O estopim da guerra de Canudos
A altercação do líder Antônio Conselheiro com um juiz de Direito foi o que deu origem à luta que se travou no interior da Bahia.
Da Redação
sexta-feira, 26 de junho de 2009
Atualizado em 18 de janeiro de 2023 12:05
Crise econômica e social. Nessa breve sentença podemos tentar resumir as razões por trás da guerra que se descortinou em Canudos. Os latifúndios improdutivos, as secas cíclicas, a servidão arcaica e a crença de uma salvação milagrosa por parte dos céus levaram aos embates entre sertanejos e representantes da República nos anos de 1896 e 1897.
O episódio é bastante conhecido, regularmente ensinado nas escolas, mas o que poucos sabem é que foi um juiz de Direito o detonador de todo o conflito.
De fato, conta a história que Antônio Conselheiro fora a Juazeiro obter madeiras que seriam usadas no arremate da nova igreja em Canudos. O acordo foi firmado com a autoridade local, o juiz, Dr. Arlindo Leôni. Mas a mercadoria, propositadamente, não foi entregue :
"O principal representante da justiça de Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que, sendo juiz do Bom Conselho fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele".
Ocorre que na peregrinação pelo sertão, antes de se assentar em Canudos, o Conselheiro chegava nas cidades e ali se transformava no chefe supremo. Desde o alcaide até o pároco lhe deviam respeito. O então magistrado de Bom Conselho, pelo visto, não aceitou o desmando e guardou a ferida.
Estava armada a confusão. Não admitindo a não entrega da mercadoria adquirida, Antônio Conselheiro "retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação do São Francisco: as madeiras seriam de lá arrebatadas, à força1.
Do lado do juiz de Direito ficou a novel República, que encontrou no caso (acusando o Conselheiro de monarquista) uma boa desculpa para livrar-se do incômodo arraial dos fanáticos.
Do lado do Conselheiro, mais de 20 mil sertanejos defendendo a vida.
Iniciou-se, assim, a mefistofélica "Guerra de Canudos", que durou quase um ano de dispendiosas batalhas (quatro expedições), deixando um rastro de sangue pelo sertão, e um saldo de aproximadamente 25 mil mortos.
E, como relata Euclides da Cunha, "Canudos não se rendeu" :
"Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo."
Tal se deu, em boa parte, por culpa da forma como o Exército brasileiro tratou os que se rendiam.
Vejamos.
Lei de Talião
"Aquilo não era uma campanha". "Não era a ação severa das leis, era vingança".
"E lá não chegaria, certo a correção dos poderes constituídos. O atentado era público".
"Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava."2
Quem lê "Os Sertões" fica perplexo com o relato do modo como que o Exército republicano agia em relação aos presos de guerra.
Olho por olho, dente por dente.
A palavra que resume tudo não pode ser outra : barbárie. Que os sertanejos agissem dessa forma, isso lá é compreensível, mas que o mesmo acontecesse com o Exercito nacional, em defesa da Ordem e do Progresso...
Depois de resistir a algumas investidas do exército republicano, alguns sequiosos sertanejos se renderam às metralhadoras e aos canhões oficiais.
O que faziam os soldados ? Exigiam que dessem vivas à República, e os degolavam, de cima da montanha, aos olhos de todos os matutos que resisitiam no arraial.
Diante de tal espetáculo de horror, dizem os relatos que o Conselheiro tratou de informar seus seguidores que quem morresse degolado não teria a salvação eterna. Era a senha para que lutassem até o fim, até a exaustão. E, de fato, "lutariam até a morte."3 Foi o que fizeram.
Assim, se houve barbárie por parte dos sertanejos, houve barbárie por parte do Estado. O governo mostrou ter as mesmas leis que o arraial. O estabelecimento da ordem republicana justificou os mais diversos tipos de crimes. Não bastava, pois, cumprir o objetivo - reprimir a "insurreição" - visto que, a certa altura, muitos já se entregavam. Era necessário torturar e cometer atrocidades diversas.
Euclides não esconde dos leitores essa página medonha da Guerra. Não deixa, porém, de dar seu grito de protesto, explicando que é uma página "sombria, porque reflete uma nódoa - esta página sem brilhos..."
A República para Euclides da Cunha
"Euclides da Cunha identificava a República com todo o progresso verdadeiro que o regime anterior não tinha conseguido dar ao Brasil". "Por isso, mesmo nos tempos inquietos e irrequietos de Floriano Peixoto, Marechal de Ferro e Esfinge, tempos de militarismo desenfreado em que, segundo o próprio Euclides, se combatia pela lei com a ilegalidade - ele defendia Floriano e perdoava tudo, porque tudo era apenas um meio para um fim mais alto, o desenvolvimento nacional."4
Euclides era um republicano, mas, antes disso, era um nacionalista. E se antes havia perdoado as ilegalidades cometidas no governo de Floriano, que presidiu o país de 1891 a 1894, o mesmo não aconteceu no que se refere à guerra de Canudos, de 1896 a 1897.
Euclides considerava o jagunço como sendo verdadeiramente o tecido do Brasil. É por isso que em "Os Sertões", o autor reclama o abandono a que eles ficaram relegados nas caatingas.
Em interessante ensaio publicado pela Academia de Letras da Faculdade de Direito da USP, em 1946, Paula Beiguelman - Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - (que infelizmente faleceu no último dia 5 de junho de 2009), aponta que :
"Quando o caboclo realiza tropelias em Canudos, com o seu misticismo importuno, e é foco de desordens no país, obrigando um batalhão urbano a sufocá-lo - Euclides da Cunha levanta a sua figura nervosa e sôfrega e lúcida ao mesmo tempo, e diz que a campanha foi 'na significação integral da palavra, um crime' "5.
Em homenagem aos 100 anos da morte de Euclides da Cunha, você vai poder acompanhar na matéria de segunda-feira uma seleção especial de trechos de jornais e revistas que remontam a "Tragédia de Piedade" : Euclides da Cunha é assassinado pelo sobrinho, amante de sua mulher.
Curiosidades que você não pode perder!
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1 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 23ª edição. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo Ltda. 1954. p.199.
2 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 23ª edição. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo Ltda. 1954. p.505.
3 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 23ª edição. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo Ltda. 1954. p. 503,506.
4 BEIGUELMAN, Paula. Sobre Euclides da Cunha. In: Arcádia. Número 29. Ano XI. São Paulo: Academia de Letras da Faculdade de Direito da Universidade de S. Paulo. 1946. p.18.
5 BEIGUELMAN, Paula. Sobre Euclides da Cunha. In: Arcádia. Número 29. Ano XI. São Paulo: Academia de Letras da Faculdade de Direito da Universidade de S. Paulo. 1946 p.15.
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