O plenário do STF retomou nesta quinta-feira, 2, julgamento que definirá se é aplicável o princípio da insignificância ao crime de tráfico de drogas e se há nulidade da prova decorrente da busca pessoal baseada em filtragem racial. O caso foi suspenso e será retomado na próxima semana.
Até o momento, o relator, ministro Edson Fachin, votou no sentido de que a busca pessoal, independente de mandado judicial, deve estar fundada em elementos concretos e objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a medida com base na raça, cor da pele ou aparência física.
No caso concreto, Fachin declarou a nulidade da revista pessoal e dos demais atos processuais subsequentes e determinou o trancamento da ação penal originária.
O ministro André Mendonça divergiu, denegando a ordem, mas mantendo em aberto debater uma tese sobre a matéria. Os ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli seguiram a divergência. Para os ministros, o caso concreto não é um bom caso para se discurtir perfilamento racial, por isso não entraram na questão.
Caso
No caso, o paciente foi condenado a mais de sete anos de reclusão, em regime fechado, por tráfico de drogas, por ter sido flagrado com 1,53 gramas de cocaína para fins de tráfico.
Segundo o relatório policial, ao passar pela rua "avistou ao longe um indivíduo de cor negra, que estava em cena típica de tráfico de drogas, uma vez que ele estava em pé junto o meio fio da via pública e um veículo estava parado junto a ele como se estivesse vendendo/comprando algo".
Ao STJ, a Defensoria Pública de SP apontou constrangimento ilegal na dosimetria da pena, por conta da valoração negativa da circunstância judicial da personalidade com base em antecedentes criminais e quantidade ínfima de drogas.
Neste julgamento, a DP/SP não alegou perfilamento racial. A hipótese foi levantada em voto do ministro Sebastião Reis, que argumentou que ficou claro que o motivo da abordagem foi por se tratar de pessoa negra.
Na ocasião, o ministro Sebastião demonstrou indignação com o caso, ressaltando que "em dez anos de Tribunal, não me lembro de um processo em que a autoridade policial tenha dito, abertamente, que só fez a abordagem do suspeito em razão de sua cor".
"Não se pode ter como elemento ensejador da fundada suspeita a convicção do agente policial despertada a partir da cor da pele, como descrito no Auto de Prisão em Flagrante constante dos autos, sob o risco de ratificação de condutas tirânicas violadoras de direitos e garantias individuais, a configurar tanto o abuso de poder, quanto o racismo."
O ministro propôs que a abordagem fosse considerada nula, mas os demais ministros consideraram que não seria possível saber se a cor da pele foi a única razão. Agora, analisando este caso, o STF definirá se a abordagem policial motivada por componente racial invalida provas, e se é aplicável o princípio da insignificância ao crime de tráfico de drogas.
"Não há crime e nem pode haver castigo pela cor da pele"
O relator, ministro Edson Fachin, iniciou seu voto ressaltando que quando o STF tratou da contextualização da injúria racial como crime de racismo, ele afirmou que há racismo no Brasil.
"Tratou-se ali de mais uma oportunidade em que o STF tem contribuído para enfrentar uma estrutura social engendrada no racismo. Estrutura que segue se reproduzindo como uma poderosa tecnologia para promover as hierarquias de humanidades, aqui estamos novamente em razão desse percurso em sua forma mais aguda, promovido pelo Estado, aparato que deve proteger, e não discriminar."
Para o ministro, o fato de a busca pessoal resultar em apreensão de objetos ilícitos, ou que constituam o corpo de delito, não torna a revista lícita.
"O resultado da busca pessoal nesse sentido é irrelevante para a caracterização de sua licitude. O necessário para conferir legitimidade à busca pessoal é a a existência de justa causa anteriormente à realização da medida, ainda que esta resulte infrutífera. A necessidade de controle judicial posterior, e de justa causa prévia à realização de medida de natureza cautelar, independentemente de ordem judicial, já foram reconhecidas pelo plenário da Corte em sede de repercussão geral."
Fachin esclareceu que não se visa "demonizar" instituições policiais sabidamente também afetadas pela estrutura racista para a qual funciona e que não passa desapercebido que as mortes policiais, por exemplo, também tem recorte racial.
Para o relator, há um desafio que nos deve comprometer a todos, sociedade, sistema de Justiça e forças policiais, a fim de obstar comportamentos que consciente ou inconscientemente atribuem às pessoas negras sentidos negativos decorrente de estereótipos que as situam como sujeitos supostamente criminosos em decorrência da cor da pele.
"Não há crime e nem pode haver castigo pela cor da pele. O sistema de Justiça ainda não deu mostras de que tenha desativado a rede de estereótipos que atribui aos corpos negros sentidos sociais negativos que legitimam violências, inclusive estatais, como é o caso inequivocamente do encarceramento em massa de pessoas negras, em particular pelos crimes de traficância."
O ministro salientou que é passada a hora de o senso comum que impera ainda, de que pessoas negras são naturalmente voltadas para a criminalidade, para que, quando menos, e desde logo, esse contexto seja traduzido pelo Poder Judiciário como uma histórica e sistemática violação de direitos, que tem sido normalizada pelas instituições de Justiça, a partir de legitimação de direitos que estariam a serviço da "guerra do bem contra o mal", "especialmente aquela travada na rua, em que os corpos negros são representados, graças às tecnologias do racismo, como suspeitos de provocarem o desassossego dessa ordem normalizada como estabelecido".
O ministro considerou que a situação apresentada não revela a existência de elementos concretos a caracterizar fundada razão exigida para a busca pessoal sem ordem judicial.
Assim, reconheceu no caso a nulidade da busca pessoal realizada pelos policiais militares a qual resultou na apreensão dos itens descritos no auto de exibição e apreensão, e também de todos os demais elementos de informações e provas colhidas em juízo, porque decorreram de apreensão ilegal, em violação ao previsto na Constituição Federal.
Assim, não conheceu do habeas corpus, mas concedeu a ordem de ofício para declarar a nulidade de revista pessoal e dos demais atos processuais e determinar o trancamento da ação penal originária.
Por fim, com o escopo de coibir o perfilamento pessoal em buscas policiais, e por caber ao papel Judiciário a assumir seu papel constitucional nessa tarefa, propôs com o final do julgamento que se esteie nas seguintes diretrizes:
i) A busca pessoal, independente de mandado judicial, deve estar fundada em elementos concretos e objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a medida com base na raça, cor da pele ou aparência física;
ii) a busca pessoal sem mandado judicial reclama urgência para qual não se possa guardar uma ordem judicial;
iii) os requisitos para busca pessoal devem estar presentes anteriormente à realização do ato, e devem ser justificados pelo executor da medida para ulterior controle do poder Judiciário.
Confira a íntegra do voto do relator.
Caso x Tese
O ministro André Mendonça divergiu do relator, denegando a ordem, mas mantendo em aberto debater uma tese sobre a matéria.
Para Mendonça, o local é publico e notoriamente conhecido como tráfico de drogas, os policiais estavam distantes e, ao dar sirene, os indivíduos tentaram se evadir, efetivamente foi encontrado drogas com o paciente e ele tentou ocultar uma quantidade.
"No caso concreto eu não entendo haver razões ao paciente. Estou aberto a construir uma tese objetiva, mas outra coisa é o caso concreto."
Assim, votou por denegar a ordem. Os ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli seguiram a divergência.
- Processo: HC 208.240