O Brasil de 2022 pode ser considerado o país da fome. Neste ano, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer. É o que revelou o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, lançado neste mês pela Rede Penssan.
Dados da FGV também mostram que a parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos 12 meses subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021, atingindo novo recorde da série iniciada em 2006. Foi a primeira vez desde então que a insegurança alimentar brasileira superou a média simples mundial.
“Quem tem fome tem pressa”
Não por coincidência com os dados acima, levantamento da defensoria pública da Bahia mostram que, de 2017 a 2021, se comparado ao número de furtos gerais, os flagrantes de crimes famélicos quase dobraram e subiram de 11,5% para 20,25%.
Nos tribunais brasileiros, a realidade indigna. No STJ, os ministros já trancaram ação penal por furto de steak e furto de miojo e suco. Casos chegaram, ainda, ao STF: furto de copo de requeijão e até de água.
Recentemente, o caso que causou comoção e até indignação foi o do jovem de 20 anos preso pelo roubo de um celular que, na audiência de custódia, ganhou a liberdade, mas, em vez de comemorar, surpreendeu a juíza e o promotor ao pedir para permanecer preso até a hora do jantar.
O homem, que estava há um dia no presídio de Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte, disse que estava muito fraco e ficou com medo de passar mal na rua.
Insegurança alimentar
Segundo a pesquisa da Penssan, são 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome em pouco mais de um ano. A edição mostra que mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome).
Com os dados, o país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990.
As estatísticas foram coletadas entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir da realização de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal.
No Brasil de 2022, apenas 4 em cada 10 domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação – ou seja, estão em condição de segurança alimentar. Os outros 6 lares se dividem numa escala, que vai dos que permanecem preocupados com a possibilidade de não ter alimentos no futuro até os que já passam fome.
São 125,2 milhões de brasileiros que passaram por algum grau de insegurança alimentar. É um aumento de 7,2% desde 2020, e de 60% em comparação com 2018.
A insegurança alimentar segue como uma questão que atinge as regiões do Brasil de forma desigual. No Norte e no Nordeste, os números chegam, respectivamente, a 71,6% e 68% – são índices expressivamente maiores do que a média nacional de 58,7%. A fome fez parte do dia a dia de 25,7% das famílias na região Norte e de 21% no Nordeste. A média nacional é de aproximadamente 15%, e, do Sul, de 10%.
Raça e cor
Enquanto a segurança alimentar está presente em 53,2% dos domicílios onde a pessoa de referência se autodeclara branca, nos lares com responsáveis de raça/cor preta ou parda ela cai para 35%.
Em outras palavras, 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas convivem com restrição de alimentos em qualquer nível. Comparando com o 1º Inquérito Nacional da Rede PENSSAN, de 2020, em 2021/2022, a fome saltou de 10,4% para 18,1% entre os lares comandados por pretos e pardos.
Renda
Em 67% dos domicílios com renda maior que um salário-mínimo por pessoa, o acesso a alimentos (segurança alimentar) é pleno e garantido. Porém, se em 2020 não havia domicílios com renda maior que um salário-mínimo por pessoa em situação de fome, no início de 2022 essa deixou de ser uma garantia contra a privação do consumo de alimentos – consequência da crise econômica e dos reajustes do salário-mínimo abaixo da inflação.
Agora, 3% dos lares nesta faixa de renda têm seus moradores em situação de fome, e 6% convivem com algum grau de restrição quantitativa de alimentos (insegurança alimentar moderada) e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação (insegurança alimentar leve).
A fome é maior nos domicílios em que a pessoa responsável está desempregada (36,1%), trabalha na agricultura familiar (22,4%) ou tem emprego informal (21,1%). Já a segurança alimentar é maior nos lares onde o chefe da família trabalha com carteira assinada, chegando a 53,8% dos domicílios.
Vergonha
De todas as famílias entrevistadas pela pesquisa, 8,2% relataram sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento pelo uso de meios que ferem a dignidade para conseguir colocar comida na mesa. Isso corresponde a 15,9 milhões de pessoas no Brasil, que foram obrigadas a usar de meios social e humanamente inaceitáveis, para obtenção de alimentos. Nessa faixa, 24,3% convivem com as manifestações mais severas de insegurança alimentar (moderada ou grave).