Além dos casos ordinários de ingresso nos quadros do funcionalismo público, a CF prevê no seu artigo 37, IX a possibilidade de a administração pública proceder a contratação temporária de profissionais para atender situações de interesse excepcional.
Como toda norma de eficácia limitada, é necessária a edição de lei visando traçar as condições e os requisitos para que fosse possível dar plena eficácia ao texto constitucional. A lei 8.745/93 dispõe de regras para contratação temporária no âmbito Federal e, em virtude do princípio constitucional da autonomia dos entes federativos, cada estado e município possui competência para editar suas respectivas Leis visando à contratação temporária de seus servidores.
Contudo, tal autonomia na edição da referida norma legal somada ao princípio da legalidade ou legitimidade dos atos administrativos tornou-se uma poderosa arma nas mãos dos gestores públicos. Não é difícil encontrar nos sítios eletrônicos públicos o chamado "processo seletivo simplificado" com o sucinto texto "visando a contratação de pessoal para atender a necessidade excepcional da administração". Tal procedimento é instaurado, em regra, de forma vaga e sem elementos suficientes para justificar a finalidade específica da contratação temporária ou demonstrar a situação emergencial/excepcional que se visa remediar.
Por esta razão muitas vezes os concursos públicos são esquecidos ainda durante sua vigência, dando lugar as contratação temporárias. Mesmo sabendo que o STF1 entende que, havendo nítida necessidade da administração, não se pode preterir aprovados em concursos públicos frente as contratação precárias, tal fato é de difícil comprovação, uma vez que esbarra no notório princípio da legalidade ou legitimidade administrativa.
A doutrina tradicional ensina que os atos administrativos são presumidamente legais e a eventual declaração de ilegalidade depende de prova a ser produzida pela parte que alega. Sob este prisma, chegamos ao entendimento de que a administração pode, a qualquer tempo, realizar contratação temporária de pessoal bastando tão somente a alegação de necessidade imediata, excepcional e transitória, sem que, contudo, seja obrigada a demonstrar motivação para realização do ato administrativo.
Daí chega-se ao mérito do presente estudo
E casos comuns, o aprovado em concurso público que ingressa da Justiça visando a declaração de ilegalidade do ato que efetuou as contratações temporárias esbarra em dois pontos cruciais, quais sejam, (i) a falta de material probatório o qual demonstre o caráter não excepcional da contratação, bem como (i) a presunção de legalidade dos atos administrativos.
A lei 12.527/11 (lei de acesso a informação) trouxe significativo avanço no que tange a transparência pública. Mas, mesmo em vigor, é mal utilizada por muitos entes públicos. Faltam dados, informações e detalhes que garantam o acesso efetivo aos gastos públicos.
Já a presunção de legalidade dos atos administrativos se mostra uma arma fatal nas mãos dos procuradores públicos, visto que com a utilização de tal princípio visa-se afastar qualquer alegação de ilegalidade suscitada.
Isto porque, o princípio da legalidade é bastante utilizado como uma espécie de "coringa" da administração pública. No momento de apresentar resposta/informações, basta fundamentar sua peça no princípio da legalidade administrativa. Este poderoso princípio, se alegado, dispensa a necessidade de acompanhamento probatório ou quaisquer documentos que atestem a legitimidade da atuação pública.
Ou seja, basta, tão somente, a arguição pura e simples da legalidade do ato administrativo, o que, somado a não produção de prova (devido a falta de acesso à informação) pela parte contrária, torna-se uma defesa completa e muitas vezes chancelada pelo Poder Judiciário.
O que se deve atentar é que não basta a simples alegação, vez que havendo indícios de ilegalidade demonstrados pela da parte contrária, a administração tem o dever e trazer aos autos elementos que embasem sua tese e legitimam seu ato sob pena de atribuir ao outro lado da relação processual a árdua missão de apresentar as chamadas "provas diabólicas" ou até mesmo "provas negativas". Há algum tempo a doutrina recente vem se posicionando neste sentido:
Caberá à Administração provar a estrita conformidade do ato à lei, porque ela (Administração) é quem detém a comprovação de todos os fatos e atos que culminaram com a emanação do provimento administrativo contestado. (FIGUEIREDO Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 171).
No mesmo sentido ensina Durval Neto2:
Por ser um mecanismo formal de facilitação na aplicação do Direito em casos concretos, a presunção prestigia mais a segurança jurídica do que propriamente a busca da verdade. Por isso mesmo é preciso atentar que o recurso às presunções, sobretudo àquelas previstas em lei, decorre de política legislativa que apenas se justifica em situações nas quais os meios de prova são impossíveis ou de difícil produção. Se a busca da verdade material é perfeitamente possível em determinadas situações fáticas, através de meios razoavelmente disponíveis para a investigação da realidade, não haveria porque o Legislador, nesses casos, lançar mão das Presunções.
Os raciocínios expostos acima fazem todo o sentido, pois como pode um cidadão ser obrigado a apresentar documentos que somente a administração tem pleno acesso e única capaz apresentá-los? Ou pior, como a administração assegura a legalidade do ato, mas não o traz para o crivo do Judiciário? Por fim, como o cidadão pode ser obrigado a provar a ilegalidade de ato administrativo que não pôde ter acesso?
Observemos um caso curioso. Através de processo judicial3, um determinado contribuinte pretendia declarar a nulidade de um auto de infração. Após o trâmite processual, assim consignou a sentença: "a parte autora não logrou comprovar os fatos constitutivos do seu direito, ou seja, não comprovou que a autuação se baseou exclusivamente em propostas de trabalho de dados curriculares".
O magistrado de 1º grau julgou improcedente a pretensão por entender que cabia ao contribuinte a prova da ocorrência do fato gerador da nulidade do auto de infração. Em sede de apelação, o Tribunal reformou integralmente a sentença por entender que, mesmo diante do princípio da legitimidade dos atos administrativos, a administração tinha plenas condições de provar o alegado fato gerador utilizado como matéria de defesa, sendo, portanto, seu o ônus da prova sob pena de atribuir ao contribuinte a produção de prova negativa.
Assim destacou o relator: "A simples afirmação de que a autuação pautou-se em documentos idôneos, quando refutada, exige apresentação de prova por parte da Autarquia, sob pena de inviabilizar o contraditório necessário à demanda. Como a Administração não providenciou a juntada aos autos de quaisquer dos documentos por ela apontados como sustentáculo da sua autuação ou sequer apresentados os titulares de referidos documentos, é legítima a insurgência do contribuinte".
Desta forma, amparado no fato de que a legalidade administrativa é meramente presumida, bem como amparado até mesmo no instituto da distribuição dinâmica da prova4, conclui-se que cabe ao ente público submeter os atos administrativos alegadamente legítimos (em defesa) ao exame do Poder Judiciário sob pena de incorrer em manifesta ofensa ao contraditório, bem como de incitar a supressão de documentos necessários à descoberta da verdade material.
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1 AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. NOMEAÇÃO DE COMISSIONADOS. PRETERIÇÃO DE CANDIDATA APROVADA EM CONCURSO PÚBLICO. DIREITO À NOMEAÇÃO. PRECEDENTES. 1. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que, comprovada a necessidade do serviço e a existência de vaga, sendo esta preenchida, ainda que precariamente, fica caracterizada a preterição do candidato aprovado em concurso público. 2. Agravo regimental não provido. (STF. ARE 646080. Rel. Min Dias Tofolli. P. 06/02/2012).
2 NETO, Durval. Processo, jurisdição e ônus da prova no Direito Administrativo. Salvador: Podivm, 2008. p. 119
3 TRF1. APELAÇÃO CÍVEL 0020818-71.2001.4.01.0000 - 2001.01.00.022930-6/DF
4 Ficará a critério político do legislador optar entre fixar previamente mecanismos rígidos ou facultar ao aplicador a possibilidade de definição segundo as peculiaridades de cada situação concreta (...), não existe um parâmetro natural de incidência do ônus da prova ou um critério logicamente uniforme na definição das regras de distribuição (NETO, Op.cit. p. 107-110)
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* Marcelo de Ávila Caiaffa é advogado do escritório Caiaffa & Santos Advogados Associados.