O curioso caso do vaqueiro
Aspectos da lei n' "Os Sertões"1
Eu venho dêrne menino,
Dêrne munto pequenino,
Cumprindo o belo destino
Que me deu Nosso Senhô.
Eu nasci pra sê vaquêro,
Sou o mais feliz brasilêro,
Nem diproma de dotô.
[...]
Vivo do currá pro mato,
Sou correto e munto izato,
Por farta de zelo e trato
Nunca um bezerro morreu.
Se arguém me vê trabaiando,
A bezerrama curando,
Dá pra ficá maginando
Que o dono do gado é eu.
(Patativa do Assaré – O Vaqueiro)
Curioso é o caso do vaqueiro narrado por Euclides da Cunha. Conta o autor de "Os Sertões" que, vivendo em servidão ao fazendeiro, o vaqueiro tratava logo de aprender a diferenciar as letras do alfabeto. Isso não se dava, ao contrário do que se imagina, para que ele se alfabetizasse. Não. O motivo era outro : saber a marcação que o gado levava ou, como explica Euclides, "conhecer os ferros das suas fazendas e os das circunvizinhas".
E conhecia mesmo, de modo que "quando surgia no seu logrador um animal alheio [...] o restituía de pronto", devolvendo ao dono o que lhe era de direito.
É verdade que coisa parecida acontece vez por outra em nossos dias. Caso sejam achados documentos, objetos ou dinheiro, alguns buscam devolver, obedecendo a lei de sua própria consciência.
Todavia, é preciso convir que se trata de coisa rara.
Mas não era só isso. Mais interessante ainda é o que fazia o matuto quando não conhecia o dono do animal : "conserva o intruso, tratando-o como aos demais. Mas não o leva à feira anual, nem o aplica em trabalho algum; deixa-o morrer de velho." Afinal de contas, "não lhe pertence."
Como é bem de ver, o vaqueiro d'"Os Sertões", pobre e analfabeto, poderia aproveitar a situação para "enriquecer" às custas do acaso, mas nem mesmo a sua pobreza o fazia mudar a sua reta conduta.
De fato, de livre e espontânea vontade ele firmava, sendo ele apenas o signatário, um pacto com o dono ignorado a respeito das crias que o animal pudesse gerar : "Se uma vaca dá cria, ferra a esta com o mesmo sinal desconhecido, que reproduz com perfeição admirável; e assim pratica com toda a descendência daquela. De quatro em quatro bezerros, porém, separa um, para si. É a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro".
Se tempos depois, porém, o dono do animal o encontrasse e o reconhecesse nas mãos do vaqueiro era, então, imediatamente restituído de suas posses, e feliz da vida ainda levaria também as crias que viessem a existir.
Euclides da Cunha anota que o que pode parecer curioso aos nossos olhos, era fato vulgar no sertão, e muito revelava sobre a índole desses homens simples.
Tranqüilo ficava o patrão, o grande proprietário de terra, que deixava o trabalho nas mãos dos vaqueiros sabendo que sua porcentagem nunca seria violada.
Que exemplo caro nos dias de hoje !
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Na próxima matéria, vamos apresentar os 5 mandamentos de Canudos, as cinco leis com as quais um só homem, Antônio Conselheiro, conduziu mais de 20 mil pessoas no nordeste brasileiro. Vale a pena conferir!
Vaqueiro por formação
Projeto Parcerial Rural-Pecuária
Relações de trabalho
Em tempos atuais o que se percebe também é um esforço em modificar a informalidade histórica que permeou os acordos entre empregadores e empregados. Desde 1973, as relações de trabalho rural são regidas pelas normas da CLT.
Apenas para lembrar, de acordo com a lei 5.889 de 8/6/1973, configuram-se empregado e empregador rural os que gozam da seguinte situação :
Art. 2º Empregado rural é toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural, sob a dependência deste e mediante salário.
Art. 3º Considera-se empregador rural, para os efeitos desta Lei, a pessoa física ou jurídica, proprietário ou não, que explore atividade agroeconômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de prepostos e com auxílio de empregados.
E se o vaqueiro de outros tempos vivia em servidão, a lei agora é outra :
Art. 5º Em qualquer trabalho contínuo de duração superior a seis horas, será obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, observados os usos e costumes da região, não se computando este intervalo na duração do trabalho. Entre duas jornadas de trabalho haverá um período mínimo de onze horas consecutivas para descanso.
Art. 9º Salvo as hipóteses de autorização legal ou decisão judiciária, só poderão ser descontadas do empregado rural as seguintes parcelas; calculadas sobre o salário-mínimo:
a) até o limite de 20% (vinte por cento) pela ocupação da morada;
b) até 25% (vinte e cinco por cento) pelo fornecimento de alimentação sadia e farta, atendidos os preços vigentes na região;
c) adiantamentos em dinheiro.
Art. 18. As infrações aos dispositivos desta Lei e aos da Consolidação das Leis do Trabalho, salvo as do Título IV, Capítulos I; III, IV, VIII, e IX, serão punidas com multas de 1/10 (um décimo) a 10 (dez) salários-mínimos regionais, segundo a natureza da infração e sua gravidade, aplicada em dobro, nos casos de reincidência, oposição à fiscalização ou desacato à autoridade.
§ 1º A falta de registro de empregados ou o seu registro em livros ou fichas não rubricadas ou legalizadas, na forma do artigo 42, da Consolidação das Leis do Trabalho, sujeitará a empresa infratora à multa de 1 (um) salário-mínimo regional por empregado em situação irregular.
Além disso, há também as leis assentadas no Estatuto da Terra, que disciplina o uso, a ocupação e as relações fundiárias em cada país. Interessante notar as regras que o estatuto estabelece em casos de contrato de meação, prática parecida com o que acontecia com o matuto do relato de Euclides da Cunha. Na lei 4.504/64, art. 96 e incisos lemos :
I - o prazo dos contratos de parceria, desde que não convencionados pelas partes, será no mínimo de três anos, assegurado ao parceiro o direito à conclusão da colheita, pendente, observada a norma constante do inciso I, do artigo 95;
VI - na participação dos frutos da parceria, a quota do proprietário não poderá ser superior a :
a) 20% (vinte por cento), quando concorrer apenas com a terra nua; (Redação dada pela Lei nº 11.443, de 2007).
b) 25% (vinte e cinco por cento), quando concorrer com a terra preparada; (Redação dada pela Lei nº 11.443, de 2007).
c) 30% (trinta por cento), quando concorrer com a terra preparada e moradia; (Redação dada pela Lei nº 11.443, de 2007).
d) 40% (quarenta por cento), caso concorra com o conjunto básico de benfeitorias, constituído especialmente de casa de moradia, galpões, banheiro para gado, cercas, valas ou currais, conforme o caso; (Redação dada pela Lei nº 11.443, de 2007).
e) 50% (cinquenta por cento), caso concorra com a terra preparada e o conjunto básico de benfeitorias enumeradas na alínea d deste inciso e mais o fornecimento de máquinas e implementos agrícolas, para atender aos tratos culturais, bem como as sementes e animais de tração, e, no caso de parceria pecuária, com animais de cria em proporção superior a 50% (cinquenta por cento) do número total de cabeças objeto de parceria; (Redação dada pela Lei nº 11.443, de 2007).
f) 75% (setenta e cinco por cento), nas zonas de pecuária ultra-extensiva em que forem os animais de cria em proporção superior a 25% (vinte e cinco por cento) do rebanho e onde se adotarem a meação do leite e a comissão mínima de 5% (cinco por cento) por animal vendido; (Redação dada pela Lei nº 11.443, de 2007).
g) nos casos não previstos nas alíneas anteriores, a quota adicional do proprietário será fixada com base em percentagem máxima de dez por cento do valor das benfeitorias ou dos bens postos à disposição do parceiro.
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1 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 23ª edição. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo Ltda. 1954. p. 108-109.
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