de finda a ação judicial, tenha de parcelar ou pagar o débito para elidir a responsabilidade criminal que lhe foi imputada de forma injusta.
Consequentemente, trata-se de um mecanismo que poderá ser inócuo em termos penais para empresas que tenham meios de adimplir o ICMS, e que, ao mesmo tempo, pode penalizar empresas que estejam em situação financeira mais desfavorável, ainda que ambas estejam discutindo o tributo cobrado.
A situação evidencia o desvirtuamento dos institutos e ferramentas criminais como método de coerção para quitação dos tributos e manutenção da seletividade da justiça criminal no Brasil.
Nesse caso, vale a máxima “dar a César o que é de César”, isto é, a inadimplência tributária deve ser tratada dentro do âmbito do Direito Tributário com os mecanismo por ele oferecidos, salvo nos casos de fraude, simulação e demais atividades que, de fato, constituam condutas antissociais e que mereçam ser apenadas criminalmente.
A violação a direitos e garantias fundamentais dos contribuintes representam a das facetas do autoritarismo estatal que não deveria ser chancelado pelo Poder Judiciário e que não deve ter lugar no Estado Democrático de Direito.
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BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva e SCAFF, Fernando Facury. O STJ e a criminalização da inadimplência tributária do ICMS próprio. Revista do Advogado São Paulo: AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.
SCAFF, F.F. O erro do STF: Inadimplência do ICMS próprio não é apropriação indébita.
STF: 2×1 para criminalizar não recolhimento de ICMS declarado.
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*Amanda Botelho de Moraes é advogada na DS Consulting em Curitiba/PR, especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade Anhanguera – Uniderp e com MBA concluído em Planejamento, Gestão e Contabilidade Tributária pela Universidade Positivo.