Migalhas Quentes

Folha reage a críticas e ofende Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides

Um editorial da Folha de S. Paulo sobre a ditadura. Algumas cartas de leitores discordantes. Uma reação "violenta". É este o contexto que originou ontem, 9/3, pela OAB, a aprovação de um manifesto público de solidariedade a Fábio Konder Comparato - jurista e medalha Ruy Barbosa da OAB.

10/3/2009


"Ditabranda"

Folha reage a críticas e ofende os leitores Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides

Um editorial da Folha de S.Paulo. Algumas cartas de leitores discordantes. Uma reação nada cortês. Resultado : OAB aprova um manifesto público de solidariedade a um dos personagens da história, Fábio Konder Comparato.

Encoberto pelas festividades carnavalescas, o fato começou a se desenhar no dia 17/2, quando o jornal Folha de S.Paulo publicou um editorial intitulado "Limites a Chávez", sobre a vitória de Chávez no referendo que permite que ele possa candidatar-se a um terceiro mandato. No texto, uma referência a ditaduras, como a vivida pelo Brasil entre 1964 e 1985, sendo chamadas de "ditabrandas" e não "duras".

Nos dias seguintes, no mesmo matutino, leitores manifestaram-se sobre o texto. Entre eles, Maria Victoria De Mesquita Benevides e Fábio Konder Comparato. Em resposta às manifestações, especificamente destes dois leitores, a Folha considerou-as como sendo "cínica e mentirosa".

No dia seguinte, 21/2, já vinha a manifestação do Professor Goffredo da Silva Telles Jr. e de sua dileta esposa, a advogada Maria Eugenia Raposo da Silva Telles, para quem "os professores Fábio Comparato e Maria Victoria Benevides merecem o respeito e a gratidão do povo brasileiro pela luta pertinaz em defesa dos direitos humanos".

  • Abaixo, os migalheiros podem acompanhar a íntegra do edital da Folha de S.Paulo, do Painel dos Leitores do mesmo matutino e de artigos publicados na revista CartaCapital, que documentam o lamentável fato. Além, é claro, do manifesto da Ordem.

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  • Editorial da Folha de S.Paulo, de 17 de fevereiro de 2009

Limites a Chávez

Apesar da vitória eleitoral do caudilho venezuelano, oposição ativa e crise do petróleo vão dificultar perpetuação no poder

O ROLO compressor do bonapartismo chavista destruiu mais um pilar do sistema de pesos e contrapesos que caracteriza a democracia. Na Venezuela, os governantes, a começar do presidente da República, estão autorizados a concorrer a quantas reeleições seguidas desejarem.

Hugo Chávez venceu o referendo de domingo, a segunda tentativa de dinamitar os limites a sua permanência no poder. Como na consulta do final de 2007, a votação de anteontem revelou um país dividido. Desta vez, contudo, a discreta maioria (54,9%) favoreceu o projeto presidencial de aproximar-se do recorde de mando do ditador Fidel Castro.

Outra diferença em relação ao referendo de 2007 é que Chávez, agora vitorioso, não está disposto a reapresentar a consulta popular. Agiria desse modo apenas em caso de nova derrota. Tamanha margem de arbítrio para manipular as regras do jogo é típica de regimes autoritários compelidos a satisfazer o público doméstico, e o externo, com certo nível de competição eleitoral.

Mas, se as chamadas "ditabrandas" -caso do Brasil entre 1964 e 1985- partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça-, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente.

Em dez anos de poder, Hugo Chávez submeteu, pouco a pouco, o Legislativo e o Judiciário aos desígnios da Presidência. Fechou o círculo de mando ao impor-se à PDVSA, a gigante estatal do petróleo.

A inabilidade inicial da oposição, que em 2002 patrocinou um golpe de Estado fracassado contra Chávez e depois boicotou eleições, abriu caminho para a marcha autoritária; as receitas extraordinárias do petróleo a impulsionaram. Como num populismo de manual, o dinheiro fluiu copiosamente para as ações sociais do presidente, garantindo-lhe a base de sustentação.

Nada de novo, porém, foi produzido na economia da Venezuela, tampouco na sua teia de instituições políticas; Chávez apenas a fragilizou ao concentrar poder. A política e a economia naquele país continuam simplórias -e expostas às oscilações cíclicas do preço do petróleo.

O parasitismo exercido por Chávez nas finanças do petróleo e do Estado foi tão profundo que a inflação disparou na Venezuela antes mesmo da vertiginosa inversão no preço do combustível. Com a reviravolta na cotação, restam ao governo populista poucos recursos para evitar uma queda sensível e rápida no nível de consumo dos venezuelanos.

Nesse contexto, e diante de uma oposição revigorada e ativa, é provável que o conforto de Hugo Chávez diminua bastante daqui para a frente, a despeito da vitória de domingo.

Fonte: Folha de S.Paulo
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  • Painel do Leitor – Folha de S.Paulo, 20 de fevereiro de 2009

Ditadura

"Lamentável o uso da palavra "ditabranda" no editorial "Limites a Chávez" (Opinião, 17/2) e vergonhosa a Nota da Redação à manifestação do leitor Sérgio Pinheiro Lopes ("Painel do Leitor", ontem). Quer dizer que a violência política e institucional da ditadura brasileira foi em nível "comparativamente baixo'? Que palhaçada é essa? Quanto de violência é admissível? No grande "Julgamento em Nuremberg" (1961), o personagem de Spencer Tracy diz ao juiz nazista que alegava que não sabia que o horror havia atingido o nível que atingira: "Isso aconteceu quando você condenou à morte o primeiro homem que você sabia que era inocente". A Folha deveria ter vergonha em relativizar a violência. Será que não é por isso que ela se manifesta de forma cada vez maior nos estádios, nas universidades e nas ruas?" MAURICIO CIDADE BROGGIATO (Rio Grande, RS)

"Inacreditável. A Redação da Folha inventou um ditadômetro, que mede o grau de violência de um período de exceção. Funciona assim: se o redator foi ou teve vítimas envolvidas, será ditadura; se o contrário, será ditabranda. Nos dois casos, todos nós seremos burros." LUIZ SERENINI PRADO (Goiânia, GO)

"Com certeza o leitor Sérgio Pinheiro Lopes não entendeu o neologismo "ditabranda", pois se referia ao regime militar que não colocou ninguém no "paredón" nem sacrificou com pena de morte intelectuais, artistas e políticos, como fazem as verdadeiras ditaduras. Quando muito, foram exilados e prosperaram no estrangeiro, socorridos por companheiros de esquerda ou por seus próprios méritos. Tivemos uma ditadura à brasileira, com troca de presidentes, que não vergaram uniforme e colocaram terno e gravata, alçando o país a ser a oitava economia do mundo, onde a violência não existia na rua, ameaçando a todos, indistintamente, como hoje. Só sofreu quem cometeu crimes contra o regime e contra a pessoa humana, por provocação, roubo, sequestro e justiçamentos. O senhor Pinheiro deveria agradecer aos militares e civis que salvaram a nação da outra ditadura, que não seria a "ditabranda". PAULO MARCOS G. LUSTOZA , capitão-de-mar-e-guerra reformado (Rio de Janeiro, RJ)

"Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de "ditabranda'? Quando se trata de violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar "importâncias" e estatísticas. Pelo mesmo critério do editorial da Folha, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi "doce" se comparada com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com a senzala -que horror!" MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES, professora da Faculdade de Educação da USP (São Paulo, SP)

"O leitor Sérgio Pinheiro Lopes tem carradas de razão. O autor do vergonhoso editorial de 17 de fevereiro, bem como o diretor que o aprovou, deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito devido à pessoa humana." FÁBIO KONDER COMPARATO, professor universitário aposentado e advogado (São Paulo, SP)

Nota da Redação - A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua "indignação" é obviamente cínica e mentirosa.

Fonte: Folha de S.Paulo
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  • Painel do Leitor – Folha de S.Paulo, 21 de fevereiro de 2009

Ditadura

"Há anos a linha da Folha tem sido crítica às ditaduras, especialmente à nossa. Fiquei na dúvida se o termo "ditabranda" (editorial "Limites a Chávez", 17/2) foi ato falho ou se é mesmo defesa do regime que foi de Castelo a Figueiredo. Nossos torturadores justificavam a nossa ditadura acusando a dos outros." JOEL RUFINO DOS SANTOS (Rio de Janeiro, RJ)

"Li as diversas manifestações sobre a ditadura no Brasil. Todas têm alguma validade, mas o que mais me chamou a atenção foi que a mensagem mais inteligente, mais holística, com menor conteúdo de raiva e de ódio veio exatamente de um militar (senhor Paulo Lustoza). Esperava-se que professores catedráticos tivessem um olhar mais colorido, capaz de reconhecer todas as matizes de um regime autoritário, e que o militar fosse mais branco e preto. Mas só o senhor Lustoza foi capaz de reconhecer que a nossa ditadura foi muito diferente das ditaduras de Fidel, de Stálin, de Hitler ou de Mao. Aqui não houve culto a personalidade, embora tenha havido violência e injustiças. Aqui não houve milhões de mortos nem fuga em massa para o exterior. Todos esses regimes se enquadram na definição de ditadura, mas as cores e a profundidade da falta de liberdade foram completamente diferentes." CARLOS EDUARDO CUNHA (São Paulo, SP)

"Qualificar a ditadura militar de "ditabranda" é insuportável. Assassinatos, perseguições, torturas, prisões iníquas, suicídios forjados e execuções sumárias foram crimes praticados naquela época por agentes do Estado. A relativização da perversidade desses crimes produz impacto aterrador. Os professores Fábio Comparato e Maria Victoria Benevides merecem o respeito e a gratidão do povo brasileiro pela luta pertinaz em defesa dos direitos humanos. Repudiamos com veemência os termos horríveis da resposta dada a eles neste "Painel" ontem." GOFFREDO DA SILVA TELLES JÚNIOR , professor emérito da USP, e MARIA EUGENIA RAPOSO DA SILVA TELLES, advogada (São paulo, SP)

"Ao chamar de "cínica e mentirosa" a "indignação" manifestada pelos professores Benevides e Comparato, a Folha ("Painel do Leitor", ontem) foi no mínimo deselegante. Não soube lidar com as críticas. Concorde-se ou não com os professores, ambos utilizaram artifícios retóricos parecidos aos que a Folha recorreu para falar de Hugo Chávez no editorial de 17/2. Valeria também o cínico e mentiroso para o editorial?" NONATO VIEGAS , jornalista (Duque de Caxias, RJ)

"Esta Folha entornou de vez o caldo. No lugar da autocrítica pela malfadada expressão utilizada no editorial de 17/2, de evidentes prejuízos para a cultura democrática, achou por bem agora atacar, de modo presunçoso, intelectuais brasileiros de inestimáveis serviços à crítica e superação do regime autoritário aberto em 1964." MARCOS AURÉLIO DA SILVA , professor do Departamento de Geociências da UFSC (Florianópolis, SC)

"A referência do editorial à ditadura brasileira como "ditabranda" não representou uma defesa ou tentativa de relativizar o período e, em seu contexto, deixa claro o caráter negativo de qualquer regime de exceção. Mas foi lamentável a forma como a Folha lidou com os protestos dos leitores. Em vez de aproveitar a oportunidade para reiterar o seu compromisso com as instituições democráticas e repudiar qualquer forma de autoritarismo, o jornal adotou uma posição defensiva, ambígua e evasiva, indigna do maior jornal do país. Particularmente inapropriado foi usar este espaço para atacar em nível pessoal dois professores universitários, rebaixando-se ao nível de um tabloide de aluguel e manchando a tradição de imparcialidade e a atitude profissional esperada pelos leitores. O que poderia ter sido um episódio menor vai ser lembrado na história da Folha como a semana infeliz em que o jornal usou seu espaço para hostilizar seus leitores." FELIPE DE AMORIM (Santo André, SP)

"Em relação à "Nota da Redação" em resposta às cartas do senhor Comparato e da senhora Benevides, advirto a Folha de que, apesar de correta, a referida nota despertará a fúria da militância esquerdista. Logo a Redação receberá mais um exemplar da mais profícua produção intelectual da esquerda brasileira: os abaixo-assinados." EDMAR DAMASCENO FONSECA (Belo Horizonte, MG)

Fonte: Folha de S.Paulo
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  • Artigo - Portal da Revista CartaCapital, 27 de fevereiro de 2009

'Ditabranda' para quem?

Maria Victoria de Mesquita Benevides*

Quase ninguém lê editorial de jornais, mas quase todos leem a seção de cartas. E foi assim que tudo começou. Os fatos: a Folha de S.Paulo, em editorial de 17/2, aplica a expressão “ditabranda” ao regime militar que prendeu, torturou, estuprou e assassinou. O primeiro leitor que escreve protestando recebe uma resposta pífia; a partir daí, multiplicam-se as cartas: as dos indignados e as dos que ainda defendem a ditadura. Normal.

Mas eis que chegam a carta do professor Fábio Konder Comparato e a minha: “Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de ‘ditabranda’? Quando se trata de violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar ‘importâncias’ e estatísticas. Pelo mesmo critério do editorial da Folha, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi ‘doce’ se comparada com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com a senzala – que horror!” (esta escriba). “O leitor Sérgio Pinheiro Lopes tem carradas de razão. O autor do vergonhoso editorial de 17/2, bem como o diretor que o aprovou, deveria ser condenado a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito devido à pessoa humana” (Prof. Fábio).

As cartas são publicadas acompanhadas da seguinte Nota da Redação – “A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua ‘indignação’ é obviamente ‘cínica e mentirosa’.”

Pronto. Como disseram vários comentaristas, a Folha mostrou a sua cara e acabou dando um tiro no pé. Choveram cartas para o ombudsman do jornal – que se limitou a escrever, quase clandestino, que a resposta pecara por falta de “cordialidade”. Um manifesto de repúdio ao jornal e de solidariedade, organizado pelo professor Caio Navarro de Toledo, da Unicamp – com a primeira adesão de Antonio Candido, Margarida Genevois e Goffredo da Silva Telles – passa imediatamente a circular na internet e, apesar do carnaval, conta com mais de 3 mil assinaturas. Neste, depoimentos veementes de acadêmicos, jornalistas (inclusive nota do sindicato paulista), artistas, estudantes, professores do ensino fundamental e médio, além de blogs. Vítimas da repressão escrevem relatos de suas experiências e até enviam fotos terríveis. A maioria lembra, também, o papel da empresa Folha da Manhã na colaboração com a famigerada Oban.

O que explica essa inacreditável estupidez da Folha?

A meu ver, três pontos devem ser levantados: 1. A combativa atuação do advogado Comparato para impedir que os torturadores permaneçam “anistiados” (atenção: o caso será julgado em breve no STF!). 2. O insidioso revisionismo histórico, com certos acadêmicos, políticos e jornalistas, a quem não interessa a campanha pelo “Direito à Memória e à Verdade”. 3. A possível derrota eleitoral do esquema PSDB-DEM, em 2010. (Um quarto ponto fica para “divã de analista”: os termos da nota – não assinada – revelam raiva e rancor, extrapolando a mais elementar ética jornalística.)

Dessa experiência, para mim inédita, ficou uma reflexão dolorosa, provocada pela jornalista Elaine Tavares, do blog cearense Bodega Cultural, que reclama: “Sempre me causou espécie ver a intelectualidade de esquerda render-se ao feitiço da Folha, que insistia em dizer que era o ‘mais democrático’ ou que ‘pelo menos abria um espaço para a diferença’. Ora, o jornal dos Frias pode ser comparado à velha historinha do lobo que estudou na França e voltou querendo ser amigo das ovelhas. Tanto insistiu que elas foram visitá-lo. Então, já dentro da casa do lobo ele as comeu. Uma delas, moribunda, lamentou: ‘Mas você disse que tinha mudado’... E ele, sincero: ‘Eu mudei, mas não há como mudar os hábitos alimentares’. E assim é com a Folha (...). São os hábitos alimentares”.

O que fazer? Muito. Há a imprensa independente, como esta CartaCapital. Há a internet. Há todo um movimento pela democratização da informação e da comunicação. Há a luta – que sabemos constante – pela justiça, pela verdade, pela república, pela democracia. Onde quer que estejamos.

*Maria Victoria Benevides é socióloga com especialização em Ciências Políticas e professora titular da Faculdade de Educação da USP

Fonte: Revista Carta Capital
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Mino Carta

Há muitos anos, um ilustre jornalista usou de suavidade ao falar da ditadura nativa. Comparou-a com as outras do Cone Sul e decidiu ter sido bem menos feroz por ter matado um número menor de desafetos. À época, não houve reações. Talvez o profissional em questão tenha menos leitores do que imagina e do que imagina quem lhe dá guarida.

Que lições tirar do confronto? Na Argentina, um quinto da população brasileira, morreram 30 mil pelas mãos dos ditadores. No Chile, atualmente 16 milhões de habitantes, morreram cerca de 10 mil. No Uruguai, que não chega a 4 milhões de habitantes, 3 mil. No Brasil, algo mais que 400. Como disse o juiz de um filme sobre o processo de algozes nazistas, o assassínio de um único cidadão por agentes do Estado já configura ofensa imperdoável à humanidade.

Certo gênero de comparação serve apenas a solertes revisionistas. Não cabem dúvidas de que, caso a ditadura verde-amarela julgasse necessário, torturaria e mataria muito mais. Entendeu não ser preciso. Vale, de todo modo, concentrar a análise sobre o Brasil. Assim me parece, a partir das reações a um editorial da Folha de S.Paulo que expõe a peculiar ideia da “ditabranda”, e da agressão cometida pelo jornal contra dois leitores indignados do porte de Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato.

Permito-me começar de longe, pela origem da perene desgraça nacional, a escravidão. Seus efeitos perduram implacavelmente. Em primeiro lugar, na pavorosa, hedionda desigualdade social, que, segundo o Banco Mundial, nos coloca no mesmo nível de Nigéria e Serra Leoa em termos de distribuição de renda. Não observo nada de novo, mas faço questão de sublinhar.

Temos uma minoria exígua de privilegiados e fatia, de fronteiras mais ou menos imprecisas, de aspirantes ao privilégio. O resto vive no limbo. Milhões e milhões ali não têm sequer consciência da cidadania. Se algum progresso houve, foi irrisório. E não apagou a ignorância, o alheamento, a passividade, a resignação da maioria.

A escravidão representou o mais autêntico estágio da educação cultural do País. No povão deixou as marcas do chicote. À minoria ensinou prepotência, ganância, desmando. Impunidade. Arrogância. O deixa-como-está-para-ver-como-fica. A leniência com os pares (aos amigos tudo) e o rigor feroz com a malta infecta (aos inimigos a lei). Etc. etc.

O jornalismo brasileiro, desde os começos, serve a este poder nascido na casa-grande, por ter a mesma, exata origem. A mídia nativa é rosto explícito do poder. As conveniências deste e daquela entrelaçam-se indissoluvelmente porque coincidem à perfeição.

Observem. Basta que no horizonte se delineiem tímidas nuvens remotamente ameaçadoras à tranquilidade da minoria e os barões midiáticos formam a mais compacta das alianças para sustar o perigo. Exemplo clássico, embora não faltem outros aos magotes, é a campanha desencadeada depois da renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, destinada a desaguar no golpe de 64.

Por mais de dois anos, os editoriais dos jornalões invocaram a intervenção militar contra a subversão em marcha, até que o golpe se deu sem que única, escassa gota de sangue respingasse na calçada. Assim como faltou ao Brasil uma guerra de independência, carecemos de uma autêntica revolução popular. O golpe de 64 aconteceu e o povo brasileiro não saiu do limbo, de alguma forma nem se deu conta do evento. O qual só teve significado para quem, com o incentivo dos jornalões, organizava as Marchas da Família com Deus pela Liberdade.

Liberdade? A de confirmar e garantir o status quo que favorecia e favorece os eternos marchadores. Não era, digamos, a liberdade da Revolução Francesa, aquela que no Brasil não se deu (de igualdade nem sonhar). Não há dúvidas de que, em uma mesma época, podem conviver tempos históricos diferentes. Aqui, de inúmeros pontos de vista, ainda vigora a Idade Média.

Com o apoio, às vezes frenético, da mídia. A qual cuidou, in illo tempore, de sustentar a ditadura, mesmo depois do golpe dentro do golpe, perpetrado a 13 de dezembro de 1968, com o Ato Institucional nº 5. Dos jornalões, a partir de então, só o Estadão foi censurado, com regalias, no entanto, que outros não tiveram. Podia preencher os espaços cortados pelas tesouras censoriais com versos de Camões e receitas de bolo.

No caso, tratava-se de uma briga em família. O jornal da família Mesquita fora entre todos aquele mais empenhado em solicitar a intervenção militar e já tinha candidato para as eleições que se seguiriam ao fim de uma ditadura de prazo marcado para terminar a limpeza da casa: Carlos Lacerda, o governador de metralhadora em punho.

O resto da turma desta vez discordava, tinha diferente visão do futuro e dos próprios interesses da minoria. Lacerda foi cassado e o Estadão censurado. Tudo acabou em algo mais que presente. Um prêmio: o fim da censura no centésimo aniversário do jornalão, 4 de janeiro de 1975, celebrada com muita pompa e infinda circunstância.

Hoje o Estadão pretende para si o papel de vanguarda da resistência à ditadura, não registro, porém, a súbita convocação de assinaturas para um manifesto contra uma inverdade que não deixa de ser também bobagem curtida em mania de grandeza. Permito-me também chamar a atenção que até um ano atrás os jornalões cuidavam de evitar a palavra ditadura, sapecavam implacavelmente revolução em seu lugar. Ninguém protestou.

Agora a Folha de S.Paulo ofende consciências ao criar um novo vocábulo: ditabranda. Poderia dizer ditamole, soaria melhor aos meus ouvidos. Não sei quais foram os argumentos do editorial, que não li a bem do meu fígado. Talvez sejam os mesmos do remoto jornalista que comparava os números das vítimas das ditaduras do Cone Sul. Como se quem mata 400 não fosse capaz de matar 30 mil.

A Folha esteve com a ditadura, com breve exceção, de 74 a 77, quando, dirigida por Claudio Abramo, manteve digna independência. Mesmo assim, no mesmo período, a empresa de Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira não deixou de publicar diariamente um órgão policial chamado Folha da Tarde, bem como estabeleceu notórias ligações com o DOI-Codi de infame memória, aquele onde foram assassinados Vlado Herzog e Manuel Fiel Filho.

Claudio Abramo pagou por sua ousadia enquanto Frias e Caldeira apostavam na candidatura do general Silvio Frota para ditador da vez, ao terminar a temporada de Ernesto Geisel. Uma crônica de Lourenço Diaféria sobre a espada oxidada do monumento do Duque de Caxias foi o estopim de pressões do Ministério do Exército, exercidas diretamente pelo general Hugo Abreu, cabo eleitoral de Frota. Abramo, e o chefe da sucursal carioca, Alberto Dines, foram afastados dia 17 de setembro de 1977. Precipitadamente. Vinte e cinco dias depois, Geisel demitiria Frota.

O conjunto da obra não é edificante, mas seria injusto sentenciá-lo como pior do que o do resto da chamada grande imprensa. E haveria de ser de outra maneira? A mídia não alcança a ampla maioria dos brasileiros, a não ser por meio de novelas e domingões, e cuida de vender à minoria as conveniências do poder, lá pelas tantas personificado pela ditadura e hoje por uma democracia oligárquica, como define sabiamente Fábio Konder Comparato.

Cria-se o círculo vicioso, e uma mão lava a outra. A política brasileira precisa desta nossa mídia e a premia de todas as formas. E nada muda, quando não avança de marcha à ré. Como diria Raymundo Faoro, o Brasil é um país com as potencialidades de Hércules reduzido à condição de Quasímodo pelo esforço irresponsável, mas consciente, da elite nativa.

O que a mim surpreende e acabrunha não é um editorial da Folha. Aos meus ouvidos soa normal, corriqueiro, natural. Não difere, na essência, de outros editoriais dos jornalões. Quem sabe, seja mais sincero, ou menos hipócrita.

Entendo a repulsa causada em muitos leitores. De modo geral, entretanto, o que me dói é a falta de indignação diante do espetáculo diariamente encenado pela nossa mídia, recheado por preconceitos e mentiras, omissões e equívocos. Sem contar o distanciamento da contemporaneidade do mundo e a lida precária com o vernáculo.

Que aspirantes ao jornalismo busquem emprego onde podem encontrá-lo e tratem de conservá-lo quando o conseguem, isto eu entendo e justifico. Já não logro desculpar o sabujismo desbragado de profissionais experientes, sua capacidade de se converter aos ideais do patrão. E o que mais me indigna é tropeçar tão frequentemente nas páginas dos jornalões nas assinaturas de intelectuais consagrados, muitos deles a alegarem um esquerdismo de boca. Pois é, a leniência é um traço comum na minoria, exercida antes de mais nada em causa própria.

Ao cabo, pergunto aos meus perplexos botões: qual é a diferença entre ditabranda e democracia sem povo?

*Este artigo será reproduzido também na edição 536 de CartaCapital

Fonte: Revista CartaCapital
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  • Pleno da OAB aprova manifesto de solidariedade a Fábio Konder Comparato

O Conselho Federal da OAB aprovou ontem, 9/3, por unanimidade, manifesto público de solidariedade ao jurista e medalha Ruy Barbosa da OAB, Fábio Konder Comparato, que foi alvo de violenta reação do jornal Folha de S. Paulo por ter se manifestado contrariamente a editorial do mesmo jornal, publicado no último dia 17 de fevereiro. No editorial, o jornal afirma que o Brasil não teria vivido uma ditadura, mas uma "ditabranda" entre 1964 e 1985.

Na sessão plenária da OAB, da qual participam os 81 conselheiros federais da entidade, em Brasília, o Conselho destacou a grande contribuição à sociedade e à história do Brasil dada por Fábio Konder Comparato e reafirmou as virtudes e características que levaram o jurista a ser agraciado com a Medalha Ruy Barbosa - comenda máxima oferecida pela OAB.

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  • Matéria– Folha de S.Paulo, 8 de março de 2009

Manifestação contra Folha reúne 300 pessoas em frente ao jornal

Militantes fazem desagravo a professores, que não comparecem a evento

Cerca de 300 pessoas participaram ontem pela manhã de manifestação contra a Folha em frente à sede do jornal, na região central de São Paulo.

O ato público tinha o duplo objetivo de protestar contra editorial publicado pelo jornal no dia 17 de fevereiro, que usou a expressão "ditabranda" para caracterizar o regime militar brasileiro (1964-1985), e prestar solidariedade aos professores Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato. Nenhum dos dois estava presente.

A Folha publicou no "Painel do Leitor" 21 cartas sobre o assunto, 18 delas críticas aos termos do editorial, entre as quais as assinadas por Benevides e Comparato. Segundo escreveu este último, o autor do editorial e o diretor de Redação que o aprovou "deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro".

Em resposta, o jornal classificou a indignação dos professores de "cínica e mentirosa", argumentando que, sendo figuras públicas, não manifestavam o mesmo repúdio a ditaduras de esquerda, como a cubana.

Desde então, além de cartas, o jornal vem publicando artigos a respeito da polêmica, alguns dos quais com críticas ou reparos à própria Folha.

O protesto de ontem foi organizado pelo Movimento dos Sem-Mídia, idealizado pelo blogueiro Eduardo Guimarães. O público era composto na sua maioria por familiares de vítimas da ditadura, estudantes e sindicalistas ligados à CUT.

Abaixo-assinado

Um abaixo-assinado de repúdio ao editorial da Folha e solidariedade a Benevides e Comparato circulou pela internet nas últimas semanas. Entre seus signatários estão o arquiteto Oscar Niemeyer, o compositor e escritor Chico Buarque, o crítico literário Antonio Candido e o jurista Goffredo da Silva Telles Jr.

Niemeyer disse que "o convite para assinar veio de um amigo muito querido, que foi preso e torturado. Fiquei muito chateado, porque gosto do pessoal da Folha. Fiquei constrangido, mas não podia dizer que não". O arquiteto disse não ter lido o editorial. Na sua versão eletrônica, o abaixo-assinado contava com mais de 7.000 adesões, cuja autenticidade, porém, não há como comprovar.

Segue a íntegra do texto:

"Ante a viva lembrança da dura e permanente violência desencadeada pelo regime militar de 1964, os abaixo-assinados manifestam seu mais firme e veemente repúdio à arbitrária e inverídica revisão histórica contida no editorial da Folha de S.Paulo do dia 17 de fevereiro de 2009.

Ao denominar ditabranda o regime político vigente no Brasil de 1964 a 1985, a direção editorial do jornal insulta e avilta a memória dos muitos brasileiros e brasileiras que lutaram pela redemocratização do país. Perseguições, prisões iníquas, torturas, assassinatos, suicídios forjados e execuções sumárias foram crimes corriqueiramente praticados pela ditadura militar no período mais longo e sombrio da história política brasileira. O estelionato semântico manifesto pelo neologismo ditabranda é, a rigor, uma fraudulenta revisão histórica forjada por uma minoria que se beneficiou da suspensão das liberdades e direitos democráticos no pós-1964.

Repudiamos, de forma igualmente firme e contundente, a Nota da Redação, publicada pelo jornal em 20 de fevereiro em resposta às cartas enviadas ao "Painel do Leitor" pelos professores Maria Victoria de Mesquita Benevides e Fábio Konder Comparato. Sem razões ou argumentos, a Folha de S.Paulo perpetrou ataques ignominiosos, arbitrários e irresponsáveis à atuação desses dois combativos acadêmicos e intelectuais brasileiros. Assim, vimos manifestar-lhes nosso irrestrito apoio e solidariedade ante as insólitas críticas pessoais e políticas contidas na infamante nota da direção editorial do jornal.

Pela luta pertinaz e consequente em defesa dos direitos humanos, Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato merecem o reconhecimento e o respeito de todo o povo brasileiro."

Fonte: Folha de S.Paulo

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  • Folha de S.Paulo, 8 de março de 2009

Folha avalia que errou, mas reitera críticas

O diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho, divulgou ontem as seguintes declarações:

"O uso da expressão "ditabranda" em editorial de 17 de fevereiro passado foi um erro. O termo tem uma conotação leviana que não se presta à gravidade do assunto. Todas as ditaduras são igualmente abomináveis.

Do ponto de vista histórico, porém, é um fato que a ditadura militar brasileira, com toda a sua truculência, foi menos repressiva que as congêneres argentina, uruguaia e chilena -ou que a ditadura cubana, de esquerda.

A nota publicada juntamente com as mensagens dos professores Comparato e Benevides na edição de 20 de fevereiro reagiu com rispidez a uma imprecação ríspida: que os responsáveis pelo editorial fossem forçados, "de joelhos", a uma autocrítica em praça pública.

Para se arvorar em tutores do comportamento democrático alheio, falta a esses democratas de fachada mostrar que repudiam, com o mesmo furor inquisitorial, os métodos das ditaduras de esquerda com as quais simpatizam."

Otavio Frias Filho

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  • Folha de S.Paulo, 14 de março de 2009

Professores pedem direito de resposta no caso ditabranda

Por meio de seus advogados, os professores Fábio Comparato e Maria Victoria Benevides requerem a publicação das considerações abaixo a título de "direito de resposta" a declarações do diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho, publicadas em 8 de março:

"Levar mais de duas semanas para reconhecer um desatino editorial (a classificação do regime militar brasileiro como "ditabranda'), imputando a responsabilidade pelo episódio ao teor de nossas críticas, não parece um comportamento compatível com a ética do jornalismo. Sempre sustentamos, sem precisar receber lições de ninguém, que as vítimas de regimes arbitrários, aqui e alhures, merecem igual proteção e respeito, sem desvios ideológicos ou idiossincrasias pessoais."

Nota da Redação: O tratamento dado pela Folha ao uso da palavra "ditabranda" em editorial de 17 de fevereiro, com a publicação de diversas críticas e o reconhecimento da impropriedade do termo, é um exemplo de transparência editorial. Imaginava-se encerrado o episódio, mas os professores Comparato e Benevides estão empenhados em extrair dele o máximo rendimento possível. As opiniões de ambos sempre foram transmitidas pelo jornal, por meio de numerosos artigos, sem a necessidade de advogados. A "resposta" acima é publicada com base na Lei 5.250/67, editada pela ditadura militar, a fim de que vítimas de regimes cautelosamente chamados de "arbitrários" e vagamente situados "alhures" também se sintam destinatários dessa solidariedade envergonhada.

Fonte: Folha de S.Paulo

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