"A infância encarcerada"
Crianças vivem em prisões com as mães, sofrendo injustiças que violam direitos fundamentais e comprometem seu desenvolvimento.
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Atualizado às 08:25
No Brasil, atualmente, segundo dados do CNPCP - Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, há cento e dezenove crianças, com idade inferior a dois anos, vivendo em unidades prisionais, em razão de suas genitoras estarem em situação de privação de liberdade.
Essas crianças acabam de certo modo cumprindo pena, sem ter culpa alguma, em conjunto com a mãe. Isso porque vivem uma rotina semelhante às das detentas, longe do convívio em sociedade, do seu grupo social e familiar, e lamentavelmente distantes de todas as oportunidades para um desenvolvimento saudável.
É uma situação desumana, cruel e degradante, que infringe postulados constitucionais relacionados a individualização da pena; bem como normas infraconstitucionais, como o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente; além de tratados internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), e as Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, que ficaram conhecidas como Regras de Bangkok (ONU, 2010).
De acordo com a pesquisadora Marlúcia Antônia de Rezende1, em seu artigo "Infância no Contexto Prisional: Reflexões sobre processos educativos e dignidade humana"2, ao realizar estudos no ambiente materno infantil de um presídio feminino do Estado do Paraná, registrou que outro fator a ser considerado nesses paradoxos é o fato de o sistema prisional também ser um espaço de violência:
Se no ambiente materno-infantil não se presenciam ações práticas de violência por parte das mulheres e agentes penitenciárias, vive-se uma violência simbólica, expressa nos limites de tempo, espaço e movimento e na perda de autoridade da mãe perante os filhos diante das guardas. Algumas práticas de interação com prejuízo aos vínculos estão diretamente relacionadas às regras impostas pelo sistema por meio das agentes que, a todo momento, lembram as mães de que as crianças não podem ficar manhosas, como registrado:
Os bebês costumam ficar em uma mesma posição por horas, seja no carrinho, no tatame ou na grama. Raramente as mulheres acolhem no colo, pois precisam preparar a criança para a separação. Elas não podem colocar 'manha' nas crianças, pois dificulta para a pessoa que cuida delas no contraturno e para a agente que cuida à noite.
O referido artigo também levanta que um outro aspecto a ser analisado consiste no fato do movimento (privado dessas crianças no ambiente de um presídio) ser uma das linguagens da criança, ressaltando que a "vida e os impulsos da criança se revelam no movimento, na busca curiosa pela experiência de conhecer". E destaca que Rousseau, ao defender que as crianças são ativas e que o movimento é necessário ao seu desenvolvimento, criticava as atitudes de imobilizá-las em faixas e panos, o que era comum na época, pois para ele, "viver não é respirar, mas agir; é fazer uso de nossos órgãos, de nossos sentidos, de nossas faculdades, de todas as partes de nós mesmos que nos dão o sentimento de nossa existência" (ROUSSEAU, 2014, p. 16).3
O Código de Processo Penal, com a alteração promovida pela lei 13.769, de 19 de dezembro de 2018, em seu art. 318-A, estabelece que a prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa, e não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.
Entretanto a norma ainda não alcançou e efetividade necessária para que essa triste realidade seja modificada.
Diante dessa situação, o CNPCP, editou a recomendação 5, de 13 de dezembro de 2024, que recomenda às administrações penitenciárias das unidades federadas, aos órgãos de execução penal e sistema de justiça criminal diretrizes para o acolhimento de mulheres em situação de prisão e em processo de desencarceramento feminino.
No mesmo sentido o STF, por meio de decisão do eminente ministro Gilmar Mendes, de 9/1/2025, ao analisar o HC 250.929, determinou ao CNJ a realização de mutirões carcerários para garantir o cumprimento de decisão da 2ª Turma que assegurou a substituição da prisão preventiva por domiciliar para mães de crianças menores de 12 anos de idade em todo o país.
O Decano do STF, proferiu a referida decisão seguindo entendimento firmado pela 2ª turma no julgamento do HC 143.641, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, que determinou a substituição da prisão preventiva pelo regime domiciliar a mães de filhos menores de 12 anos em todo o país. Na ocasião, o colegiado compreendeu que a medida garantiria mais proteção aos interesses da criança, dependente da mãe, ao mesmo tempo que ainda tolhe a liberdade da acusada, garantindo a ordem pública e econômica.
É uma afronta ao Estado Democrático de Direito a permanência de crianças em unidades prisionais, bem como o encarceramentos de suas mães, especialmente porque as mulheres mais atingidas são as mulheres pretas e pobres.
Por fim, se faz ainda necessário rememorar a citação, que embora também atribuída ao aclamado escritor francês Victor Hugo, é de Jean Victor Duruy (1811-1894), antigo ministro da Educação da França, que disse que "quem abre uma escola fecha uma prisão".
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1 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e Professora Adjunta do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
2 https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2018.v27.n52.p123-138
3 ROUSSEAU. J. J. Emílio, ou da educação. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2014