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STF: Gilmar cita conto de Monteiro Lobato ao criticar alterações irrefletidas na CF

Analogia do ministro revelou preocupação com possíveis excessos do STF na interpretação de regras constitucionais.

5/6/2024

Questionar a razão para mudar uma norma é crucial, especialmente quando envolve vontade expressa pelo constituinte. Essa reflexão foi proposta pelo ministro Gilmar Mendesdurante sessão do STF, nesta quarta-feira, 5, ao fazer analogia com o conto "O Reformador do Mundo", de Monteiro Lobato.

A ponderação ocorreu durante julgamento de ação que questionava a chefia do Legislativo e do Executivo por parentes na mesma unidade federativa, ao mesmo tempo. Ao votar com a relatora, ministra Cármen Lúcia, o decano da Corte afirmou que o legislador quis manter a possibilidade de parentesco entre chefes de Poderes nas hipóteses não excepcionadas pelo art. 14, §7º da CF.

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O dispositivo prevê a inelegibilidade para o cônjuge e parentes, no mesmo território de jurisdição do titular do cargo do Executivo, salvo se já titulares de mandatos eletivos e candidatos à reeleição.

O ministro destacou que ampliar a restrição de acesso aos cargos pode criar um "casuísmo" em nome do republicanismo. Assim, sugeriu que a questão poderia ser encaminhada ao Congresso Nacional para eventual alteração, mas que o STF não deve usurpar a competência legislativa e ampliar o sentido da norma constitucional.

Questionar para mudar

S. Exa. afirmou "desconfiar" de mudanças irrefletidas, citando o conto de Monteiro Lobato no qual o personagem Américo Pisca-pisca se incomoda com a disposição das jabuticabas e abóboras. Para o personagem, a abóbora deveria ficar em uma planta alta e as jabuticabas deveriam ficar em uma planta rasteira.

Já cansado das "reformas" que vinha fazendo na natureza, Américo se deita sob a jabuticabeira e sente um fruto caindo em seu nariz. Nesse momento reconhece que "talvez a natureza não esteja tão errada".

Gilmar Mendes concluiu que o conceito do conto é o mesmo da "cerca de Chesterton", do escritor e filósofo inglês G.K. Chesterton.  O pensador usou a metáfora de uma cerca para ilustrar um princípio conservador: antes de remover, ou mudar, uma estrutura ou prática existente (a cerca), deve-se entender completamente a razão pela qual ela foi estabelecida. 

Veja o momento:

O Reformador da Natureza

Monteiro Lobato

Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de criticar tudo ao seu redor. Para ele, o mundo estava errado e a natureza só cometia erros.

— Asneira, Américo?

— Pois então? Aqui mesmo, neste pomar, você pode ver a prova disso. Veja aquela jabuticabeira enorme, sustentando frutas minúsculas, e ali adiante está uma colossal abóbora, presa ao caule de uma planta rasteira. Não seria lógico que fosse o contrário? Se as coisas tivessem que ser reorganizadas por mim, eu trocaria as posições, colocando as jabuticabeiras nas aboboreiras e as abóboras nas jabuticabeiras. Não tenho razão?

Com essa linha de raciocínio, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de reorganizar o mundo de forma inteligente.

— Mas o melhor, concluiu, é não pensar nisso e tirar uma soneca à sombra dessas árvores, não acha?

Pisca-Pisca, piscando incessantemente, deitou-se de barriga para cima à sombra da jabuticabeira. Ele dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com um mundo novo, totalmente reformado por suas mãos. Uma maravilha!

De repente, no meio do sonho, plaft! Uma jabuticaba caiu do galho e acertou em cheio o seu nariz. Américo despertou num pulo. Pisca-Pisca meditou sobre o ocorrido e reconheceu, afinal, que o mundo não era tão malfeito assim. E seguiu para casa refletindo:

— Que espida! Pois não é que, se o mundo fosse arrumado por mim, a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-Pisca, morto por uma abóbora que eu mesmo teria colocado no lugar da jabuticaba? Hum! Deixemos as coisas como estão, pois assim está tudo muito bem.

E Pisca-Pisca continuou a piscar pela vida afora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza.

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