Sempre que um caso de aposentadoria compulsória de juízes ou promotores, por má conduta, é noticiada, pipocam comentários nas redes sociais criticando o teor da decisão.
“Nossa, que bela punição. Vai ficar sem trabalhar e ainda ganhando salário”, dizem os leitores incrédulos.
Um dos casos recentes que gerou este tipo de indignação foi o do juiz Marcos Scalercio, aposentado compulsoriamente pelo CNJ por assédio e importunação sexual.
Na ocasião do julgamento, a então presidente do Conselho, ministra Rosa Weber, chegou a lamentar que os vencimentos fossem mantidos:
"Eu lamento que a nossa legislação permita manter os vencimentos proporcionais ao tempo de serviço. O que mais dói neste processo é que as condutas eram adotadas e se invocava a condição de magistrado. Eu posso porque sou juiz."
Outro caso de repercussão, e que também acabou em aposentadoria compulsória, foi o do desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do TJ/SP, que ficou conhecido após destratar guardas municipais que o abordaram em uma praia de Santos/SP para pedir o uso de máscara de proteção contra a covid-19.
Para explicar essa situação aparentemente paradoxal, em que a punição para o faltoso é aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais, precisamos analisar a fundo a Loman – Lei Orgânica da Magistratura e a Lei Orgânica do Ministério Público.
Acompanhe-nos.
Vitaliciedade
Antes de tudo, é preciso entender o que difere um magistrado ou membro do parquet de qualquer outro servidor público concursado.
Os servidores públicos em geral adquirem estabilidade - direito de permanecer no cargo, salvo por pena em processo administrativo disciplinar - após três anos e aprovação no estágio probatório.
Já os membros do Ministério Público e da magistratura gozam de vitaliciedade. Importantíssima essa diferença, pois neste caso, não perdem o cargo a não ser por sentença judicial condenatória transitada em julgado.
“Significa dizer que mesmo que as instâncias disciplinares como o CNMP e CNJ determinem a aplicação de pena máxima, esta somente se efetivará depois de um processo judicial posterior, aforado pelo próprio MP”, explica Sandra Krieger, advogada, professora e ex-conselheira do CNMP.
Punições possíveis
Conforme determina o art. 42 da Loman – Lei Orgânica da Magistratura, são penas disciplinares:
I - advertência;
II - censura;
III - remoção compulsória;
IV - disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
V - aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
VI - demissão.
Com relação ao MP, Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo, ex-procurador-Geral de Justiça do MP/SP e sócio-fundador do Dal Pozzo Advogados, explica que a Lei Orgânica Nacional do MP nada dispôs sobre as penalidades. Todavia, as leis estaduais, como a LC 734/93, de SP, em seu artigo 237, determina que os membros do Ministério Público são passíveis das seguintes sanções disciplinares:
I - advertência;
II - censura;
III - suspensão por até 90 (noventa) dias;
IV - cassação da disponibilidade e da aposentadoria;
V - demissão.
Aposentadoria compulsória x Demissão
No caso da magistratura, no âmbito administrativo, a aposentadoria compulsória é a mais grave das cinco penas disciplinares aplicáveis a juízes vitalícios. Afastado do cargo, o condenado segue com provento ajustado ao tempo de serviço. A penalidade é definida pelo tribunal onde atua, por maioria absoluta dos membros, ou pelo CNJ.
Aplicada a pena de aposentadoria compulsória, os autos serão remetidos ao MP e à AGU ou à Procuradoria estadual competente para, se for o caso, tomar as providências cabíveis, como a instauração de processo judicial que pode resultar em uma condenação criminal e na cassação da aposentadoria.
Nesse ponto é que a população deve mirar suas críticas: é preciso, depois da punição administrativa, cobrar a abertura de processo judicial (no qual se garantirá a ampla defesa), pois só com o trânsito em julgado do processo o magistrado pode ser demitido, e aí sim sem os proventos.
No CNMP, o processo é semelhante. O órgão pode punir com demissão, mas a aplicação dessa pena somente se dará depois de ulterior processo judicial, se a chefia do MP (PGJ ou PGR) propuser a ação e se o Judiciário, nesta ação, decidir pela demissão. “Não é automática”, finaliza a professora.
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Uma dúvida que fica é se, no caso de condenação judicial com pena de demissão, o juiz ou promotor é obrigado a devolver o que recebeu, ou pelo menos devolver o que recebeu desde a punição administrativa.
Poucos, infelizmente, são os casos, de modo que não se tem ainda uma jurisprudência firmada.
“Ele pode deixar de perceber subsídios (vencimentos) a partir da pena de demissão, mas não devolve o que recebeu durante os anos de exercício”, afirma Araldo.
Já Sandra pondera que há bastante discussão sobre isso:
“Conheço casos em que o promotor de Justiça perdeu o cargo por ação de improbidade e teve cassados os subsídios a partir da condenação. Mas mesmo com a demissão ou aposentadoria voluntária, todos os valores que o membro recebeu não são devolvidos, pois trata-se de verba alimentar e, por isso, irrepetível.”
Atualizações
Na avaliação de Antonio Araldo, a Loman e a Lei Orgânica do MP não precisam de revisão geral no momento.
“Todas as leis precisam ser revistas de tempos em tempos, mormente nos dias que correm, dada a influência da tecnologia, que altera velozmente o dia a dia de todos nós. Mas, na minha opinião, essas leis nacionais não precisam de revisão geral no momento.”
Sandra Krieger, todavia, tem entendimento diverso:
“A magistratura e o MP têm simetria constitucional em relação aos seus deveres e vedações. Em relação às penas pelo mau exercício da função, deveria haver simetria também, bem como maior efetividade na aplicação das penas dos CNJ e do CNMP.”
A República de Curitiba
Citamos no início da reportagem o caso de magistrados aposentados compulsoriamente por violarem os deveres da Loman, e não podemos deixar de mencionar os meninos da Lava Jato de Curitiba.
Diogo Castor
O procurador foi punido pelo CNMP com a pena de demissão em razão da contratação de outdoor homenageando a operação Lava Jato. A decisão administrativa transitou em julgado, o MPF ajuizou ação judicial pedindo a perda definitiva do cargo, mas o processo segue em andamento.
Veja a cronologia da novela, que só faz ruborizar o Judiciário por não dar cabo dessa situação:
- Outubro de 2021 - CNMP aplica a pena de demissão. Na prática, deu-se de ombros, pois ele seguia recebendo vencimentos;
- Janeiro de 2022 - CNMP mantém decisão que aplicou a demissão;
- Maio de 2022 - Decisão que aplicou demissão transita em julgado;
- Julho de 2022 - MPF ajuíza ação contra Castor pedindo perda definitiva do cargo;
- Julho de 2022 - 1ª vara Federal de Curitiba nega o pedido liminar de afastamento de Castor até o julgamento do mérito. MPF recorre;
- Setembro de 2023 - Desembargador Luiz Antonio Bonat, do TRF-4, nega pedido do MPF que pedia o afastamento de Castor.
- Atualmente: mesmo depois de demitido pelo CNMP, ele continua atuando normalmente no Paraná, fazendo tábula rasa do CNMP. Se isso, às escâncaras, não é uma vergonha, o que será?
Deltan Dalalgnol
Em outubro de 2022, Dallagnol foi o deputado mais votado do Paraná. Porém, partidos políticos questionaram sua elegibilidade. Um dos argumentos utilizados foi de que ele deixou a carreira de procurador com processos administrativos pendentes no CNMP, o que afrontaria a lei da ficha limpa.
Outro ponto levantado diz respeito à condenação de Dallagnol pelo TCU, por gastos com diárias e passagens na operação Lava Jato.
No TRE/PR, os pedidos foram rejeitados. Na mesma linha foi o entendimento do Ministério Público Eleitoral, que opinou pela regularidade da candidatura do deputado.
O recurso, então, foi apresentado ao TSE. Em maio, em decisão unânime, o plenário decidiu pela cassação do mandato do deputado. Os ministros consideraram que o ex-procurador "agiu para fraudar a lei, uma vez que praticou, de forma capciosa e deliberada, uma série de atos para obstar processos administrativos disciplinares contra si e, portanto, elidir a inelegibilidade".
Mudanças à vista
Mais recentemente, no final de setembro, o CNJ começou a julgar proposta de alteração da resolução CNJ 135/11 para dispor que o magistrado que for aposentado compulsoriamente por decisão sancionatória, ou que tenha requerido exoneração ou aposentadoria voluntária, na pendência de processo administrativo disciplinar, fica inelegível para qualquer cargo político pelo prazo de oito anos.
A proposta do corregedor Nacional da Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, ainda dispõe que fica inelegível o magistrado que tiver reconhecida a prática de abuso de poder, em benefício próprio ou de terceiro, com finalidade eleitoral, bem como no caso do exercício de atividade político-partidária reconhecida por decisão devidamente fundamentada.
Após divergência da ministra Rosa Weber, considerando que não seria possível "criar" inelegibilidade por resolução, a análise do caso foi suspensa por pedido de vista do conselheiro Richard Pae Kim.