O juiz de Direito Rudson Marcos, de Florianópolis/SC, está movendo mais de 200 processos por danos morais contra pessoas e veículos de comunicação que utilizaram a hashtag #estuproculposo, ou que citaram a expressão em referência ao caso Mariana Ferrer, que foi conduzido por ele em 1ª instância.
A maioria das ações tramita em Juizados Especiais e estão em segredo de justiça.
Entre os alvos das ações estariam inúmeros artistas conhecidos, como Anitta, Ana Hickmann, Marcos Mion e Ivete Sangalo.
Para tentar entender melhor essas ações, Migalhas conversou com a advogada do magistrado, Iolanda Garay. A defesa afirma que a ele foi atribuída a expressão “estupro culposo” em uma divulgação massiva de notícia preponderantemente manipulada.
“Em nenhum momento o doutor se sentiu ofendido pelo uso da hashtag por si só, mas sim pelo contexto em torno da hashtag expressa.”
Assista:
A seleção de publicações que teriam ofendido a honra do juiz foi feita por ele próprio, assim como a definição dos valores pleiteados.
Algumas publicações não teriam sequer mencionado o nome do magistrado. A advogada explica que "a figura da ofensa a honra existe de forma objetiva e subjetiva", e em alguns casos o juiz entendeu que a publicação seria direcionada a ele, ainda que não mencionasse seu nome diretamente.
Segundo a advogada que representa os interesses do juiz, as ações têm reparação simbólica e, por isso, tramitam nos JECs.
Iolanda Garay também informou que o caso é emblemático, e já há propostas para que seja retratado em uma série.
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Origem da confusão
O termo "estupro culposo" não foi dito pelo magistrado. Pelo que se nota, foi uma licença jornalística para criticar a decisão.
Aliás, no exato dia que surgiu a reportagem da audiência, feita pelo The Intercept, em novembro de 2020, Migalhas explicou que havia uma confusão com o uso do termo.
E de onde saiu essa ideia de “estupro culposo”?, pergunta a leitora.
Curiosamente, a resposta pode estar na própria decisão do magistrado.
Com efeito, na sentença criminal absolutória, ele cita uma doutrina que explica que “não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável” (MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado, vol. 3: parte especial, arts. 213 ao 359-H. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2017, p. 72-73).
A menção se deu para o magistrado entabular o raciocínio segundo o qual, para a configuração do tipo penal do estupro de vulnerável (art. 217-A, §1º, CP) “é necessário que a vítima, por qualquer motivo, não tenha condições físicas ou psicológicas de oferecer resistência à investida do agente criminoso, bem como haja dolo na conduta do agressor e ciência da vulnerabilidade que acomete a vítima”.
Assim, para o juiz, o acusado só poderia “ser condenado pela prática do crime em análise se restasse comprovado que naquela ocasião Mariana Borges Ferreira não tinha o necessário discernimento para a prática do ato sexual, em razão da vulnerabilidade decorrente da ingestão de substância ilícita/desconhecida ou mesmo de embriaguez”.
E, segundo o julgador, "a ausência de consentimento por parte da vítima, decorrente da impossibilidade de oferecer resistência (pela ingestão de substância ou embriaguez), não ficou demonstrada".
Melhor explicando, não há, pela decisão, dúvida quanto a ter havido a relação sexual. O imbróglio se dá quanto ao consentimento. A vítima diz que não foi uma relação consentida, porque ela não estava em condições de consentir (vulnerabilidade). Mas, para o magistrado, a vulnerabilidade não foi provada.
É um caso dificílimo, mas a dificuldade não livra o magistrado de ser criticado. E as críticas, em situações assim, nem sempre são técnicas ou precisas, pois isso é coisa para operadores do Direito. Os leigos reclamam apenas porque o deslinde da história não é como imaginavam, confundindo os termos aqui e ali.
Jornalista condenada
Em setembro do ano passado, a jornalista Schirlei Alves, responsável por reportagens veiculadas no site Intercept Brasil sobre o caso da influenciadora Mariana Ferrer, foi condenada à prisão. A decisão impôs seis meses de detenção em regime aberto à jornalista, além do pagamento de R$ 400 mil em indenizações.
A decisão foi proferida pela juíza de Direito Andrea Cristina Rodrigues Studer, da 5ª vara Criminal de Florianópolis/SC, em queixa-crime movida pelo juiz contra a jornalista. A magistrada considerou que a jornalista cometeu crime de difamação contra funcionário público, considerando suas funções, ao facilitar a divulgação do crime.
A reportagem assinada por Schirlei revelava a gravação da audiência de instrução do caso. O texto mencionava a tese da promotoria como "estupro culposo", motivo pelo qual foi configurado no processo o crime de difamação. A juíza enfatizou que as repercussões do caso foram nefastas.
Segredo de Justiça
Não é possível consultar os processos cíveis impetrados pelo magistrado, porque estão sob segredo de Justiça. O que justifica o segredo é que para acionar judicialmente as pessoas que usaram o termo “estupro culposo” ele inclui a sentença criminal que proferiu no caso. Ou seja, ele próprio quebra o sigilo, mostrando que não usou a polêmica expressão na decisão.
Quanto a este ponto, qual seja, a possibilidade de utilizar (ele como parte) a sentença que proferiu (ele como juiz) num caso sigiloso para um processo pessoal, é algo que merece ser debatido.
Litigância excessiva
São, como dito, 200 ações judiciais. Isso não seria um caso de abuso do acesso à Justiça?
Nota-se, ainda, que o demandante optou por entrar na maioria dos casos no Juizado Especial, onde não há o ônus de sucumbência, e são apenas os colegas catarinenses que julgam a causa.
Indeniza, mas não mata
Já houve até mesmo uma primeira decisão, confirmada pela turma recursal, na qual um chargista (!) foi condenado a pagar R$ 30.000,00 ao excelentíssimo.
Se as outras causas seguirem a mesma toada, estamos diante da possibilidade de o doutor abocanhar a pequena bagatela de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais), a título de "reparação simbólica".
Audiência do terror
A discussão toda em torno de uma bobagem quanto ao uso do termo “estupro culposo” não pode obnubilar o principal do caso, que foi a audiência presidida – a propósito, mal presidida – pelo magistrado.
O advogado do acusado confrontou a vítima sob olhar pusilânime de juiz e promotor. Este que depois iria pedir absolvição do réu, e aquele que iria absolvê-lo.
Na época, o ministro Gilmar Mendes chegou a comentar que as cenas da audiência eram estarrecedoras: "O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação."
As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram.
— Gilmar Mendes (@gilmarmendes) November 3, 2020
“Cultura do estupro”
O caso traz à tona, aí sim uma expressão verdadeira, a "cultura do estupro". O termo, ainda pouco utilizado no meio jurídico, mas constante no ativismo feminista, refere-se ao conjunto de comportamentos que toleram o estupro praticado contra mulheres na sociedade.
De fato, a "cultura do estupro" é um termo usado para descrever um ambiente social que tolera, normaliza ou até mesmo glorifica a violência sexual. Ela se manifesta de diversas formas, incluindo:
- Normalização da Violência Sexual: Atitudes que tratam o estupro e outras formas de violência sexual como algo comum ou inevitável, ao invés de crimes graves.
- Vitimização da Vítima: Tendência de culpar as vítimas de violência sexual por sua própria vitimização, por exemplo, questionando sua roupa, comportamento ou escolhas.
- Objetivação e Desumanização: Tratar pessoas, especialmente mulheres, como objetos sexuais, e não como seres humanos com direitos e dignidade.
- Mitos sobre Estupro: Crenças falsas sobre estupro, como a ideia de que estupradores são sempre estranhos perigosos, ou que as vítimas de estupro sempre resistem fisicamente.
- Falta de Responsabilização dos Agressores: Falha em levar a sério as acusações de violência sexual e em responsabilizar adequadamente os perpetradores.
A cultura do estupro contribui para a prevalência da violência sexual na sociedade e cria um ambiente em que as vítimas muitas vezes sentem medo ou vergonha de falar e buscar justiça.
O combate a esta cultura envolve mudanças em atitudes sociais, educação sobre consentimento e respeito, e, sobretudo, um sistema de justiça mais eficaz e sensível às questões de violência sexual.
Qualquer semelhança é mera coincidência.