Como indicado no texto de ontem, o art. 926, caput, do CPC/15 impõe aos tribunais o dever de manter sua jurisprudência estável, íntegra e coerente. Tal determinação aplica-se não apenas aos pronunciamentos com força vinculante. É uma diretriz a ser observada em toda e qualquer atuação de cada corte.
Isso requer, além da seriedade de propósito dos integrantes das cortes, para dar cumprimento a tal norma, uma série de providências práticas, operacionais, de administração judiciária.
Entre outras providências, é imprescindível que se estabeleçam sistemas de controle que permitam aos diferentes órgãos e integrantes do tribunal e aos graus de jurisdição inferiores identificar com facilidade as questões jurídicas que já foram levadas a julgamento e o modo como foram resolvidas. Assim, são necessários repertórios jurisprudenciais com indexação precisa, não apenas dos assuntos versados, mas dos dispositivos normativos interpretados e aplicados em cada decisão. Em grande medida, as contradições e instabilidades da orientação jurisprudencial dos tribunais advêm de absoluta falta de controle daquilo que já decidiu e como já se decidiu. Ao menos até o advento do Código de 2015, não foram infrequentes os casos em que, numa mesma sessão, um mesmo órgão, julgou exatamente a mesma questão de dois modos distintos, sem que houvesse ou fosse enfrentado qualquer fator que justificasse a diferenciação de tratamento. Pior que isso, muitas vezes, decisões antagônicas acerca de uma mesma questão, numa mesma época, provieram de um mesmo e único relator – sem que também houvesse qualquer elemento a justificar a distinção... Na maioria dos casos, tais injustificáveis variações derivam de pura e simples falta de controle das questões já decididas (somada a uma inconsistência de premissas – de que se fala no parágrafo seguinte –, pois, se decidisse com base em premissas coerentes e constantes, o julgador, ainda que sem se dar conta de que já havia decidido antes aquela mesma questão, tornaria a decidi-la em termos idênticos ou similares aos adotados antes). Os repertórios jurisprudenciais organizados com rigor prestam-se a diminuir o risco de situações como essa. Permitem a precisa identificação do que já se decidiu – seja para que se torne a adotar o mesmo entendimento, seja para que, quando houver fundados motivos para tanto, se proponha uma nova orientação.
E a coerência e integridade jurisprudenciais não se satisfazem com a simples consistência nas reiteradas manifestações do tribunal a respeito de uma mesma e única questão jurídica que se repita em vários casos. Mais do que isso, é preciso também que haja correspondência, proporcionalidade, no trato de questões que, embora não idênticas, sejam análogas; é necessário ainda que, quando uma mesma premissa puser-se para a solução de duas questões, mesmo sendo essas distintas, aquela seja definida, em ambos os casos, nos mesmos termos, se não houver um fator que justifique a distinção – e assim por diante. Vale dizer, não bastam coerência e integridade sob o aspecto puramente formal, restrito a cada específica questão jurídica. Esses atributos precisam pôr-se em termos substanciais, de modo que conceitos, categorias gerais, institutos jurídicos sejam delineados e aplicados pelo tribunal de um modo consistente, constante, homogêneo. Caberá ao próprio tribunal, quando produz decisões que virão a constituir precedentes, justificar as razões por que deixa eventualmente de adotar como premissas diretrizes por ele mesmo estabelecidas, em precedentes anteriores – demonstrando sua superação ou elementos diferenciais contidos na nova questão (art. 489, § 1.º).
Portanto, isso demanda um sistema ainda mais sofisticado de organização do acervo jurisprudencial dos tribunais – seja para que o jurisdicionado possa identificar as diretrizes jurisprudenciais da corte (art. 927, § 5.º), seja para que os próprios integrantes da corte possam razoavelmente dominar esse arcabouço de precedentes e considerá-lo no enfrentamento de novas questões.
Essa tarefa poderá ser cumprida de modo menos complexo e custoso, na medida em que as decisões dos tribunais, sem deixar de cumprir as exigências de fundamentação (art. 489, §§ 1.º e 2.º), sejam objetivas, não se percam em considerações paralelas irrelevantes para o cerne da questão (aquilo que se chama de obiter dictum) nem em citações doutrinárias e jurisprudenciais extensas e desnecessárias para o enfrentamento do caso.
Tudo isso guarda também direta relação com a exigência de estabilidade jurisprudencial. Como visto, a instabilidade (por vezes, na mesma câmara, com o mesmo relator...) muitas vezes não deriva de intencionais mudanças de orientação, mas apenas do descontrole acima apontado – problema que tende a ser eliminado ou diminuído com as providências também já indicadas.
Mas, além disso, não são infrequentes os verdadeiros casos de alterações de orientação jurisprudencial, por vezes até sucessivas. Não se pretende a fossilização de entendimentos que se revelam superados. A produção jurisprudencial deve revestir-se de dinamismo que acompanhe as mutações que ocorram no cenário social, político, cultural... Nesse ponto, cabe distinguir, por um lado, os casos em que, ao longo do tempo, se altera o próprio sentido do dispositivo legal não por mera divergência (“amadurecimento”) de interpretação, mas em vista de uma evolução no âmbito sociocultural (a letra da lei permanece a mesma, mas a norma torna-se outra), e, por outro, os casos em que se tem a simples oscilação interpretativa fazendo com que uma mesma corte, em curto período de tempo e sem que tenha havido a alteração de premissas ou do contexto, adote diferentes posicionamentos sobre a mesma questão. É essa instabilidade que se busca evitar.
Um dos modos de se reduzir essa instabilidade consiste em evitar a emissão de pronunciamentos revestidos de maior eficácia vinculante enquanto ainda não houver verdadeiro amadurecimento da interpretação da questão. Por exemplo, há casos em que se constata já haver grande número de processos em que se discute uma mesma questão jurídica. No entanto, se não há ainda um razoável aprofundamento da compreensão da questão, é preferível que não se instaure desde logo um procedimento de resolução de questões repetitivas (julgamento de recursos por amostragem ou incidente de resolução de demandas repetitivas, conforme o caso). Isso, em um primeiro momento, gerará certa gama de decisões divergentes no tribunal – o que poderia implicar um descumprimento da determinação contida no art. 926. Mas isso se faria no tempo estritamente necessário para o tribunal enriquecer sua apreensão da matéria. O enfrentamento desses primeiros casos permitirá aos integrantes do tribunal aprimorar seu domínio da questão – ampliando-se as chances de que finalmente profiram, em procedimento de resolução de casos repetitivos, uma decisão que seja fruto de verdadeira reflexão, meditação sobre o tema. Uma decisão nesses termos terá muito maior propensão à estabilidade. Estará bem menos sujeita ao risco de precisar ser complementada, ressalvada, retificada ou mesmo integralmente revista. Em suma, perde-se um pouco de tempo antes, para não se perder muito mais depois, com idas e vindas desnecessárias.
Além disso, o dever de estabilidade da jurisprudência impõe que, nos casos em que as modificações de orientação sejam mesmo necessárias, venham acompanhadas de medidas que impeçam graves sacrifícios aos jurisdicionados que pautaram sua conduta no anterior entendimento jurisprudencial.
Como já indicado, o dever de estabilidade jurisprudencial, mesmo quando observado com rigor, não obsta a ocorrência de câmbios jurisprudenciais. Por mais que o tribunal adote cautelas para evitar a pura e simples oscilação de orientações, haverá casos em que será imprescindível que se modifique um entendimento antes adotado, por força de alterações no contexto político ou sociocultural. Nessa hipótese, o Código explicita a necessidade de que se adotem especiais providências no procedimento de revisão jurisprudencial e na subsequente definição da eficácia do novo entendimento. São medidas que já derivariam de princípios gerais ou mesmo de outras normas específicas. Sua reiteração ou explicitação, nos §§ 2.º a 4.º do art. 927, evidencia sua relevância.
O art. 927, § 2.º, prevê a possibilidade de realização de audiências públicas prévias à deliberação do tribunal sobre a alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos. Prevê igualmente a participação nesse procedimento, como amici curiae, de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese. Ambas as determinações já seriam extraíveis de outras disposições normativas (CPC, art. 983, caput e § 1.º; art. 1.038, I e II; Lei 11.417/06, art. 3.º, § 2.º; RISTF, art. 13, XVII, etc.). Sua reiteração presta-se a confirmar que o regime processual da revisão do “precedente” é idêntico, sob esse aspecto, ao da sua formação. Em alguma medida, como a revisão impõe a alteração de parâmetros até então adotados, com a chance de significativas externalidades (transtornos concretos para uma vasta gama de sujeitos), a participação de amicus curiae e a realização de audiência pública assumem ainda maior importância do que no procedimento de original formulação da tese jurídica.
O art. 927, § 4.º, reitera a necessidade de fundamentação adequada e específica, apta a justificar a alteração jurisprudencial. Também esse é um preceito com caráter precipuamente didático. O dever de fundamentar já adviria das regras gerais (CF, art. 93, IX; CPC, art. 11 e 489, §§ 1.º e 2.º).
Além disso, é também prevista a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão que altera a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou aquela oriunda de julgamento de casos repetitivos (art. 927, § 3.º). Deverão ser preservados os efeitos fundados na anterior interpretação. Mais ainda, circunstâncias graves e especiais podem autorizar uma sobrevida desses efeitos, posterior, mesmo, à mudança do entendimento – a exemplo do que ocorre na modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Reitere-se que as normas jurídicas são resultado da interpretação e aplicação da disposição normativa, em uma dada conjuntura fática e à luz de valor reinantes na sociedade naquele dado momento. Logo, se muda a interpretação, não há exagero em dizer que é a própria norma que se está modificando. Devem ser considerados os princípios da segurança jurídica, boa-fé, razoabilidade e proporcionalidade. Considera-se a circunstância de que os sujeitos adotaram condutas, programaram o futuro, contraíram compromissos, pautando-se na interpretação estabelecida, de modo firme, pelos órgãos que detêm competência para definir as interpretações a serem seguidas. Se uma dada interpretação era a assente e depois foi modificada reconhecidamente por força de alteração na conformação constitucional da questão, nem é o caso de dizer-se que aquelas condutas dos jurisdicionados fundaram-se na mera suposição de acerto da interpretação. Nesse caso, mais do que isso, pode-se dizer que as condutas foram adotadas sob o amparo da norma que então vigorava (compreendida a norma – reitere-se – como o resultado da interpretação). Já no caso em que se pretenda dizer que a alteração da interpretação deveu-se à mera correção de um entendimento antes incorreto, mesmo assim será concebível a preservação de efeitos. Nesse caso, as condutas e programações pretéritas fundaram-se, quando menos, na presunção da legitimidade, autoridade e idoneidade da interpretação ditada pelos órgãos estatais aplicadores do direito. A necessidade de preservação de efeitos será tanto mais intensa quanto mais estabilizada estivesse a interpretação anterior nos órgãos aplicadores do direito.
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