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Euclides invade a casa de Dilermando e leva a pior

Nesse dia ocorreu uma tragédia, conhecida como tragédia de Piedade, em alusão ao bairro carioca.

29/6/2009

Em 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha deixa sua casa e segue em direção ao bairro de Piedade, no Rio de Janeiro, decidido a matar ou morrer. O destino era a casa de Dilermando de Assis, tenente, amigo e sobrinho que há muito lhe tomava o coração da esposa. O objetivo do autor de "Os Sertões" não era outro senão colocar tudo em pratos limpos, em nome de sua honra. Nesse dia ocorreu uma tragédia – conhecida como "Tragédia de Piedade" – mas quem levou a pior foi Euclides da Cunha, e não Dilermando.

Em homenagem aos 100 anos da morte de Euclides da Cunha, preparamos uma retomada dos pontos principais da "Tragédia de Piedade" a partir de matérias divulgadas na mídia. Em O malho, edição de 1909, vemos como os desafetos do lar de Euclides o impulsionaram, pouco a pouco, para uma situação de confronto com Dilermando. O outro, o Diário de S. Paulo, de 1949, traz pela primeira vez até então depoimentos do jovem tenente, que assegurou ter cometido um crime em legítima defesa. Leia o resumo que segue dos fatos e comece a tirar suas próprias conclusões sobre o crime!

O homem Euclides da Cunha

Euclides da Cunha era natural de Cantagallo, Estado do Rio de Janeiro, onde nasceu em 1866. Na mesma proporção que se mostrava desde cedo um homem talentoso, de inteireza moral, mostrava ter também impetuosidade de temperamento. Exemplo disso é a história que aconteceu na antiga Escola Militar, quando atirou a baioneta aos pés do ministro Thomaz Coelho, repugnando a sua sinceridade de republicano continuar a jurar fidelidade ao regime monárquico. Por esse fato, Euclides não só ficou conhecido como "o rapaz da baioneta" como também foi recolhido imediatamente à prisão e posteriormente transferido para um hospital com diagnóstico de esgotamento nervoso por excesso de estudo. Submetido mais tarde à interrogatório, por professar sua fé republicana com veêmencia, foi desligado do Exército por indisciplina.

Por ocasião da campanha de Canudos Euclides seguiu na qualidade de jornalista do jornal Estado de S. Paulo e de lá trouxe sua Caderneta de Campo que, mais tarde, serviria de referência para o produção de "Os Sertões", que marcaria o início de uma brilhante carreira literária e seria a afirmação definitiva e concludente do seu grande valor intelectual. Esse livro intenso conquistou logo o público, renovando o raro fenômeno de ir além da 1ª edição. Daí por diante os seus triunfos foram sucessivos, fazendo-se incluir membro do Instituto Histórico e eleger-se para a Academia Brasileira de Letras.

Tristeza apesar do sucesso

Apesar disso, Euclides andava acabrunhado. Os que conviviam com o autor d' "Os Sertões" notavam-lhe nos últimos tempos certa perturbação de espírito. Eram os desgostos morais que a situação do seu lar provocava.

E assim continuou a ser até que lhe veio a notícia brutal, de modo anônimo, que denunciava as relações criminosas da esposa cara, a sua velha companheira de há 17 anos, com um rapaz cuja educação proveu desde criança, amparando-o generosamente na orfandade. Seu nome era Dilermando de Assis.

O lar de Euclides se desorganizou, então, definitivamente. É digno de nota que sua esposa o deixava frequentemente para visitar sua mãe, a viúva do general Sólon, residente em São Christovão. Mas também dali saía, com destino que Euclides da Cunha não ignorava: à estação da Piedade, onde residiam os aspirantes Dilermando e seu irmão Dinorah de Assis, à Estrada Real de Santa Cruz, 214.

E foi exatamente isso o que aconteceu nos antecedentes próximos do crime. Devido às conturbações de seu lar, no dia 12 de agosto, Ana da Cunha, sob o pretexto de procurar uma outra casa para onde se mudar saiu e não voltou para sua residência, onde morava com Euclides. Pernoitou fora de casa, sem que seu marido soubesse onde, apesar de ter saído a indagar. Saindo ele novamente a sua procura no dia seguinte (13), encontrou-a na casa de sua mãe. Os dois combinaram que Ana lá permaneceria até o dia seguinte (14), quando deveria ir visitar Euclides no Ginásio Nacional e levar para casa seu filho menor.

No entanto, o combinado não foi cumprido. Euclides da Cunha exasperou-se quando, no sábado (14), depois de dar aula pela manhã no Ginásio Nacional, indo à casa de sua sogra, foi informado de que sua mulher ali não passara a noite, nem lá chegara até aquela hora; o estado de excitação de Euclides aumentou vendo que também de sábado para domingo a esposa não aparecia nem dava notícia de si.

Marcha para Piedade

Em vista disso, Euclides da Cunha partiu na manhã de 15 de agosto para a casa de Dilermando de Assis, com a certeza moral de que lá encontraria sua esposa. Antes disso, passou na casa de um parente, a quem, sob a alegação de que um cachorro hidrófobo lhe andava pela vizinhança, pediu um revolver emprestado. Emprestaram-lhe a arma. Era um revolver Smith and Wesson. Como a manhã era chuvosa, deram-lhe também uma capa e um guarda-chuva. Euclides partiu, então, para a Central do Brasil, onde comprou uma passagem de ida e volta. Algum tempo depois, desembarcava na estação de Piedade. Quando chegou à residência, foi recebido e introduzido na sala de visitas por Dinorah Cândido de Assis, irmão de Dilermando.


Adentrando a casa começou logo a indagar: "Onde está minha mulher?". E antes que qualquer resposta fosse dada, Euclides investiu pela casa, procurando Dilermando, que se achava em um quarto cuja porta foi arrombada. Euclides empunhava um revólver, com o qual enfrentou o tenente, disparando nervosamente a esmo. Foi, no entanto, alcançado por Dinorah, que correu em defesa do irmão.

Enquanto isso, Dilermando pegou sua arma e, segundo declarou, para intimidar Euclides, que o alvejava, disparou duas vezes para o ar, sem que conseguisse o efeito desejado. Euclides redobrou a fúria da vingança e foi nessa ocasião que Dilermando o feriu mortalmente no peito. Mas Euclides não foi o único a ser atingido no duelo. Dilermando levou um tiro na virilha esquerda, onde penetrou um projétil e Dinorah recebeu outro na coluna vertebral. Mas, dos três, o único que veio a morrer foi Euclides.

O escritor foi cair junto à porta da rua, mas foi transportado em seguida para um leito. Momentos depois lhe prestava socorros sua esposa, que disse haver chegado durante o desenrolar da tragédia e que para ali fora com o fim exatamente de a evitar. Mas contam também os jornais que, na verdade, a esposa de Euclides da Cunha esteve o tempo todo na casa de Dilermando, escondida em um dos quartos do fundo. Seja como for, Euclides veio a falecer em seguida, tendo para o seu assassino a seguinte frase : "odeio-te, mas te perdôo!".

O Malho - revista 362

Vingança ou legítima defesa?

O crime deixou o país chocado, tomou as páginas dos jornais, ganhou a opinião pública. Afinal de contas, Dilermando era culpado ou inocente? O fato foi que Dilermando chegou a ficar cerca de dois anos preso e nem depois disso deixou de sofrer agressões, tamanha a comoção causada pela morte do escritor. Somente muito tempo depois Dilermando pode se pronunciar, fazendo sua defesa na imprensa.


Isso foi em 1949, no Diário de S. Paulo. Em sua defesa, Dilermando conta que seu revolver foi apreendido contendo seis estojos vazios nas suas câmaras. Dos seis disparos feitos, apenas um projétil ficou "encravado" no corpo de Euclides, a causa mortis. Os impactos dos cinco restantes foram encontrados nas paredes do corredor e da sala.

Pela quase equidistância em que se encontravam esses vestígios, tem-se a perfeita impressão de que foram sucessivos. E, segundo Dilermando, o foram, de fato, em série. Seria inaceitável, portanto, uma solução de continuidade, entre o 5º e o 6º disparo, do corredor ao jardim. Por isso, seria falsa a hipótese de crime por vingança. O tiro teria sido disparado no calor das coisas, e não posteriormente, como noticiaram os jornais, dizendo que Euclides fora baleado quando deixava a casa de Dilermando, já nos jardins – uma vez que estava ferido e impossibilitado de continuar o duelo. Segundo Dilermando, Euclides caiu antes de chegar sequer à porta da sala. Caiu logo ao descer a escada, com os pés para o lado da saída.

Retomando a cena, o tenente explica que o sexto tiro foi o mortal. O tiro anterior fora disparado quando da porta do corredor, próximo ao quarto de Dilermando. Este recuava como o vinha fazendo, encostado à parede, pois Euclides ainda o alvejava. Nesse duelo, o flanco esquerdo do escritor apoiava-se à parede e, por isso, todos os ferimentos ele recebeu no flanco direito, que ficava mais exposto.

Era um dever matar?

Pelos resultados da perícia realizada no prédio, concluíram os doutos que duas das balas do revolver de Euclides foram tocar nas paredes da sala. Só podiam ser as que atravessaram as roupas de Dinorah no momento em que, seguindo Euclides, procurou impedi-lo de continuar sua agressão armada contra Dilermando.

Com base nesse fato, o tenente raciocina em sua defesa do seguinte modo: "Que me cumpria fazer neste caso, vendo em risco a vida de meu irmão, que heróica e despreendidamente acaba de enfrentar, na defesa de minha vida, um louco armado de revolver? Não me assistiria, então, o "dever" de matar Euclides, ferindo-o também pelas costas, umas vez que meu irmão não tinha responsabilidade alguma pela situação e muito menos pelo fato de sua esposa haver abandonado o lar e ter vindo acolher-se e pernoitar em nossa casa? E as demais vidas, que só a mim cumpria defender? Não é de que continuasse atirando contra todos os que encontrasse?"

A partir da matéria de amanhã, retomaremos os autos do processo do assassinato de Euclides da Cunha, destacando os pontos mais relevantes do julgamento de Dilermando de Assis. Aproveite, pois aqui não há taxa para o desarquivamento!

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