O juízo 100% digital vs a corte Mc Donald's
Uma análise crítica sobre o aumento das decisões jurisdicionais decorrentes da utilização da jurimetria.
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Atualizado em 11 de abril de 2025 14:00
O contexto pandêmico impulsionou o marco histórico de virada tecnológica da Justiça brasileira.1 O CNJ, através da resolução 345, de 9 de outubro,2 autorizou a adoção, pelos tribunais, das medidas necessárias à implementação do juízo 100% digital, que é definido como "a possibilidade de o cidadão valer-se da tecnologia para ter acesso à Justiça, sem precisar comparecer fisicamente nos Fóruns, uma vez que, no Juízo 100% Digital, todos os atos processuais serão praticados exclusivamente por meio eletrônico e remoto, pela Internet. Isso vale, também, para as audiências e sessões de julgamento, que vão ocorrer exclusivamente por videoconferência" (CNJ, 2020a).
Em se tratando da jurimetria construída a partir dessas informações, é possível utilizar o mecanismo de gestão de diversas maneiras a depender do objetivo fim. A título de exemplo é possível avaliar administração judiciária, por meio da instrumentalização dos juízes, na administração de seus tribunais; dos legisladores, na avaliação dos conflitos gerados a partir da elaboração de uma lei; dos cidadãos e as organizações que utilizam o Judiciário, como forma de reduzir a incerteza jurídica.3
Estudos como os realizados por Santos4(2005) abordam a relação existente entre os tribunais e as novas tecnologias de comunicação e de informação. Amplamente disseminadas, encontram-se as temáticas relacionadas à utilização da inteligência artificial pelo Poder Judiciário (cita-se como exemplo, o recente relatório da pesquisa tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, produzido pelo CIAPJ/FGV - Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (2020)5.
As vantagens defendidas pelo juízo 100% digital no âmbito do Judiciário, referem-se à promoção da celeridade e o aumento da eficiência na resposta da Justiça ao jurisdicionado, avaliada através de critérios próprios de produtividade por meio do aprimoramento de técnicas de gestão no Judiciário como o balcão virtual, plataforma digital do Poder Judiciário e o Programa Justiça 4.0. Em contraponto, o Relatório da Justiça em Números aponta que o número de processos que ingressaram na Justiça pela via eletrônica aumentou de 32.883.738 em 2022 para 37.046.875 no ano de 2023. São 17.730.578 casos novos contados até junho do último ano.6
Gráfico 1 - Quantidade de casos novos no Judiciário por ano (até junho de 2024)
Fonte: CNJ. Relatório Justiça em Números 2023
Apesar da alta produtividade dos juízes e o intuito do CNJ de aliar a "inteligência para servir ao direito"7, essa conta não fecha. O retrato que os indicadores de IA delineiam é de um Judiciário lento, caro e congestionado. O estudo realizado no ano passado também pelo CNJ sobre os 20 maiores litigantes evidencia de forma ainda mais clara o problema da eficiência no sistema Judiciário, especialmente quando se analisa a relação custo-benefício para a sociedade. Considerando o elevado custo da máquina judiciária e o perfil dos grandes litigantes, fica evidente que esse serviço é oneroso e, em grande parte, atende predominantemente aos interesses do próprio Estado, do mercado financeiro e de outras organizações privadas.8
Mesmo que o big data judicial viabilize a observação do sistema de justiça pela dimensão dos dados, o que torna possível processar, ler e analisar os milhões de dados, textos e documentos em curto tempo por computadores de alta capacidade e por sistemas de IA, aparentemente, não produzem efeito no tempo dos processos ou na administração da Justiça ou na transparência das atividades do Judiciário vez que o aparato do sistema digital é utilizado apenas para acompanhamento processual.9
Em outras palavras, o primeiro ponto é que o Poder Judiciário brasileiro ainda limita o privilégio do acesso individual ao processo por advogados, partes, magistrados ou pesquisadores. Os dados utilizados pela IA têm performance instrumental, via gerenciamento do fluxo de casos, com foco em resultados quantitativos, estatísticas de recorribilidade com a insuficiência de ler apenas alguns desses indicadores por unidade judicial e para cada juiz, como o volume de casos novos, pendentes e baixados, e os índices que derivam desses dados, como a taxa de congestionamento e o índice de atendimento à demanda.10
Isto posto, pontua-se o aspecto mais relevante: as dimensões da avaliação de desempenho utilizadas se restringem à celeridade, eficiência econômica e técnica caracterizada pela produtividade. Nesse sentido, ainda que os dados disponíveis hoje, sejam melhores que os existentes há uma década, em termos de qualidade das decisões jurisdicionais, a mensuração dos dados é escassa, estando ainda distantes da avaliação da efetividade das decisões jurisdicionais.
Esbarramos, ainda, na amplitude do conceito de desempenho judicial como parâmetro da efetividade jurisdicional. Há diversos estudos envolvendo diferentes dimensões e níveis de análise, mas que pouco se comunicam.11 A eficiência é a dimensão mais comum de análise utilizada para avaliar o desempenho, com maior foco no gerenciamento dos processos internos do que nos recursos disponíveis. No que se refere ao nível de análise, o que predomina é o organizacional, com foco no desempenho de tribunais, seguido do individual, com dados referentes aos juízes.
O cenário apresentado corroborou para um aumento considerável do número de decisões judiciais, sob o véu da celeridade processual e razoável duração do processo, em que resultou no conflito entre a eficiência na gestão do judiciário com a efetividade da decisão jurisdicional. Sob tal premissa, foi autorizado pela resolução 389/21 a criação do Núcleo da Justiça 4.0 a fim de "garantir julgamentos céleres em relação a grandes litigantes."12 De 394 processos distribuídos no período de julho de 2022 a setembro de 2023 para o núcleo, 272 foram remetidos para a segunda instância, tendo sido julgados no tempo médio de 46,39 dias.
A decisão em tempo hábil é princípio basilar de todo ordenamento jurídico e está presente nos princípios constitucionais da celeridade e razoável duração do processo.13 Princípios estes que são molas propulsoras do devido processo legal, mas que por si só não são capazes de medir a qualidade da jurisdição.
Com a automatização em que as decisões são mapeadas, catalogadas e inseridas em bloco nos portais eletrônicos é possível aferir qualidade jurisdicional ou estamos enfrentando a era de um novo tipo de magistrado chamado de juiz-empreendedor. Este, por sua vez, tem como interesse fundamental a gestão dos tribunais e, ao fim e ao cabo, o cumprimento de metas quantitativas impostas pelo CNJ, em vez de se atentar à atividade para a qual foi selecionado e treinado, qual seja, a prestação jurisdicional.14"Decidir muito não é decidir bem."15
Dando importância a efetividade jurisdicional, para além dos números, o recente estudo sobre a produção de indicadores da Justiça, aponta que não somente é preciso melhorar a produção de dados sobre o Judiciário, mas é também fundamental que haja debate e troca entre as instituições do sistema de Justiça, a academia e os institutos de pesquisa a respeito do uso dos dados, seu alcance e sua limitação.16 A produção de dados segue o modelo clássico de avaliação de desempenho, reportando os insumos: número de magistrados; número de servidores; recursos financeiros, humanos, infraestrutura; quantidade e complexidade de procedimentos administrativos; perfil dos magistrados e uso de tecnologia.17
Medir a eficiência dos tribunais pelo inevitável uso das novas tecnologias pelo Judiciário pautado apenas em dados quantitativos se transfigura a uma Corte McDonald's. "Um Tribunal que produz muito rápido, e se orgulha disso. A qualidade do sanduíche, sabemos, não é boa, e, tomado como cotidiano, faz mal."18 Não há espaço para um fast justice. "Construir uma decisão não é como fazer fast food, mandar um torpedo ou um WhatsApp ou um e-mail."19
Essa mudança tende a priorizar a eficiência numérica na gestão dos processos no Poder Judiciário, resultando na tendência de que petições genéricas sejam tratadas como casos genéricos. Assim, implica aos operadores do direito que desejam que suas questões sejam devidamente analisadas pelo Judiciário apresentarem, por meio de argumentos jurídicos técnicos distintos.
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1 Pandemia impulsionou a transformação digital no Judiciário, diz Dias Toffoli. Brasília, 12 ago. 2020.
2 CNJ. Resolução nº 345, de 09 de outubro de 2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3512. Acesso em 22 set 2024.
3 Cunha, Luciana Gross. Rule of Law and Development: The Discourses on Institutional Reforms in the Justice System. DIREITO GV: Working Papers, n. 21, jun. 2008. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2835 Acesso em: 19 abril 2024.
4 Santos, Boaventura de Sousa. Os tribunais e as novas tecnologias de informação e comunicação. Sociologias. Porto Alegre, ano 7, nº 13, jan/jun, p. 82-109. 2005.
5 Salomão, Luis Felipe. Inteligência artificial: tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário Brasileiro. FGV, 2021.
6 CNJ. Relatório Justiça em Números 2023. Disponível em: https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/painel-estatisticas/ . Acesso em 26 ago. 24
7 Sant'anna, Estela Chagas. Direito e inteligência artificial: uma parceria fundamental e promissora. Revista de Direito e as Novas Tecnologias, v. 9, out./dez. 2020.
8 CNJ. Os 20 maiores litigantes. Brasília: CNJ, 2024. Disponível em: https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/painel-litigantes/ Acesso em 14 dez. 24.
9 Banco Mundial. Brazil Making Justice Count Measuring and Improving Judicial Performance in Brazil. Report, n. 32789
10 Oliveira, Fabiana Luci De, e Luciana Gross Cunha. Os indicadores sobre o Judiciário brasileiro: limitações, desafios e o uso da tecnologia. Revista Direito FGV, v. 16, nº 1, 2020, p. e1948. Disponível em https://doi.org/10.1590/2317-6172201948 Acessado em 24 abr. 24.
11 Gomes, Adalmir de Oliveira; GUIMARÃES, Tomás de Aquino. Desempenho no Judiciário: conceituação, estado da arte e agenda de pesquisa. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, v. 47, n. 2, p. 379-401, 2013.
12 CNJ. Núcleo de Justiça 4.0 pode atuar para acelerar processos de grandes litigantes. Disponível em https://www.cnj.jus.br/nucleo-de-justica-4-0-pode-atuar-para-acelerar-processos-de-grandes-litigantes-diz-cnj/ Acesso em 26 ago 24
13 CF art. 5º, LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
14 Fontainha, Fernando de Castro. Juízes empreendedores: um estudo a partir da informatização dos tribunais brasileiros. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
15 Mendes Conrado Hübner. Prefácio. GODOY, Miguel Gualano de. STF e Processo Constitucional. Caminhos possíveis entre a Ministrocracia e o Plenário Mudo. São Paulo, fevereiro de 2021.
16 Oliveira, Fabiana Luci De, e Luciana Gross Cunha. Os indicadores sobre o Judiciário brasileiro: limitações, desafios e o uso da tecnologia. Revista Direito FGV, v. 16, nº 1, 2020, p. e1948. Disponível em https://doi.org/10.1590/2317-6172201948 Acessado em 24 abr. 24.
17 Gomes, Adalmir de Oliveira; GUIMARÃES, Tomás de Aquino. Desempenho no Judiciário: conceituação, estado da arte e agenda de pesquisa. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, v. 47, n. 2, p. 379-401, 2013
18 Godoy, Miguel Gualano de. STF e Processo Constitucional. Caminhos possíveis entre a Ministrocracia e o Plenário Mudo. Pág. 25.
19 Ponciano, Vera Lúcia Feil Ponciano. O Controle da Morosidade do Judiciário: Eficiência só não basta. Disponível em https://www.tre-pr.jus.br/institucional/escola-judiciaria-eleitoral/artigos/o-controle-da-morosidade-do-judiciario-eficiencia-so-nao-basta Acessado em 17 abr 24
Maria do Carmo Paiva dos Santos
Advogada. Pós-graduanda em Processo Civil na FGV-Law em São Paulo. Graduação em Direito pelo IDP com extensão acadêmica em ESG, Direito&Tecnologia na Université Paris I Panthéon Sorbonne e em Direito Política e Economia Comparada na Università Roma Tre em 2022. Atuação profissional em Contencioso Cível em Tribunais Superiores no escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques localizado em Brasília