Para surpresa de ninguém, temos duas propostas de alteração do ordenamento jurídico pátrio: o projeto de lei (PLS) 166/18 e a proposta de emenda à Constituição (PEC 199/19). O legislador gosta de legislar.
O PLS 166/18, para além da discussão de sua constitucionalidade, não merece prosperar. É que a redação é péssima. Sendo aprovado como seu texto inicial propõe, o inciso III do artigo 283 do Código de Processo Penal trará garantia, que o parágrafo 3º do mesmo artigo fará questão de desonrar. Segundo o inciso, ninguém poderá ser preso senão “em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”. De acordo com o parágrafo 3º, “a prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente decorrente de juízo de culpabilidade poderá ocorrer a partir da condenação em segundo grau, em instância única ou recursal”. Ora, o artigo precisa entrar em acordo. Caso contrário, não precisa entrar em vigor.
Só que poucas pessoas se atentaram para a redação do artigo 3º da PEC 199/19. Segue:
Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação, assegurada a aplicação das regras de processamento e julgamento dos recursos extraordinário e especial àqueles que houverem sido interpostos antes da entrada em vigor desta Emenda.
Portanto, recursos especiais e extraordinários já interpostos seguem a regra anterior. Assim, não terá ocorrido o trânsito em julgado das decisões nos processos em que já protocoladas as insurgências especiais ou extraordinárias. Logo, aos preocupados com o casuísmo da Emenda, entendam: não há que se falar em retorno imediato ao cárcere dos postos em liberdade em decorrência da decisão do Supremo Tribunal Federal. Porque, em geral, ou já foram interpostos os recursos especiais e extraordinários, ou não houve condenação em segunda instância.
Mas imaginemos que prospere apenas o projeto de lei. Imaginemos que a nova lei seja considerada constitucional. E imaginemos que alguém deseje a aplicação imediata do parágrafo 3º do artigo 283 do Diploma Processual Penal. O desejo não poderá prosperar.
A norma consagrada no parágrafo terceiro, a despeito da etiqueta de lei processual, tem caráter misto, porque traz inegável efeito material. Nada mais material do que a prisão. É lógico: a prisão começa quando o processo termina. O devido processo legal serve justamente para saber se deve ser imposta uma pena ou não. Uma norma que antecipa a sanção tem repercussão mista, processual e material, e, sendo prejudicial ao réu, não pode retroagir.
Se hoje o ordenamento jurídico diz, conforme entende o STF, que a prisão só é possível após o trânsito em julgado da condenação, o cidadão tem essa garantia. Se a garantia lhe é subtraída, sua aplicação somente é possível para fatos que ocorram após a entrada em vigor da nova norma. A lei penal, ainda que se vista de adjetivo, tem corpo substantivo.
Por fim, ensina o insuperável professor Nélson Hungria, em seus “Comentários ao Código Penal”, que o princípio da legalidade tem, entre outras funções, a de prevenir a prática de crimes.
Se uma lei, amanhã, disser que a prisão será possível, após condenação em primeira instância, certamente, muitos crimes que ocorreriam, não ocorrerão. Quem vislumbra a cela daqui a alguns meses, pensa algumas vezes antes de ir ao seu encontro. A lei, então, prevenirá a prática de infrações penais, inibirá seus cometimentos. Inibirá, porque será prejudicial ao réu, isso graças ao seu efeito material. Então, concluo com pergunta que o artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal faz questão de responder: a lei penal desfavorável ao réu pode retroagir?
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