Prisão preventiva, duração razoável do processo e alguns cenários
A difícil relação entre prisão preventiva e duração razoável do processo, agravada num cenário pós-pandemia, com a preguiçosa realidade online.
segunda-feira, 18 de novembro de 2024
Atualizado às 10:23
O artigo relaciona, por consequência necessária, dois institutos temporais com naturezas jurídicas diversas. Um prisional cautelar, e anterior, a PP - prisão preventiva; e outro, que se lhe é posterior e consequencial, a tentativa sistêmica de processo 'rápido', em alguma medida prestável para a parte processual, seja ela autora ou ré. Como autora, nos casos de uma presumida celeridade, ou pelo menos não lerdeza excessiva ao exercício do direito, o que sempre foi a regra na processualística brasileira. Já como ré, à medida que a morosidade se mostra como forma de subjugação danosa da pessoa ao Estado.
O cenário da criminalidade insistentemente visto pela estreiteza do encarceramento e do Direito Penal, em vez de um ligado a causas e mudanças efetivas, por todas a educação, é persistência populista e ineficiente. Heleno Fragoso cunhou 'eu não quero um direito penal melhor; quero algo melhor do que o direito penal'. Mas a crença no fator intimidativo da pena segue. Cesare Beccaria já o desfazia, mostrando que a certeza da punição, e não mero agravamento dela, é o que importa. Por seu turno, Welzel1 requalifica a teorética, explicando que o Direito Penal tem algum fator intimidativo frente ao homem socialmente produtivo, mas se mostra impotente ante o criminoso contumaz. Quanto à moderna criminalidade, empresarial e organizada, Cezar Roberto Bitencourt2 nega que o Direito Penal fundado numa culpabilidade humanamente personalista, possa ser método eficaz. Assim, por qual lado se pense, há possíveis digressões e críticas.
O Brasil tornou-se, olimpicamente, o terceiro país em presos no mundo em números absolutos3, e o décimo quinto em presos por 100.000 habitantes4. Em pesquisa publicada no 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2024, em 2023 o país possuía uma população carcerária de 852.010 presos, sendo 208.882 provisórios. O déficit de vagas era de 214.8195. Já os números da Senappen6, para o primeiro semestre de 2024, igualmente não são animadores. Nada disso se mostrou hábil a qualquer tipo de transformação social positiva, mas, ao contrário, só serviu como uma agudização criminal, algo pós-foucaultiano em que a preocupação continua sendo o credo no atingimento e restrição corpóreos7, a velha ideia de intimidação da criminalidade.
A PP - prisão preventiva é instrumento regular, CPP, art. 311 e seguintes. Cabe, por decisão judicial, a qualquer tempo da fase investigativa ou processual. Registre-se a crítica de Gustavo Badaró8 sobre a PP em inquérito policial, ante a possibilidade mais benéfica da prisão temporária. Mesmo assim ela é decretável, segundo o CPP art. 312. Obedece, principiologicamente, a cinco fatores, genéricos e funcionalmente abertos, o que exige concretude no fundamento para sua aplicação em um caso específico, sendo incabível o uso dos fatores abertos como fundamentos efetivantes da PP. São eles: garantia da ordem; conveniência da instrução criminal; aplicação da lei penal; existência de prova do crime; indício suficiente de autoria. Infelizmente, ainda se vê atecnia com fundamentos genéricos a estear PP. Fernando Capez9 acrescenta ao instituto o degrau máximo de só após a 'insuficiência de qualquer outra medida coercitiva menos drástica'.
Modernamente, o instituto da prisão, como um todo, vem passando por uma reconfiguração evolutiva, não apenas fática, mas científica. As exigências no ordenamento jurídico apertam cada vez mais, para se prender cada vez menos10. A não ser quando a gravidade e a necessidade patentes o exijam. Vê-se um reforço à liberdade e um aumento de excepcionalidade da prisão, ainda que esta evolução encontre, por exemplo, os grandes centros do país convulsionados e reféns de uma criminalidade endêmica, o que denotaria certo paradoxo. Com um recrudescimento da chamada Direita Penal e seus fâmulos epistêmicos, o punitivismo, o cadeísmo e outros, é como se se densificasse o princípio da insignificância, relativamente à prisionalidade, no sentido de se exigir o aumento de importância do bem jurídico, não como mero símbolo, mas como ensinado por Juarez Tavares11, numa concretude hipertrofiada como objeto de lesão ou perigo concreto, e só assim, se pensar em prisão, crítica que o mesmo doutrinador12 intercala ao ranço de o crime e a pena, num sistema capitalista, não conseguirem se desvencilhar do conceito de mercadoria. De qualquer forma, a norma criminalizadora, no Estado Democrático, só pode recepcionar interpretação como limitadora do exercício do poder punitivo, conforme esta mais moderna doutrina. Assim, se a prisão ordinária, fruto da cognição exauriente, se torna exceção, a cautelar passa a exigir hercúlea fundamentação e casuística reforçada para sua verificabilidade.
Precisamente por isto, qualquer cruzamento do instituto da PP com eventual natureza jurídica então contaminada de antecipação de pena; possível instrumento aquietador de anseios; ou clamor popular, tornará seu uso cabalmente inadmissível.
Problema crítico diz respeito à necessidade de renovação, a cada 90 dias, da PP, conforme o CPP, art. 316, parágrafo único, ultimando-se ilegalidade aposterística ou superveniente, caso não renovada. Em suposição talvez não totalmente esdrúxula, a situação se compararia a uma quase preclusão pro iudicato, só que fática, impedindo o juiz de manter a necessidade prisional, uma vez extrapolado o prazo, frise-se, que não é judicial, mas legal. Aí ainda, uma dualidade, o mesmo prazo que, atendido na ratificação, socorre a manutenção da prisão, desatendido é outorga de direito de liberdade ao encarcerado. Se cabível qualquer sopesamento nos fatores da antitetia, o segundo fator, ligado à liberdade, deveria se mostrar menos dúctil que o primeiro, posto que o STF não tenha parametrado assim.
Numa famigerada prática forense, invariavelmente pragmática, é possível que um detido passe meses ou anos encarcerado cautelarmente sem julgamento, um aspecto processualmente trágico relacionado à PP.
Prisões preventivas houve, já, por prazos aberracionais, como no recente caso, sabido em 2022, em que o STJ relaxou um encarceramento cautelar existente há esdrúxulos 11 anos, sem sequer julgamento monocrático. Ao tardo relaxamento pelo STJ, em HC, não se há reconhecer méritos ou outro semelhante pieguismo processual que se supusesse, mas rasa correção, em tudo atrasada, consubstanciando sabida degradação processual.
Fica patente que a mera existência de norma no ordenamento jurídico não é garantidora efetiva de sua aplicação, cabendo sempre à defesa do detido, como se percebe - e se possível-, fiscalização constante de sua situação processual. Para piorar, o STF13 exarou entendimento de que a inobservância do prazo nonagesimal do CPP, art. 316, não resulta em revogação automática da prisão, garantindo reavaliação do juiz após ter que ser instado a tanto, perfectibilizando um laivo punitivista.
O entrechoque entre a garantia da liberdade e o instituto da PP, inserido na situação degradada da criminalidade dos grandes centros brasileiros, como em todo o país, com o advento do crime organizado, é epistemologicamente difícil. A liberdade é intransigível com suposições ou ilações que a relativizem, salvo nos guetos de uma criminosidade indiciariamente clara e inescondível, além de qualitativamente muito grave. Assim, afora a hediondez dos tipos penais já insertos em lei própria para tais tipologia e fim, não deve o juiz alargar o sopesamento entre a liberdade e o encarceramento preventivo por vieses como ideologia, visão de mundo ou qualquer inferência particular que alcance um açambarcamento casuístico da PP, em detrimento da deontológica rigidez do princípio da liberdade.
Também para coarctar tais aberturas assistêmicas e aprocessuais - acientíficas-, agudizadas para efeito de Direito Penal, faz-se indispensável abordar o princípio da duração razoável do processo, consagrado na CF/88, art. 5º, LXXVIII, como prometida evolução democrática, quando se progride, dos originariamente enumerados princípios fundamentais havidos na CF/88, para um novo, introduzido décadas depois, e no viés qualitativo, estimando-se assegurar um processo minimamente prestável temporalmente. Pelo menos esta era a promessa14.
O mesmo direito, à celeridade, vê-se assegurado por pelo menos dois instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil: O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que estabelece em seu art. 9.3 que uma pessoa presa por motivo de infração penal "terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade"15, e a Convenção Americana de Direitos Humanos, ao tratar sobre o Direito a liberdade pessoal, mais especificamente no art. 7.5, determinando que a pessoa seja conduzida sem demora à presença do juiz, com direito a prazo razoável para o processo16. Alcança processos judiciais e administrativos.
Repare-se que em ambos os instrumentos internacionais mencionados dá-se um correto sopesamento entre os fatores todavia assimétricos, a garantia da liberdade e a prisão, quando é ratificado o primeiro, à medida que a alternativa ao julgamento em prazo irrazoável conceda-se, de pronto, a liberdade, pouco importando, nesta díade máxima, liberdade-prisão, a correta relação de medidas alternativas cautelares do Direito brasileiro, diversas da prisão, CPP, art. 319.
Ainda, apenas a falta de localização do réu não autoriza a PP, já tendo o STJ decidido neste sentido. Também não cabe a conversão espontânea pelo juiz da prisão em flagrante em PP, conforme o mesmo STJ. A PP com qualquer resquício de ilegalidade, ou sem todos os requisitos legais presentes, deverá ser relaxada17 pelo juiz, espontânea ou provocadamente, efeito que pode se confundir com o do HC. Também, a PP não perde sua possibilidade se confrontada com o princípio da não culpabilidade, desde que não se mostre com natureza de antecipação da pena e não seja consequência automática e abstrata do crime ou ato processo praticado.
Nesse contexto, a observância ao princípio da duração razoável do processo revela-se imprescindível, especialmente quando o acusado está preso preventivamente, pois conforme Aury Lopes Jr. 'quando a duração de um processo supera o limite da duração razoável, novamente o Estado se apossa ilegalmente do tempo do particular, de forma dolorosa e irreversível.18'
Para além disso, é de extrema relevância ponderar o potencial de que a ausência da definição de um prazo para uma PP possa, por si só, constituir um instrumento de violação de garantias do acusado, uma vez que a manutenção dessa medida dependerá de um conjunto de fatores subjetivos.
Demais, a indeterminação do prazo de cumprimento de PP também é alvo de severas críticas doutrinárias, conforme reflexões de Gustavo Henrique Badaró, que além de problematizar a ausência de definição clara sobre o que se deve entender por razoabilidade na duração do processo, sustenta que é imprescindível, para a efetividade do direito fundamental, que a lei estabeleça um prazo máximo para a PP, impondo, como consequência automática do excesso, a soltura do réu.19
Algumas situações precisam ser bem mais transparentes. Da crítica acerca do necessário direito de informação ao prazo máximo da prisão, pode-se ampliar o questionamento para, no mínimo, a réus presos preventivamente, se lhes deem a dimensão temporal precisa da duração do processo, sob pena, por exemplo e de lege ferenda, de escalas progressivas de atenuação de sua responsabilização processual, por meio do velho instituto do excesso de prazo.
Nesse sentido, considerando a existência atual de casos como os demonstrados no presente trabalho, em que uma pessoa, presumidamente inocente, é encarcerada e abandonada no sistema prisional, torna-se evidente que a ausência de um prazo determinado para a PP desafia a vedação de sua configuração como cumprimento antecipado de pena.
Ainda, tal situação coloca em risco o próprio o princípio constitucional da presunção de inocência expresso na Constituição da República, art. 5º.
O que se conclui é que o legislador, por meio do CPP, art. 316, parágrafo único, possivelmente tentou conter arroubos punitivos e prevenir a violação dos direitos e garantias dos acusados, buscando evitar a deturpação do instituto da PP. No entanto, o que se vislumbra na prática é certa perpetuação do encarceramento massivo, em um sistema prisional que já apresenta um déficit superior a 214 mil vagas.
Por fim, impõe-se a reflexão sobre o paradoxo entre a teórica impossibilidade de a PP configurar antecipação de pena, a ausência de definição de prazo legal para o fim da medida e o dado estatístico previamente mencionado, que revela a existência centenas de milhares de presos provisórios no país.
Conclusões
O instituto da PP se mantém necessário como importante mecanismo de rapidificação eficacial no Direito Processual Penal, principalmente ante uma criminalidade grave e organizada que demanda medidas de urgência e de contenção concreta.
Conquanto a PP seja necessária algumas situações limite, sempre que couber um crítico sopesamento, propulsor de dúvida, entre ela e a garantia da liberdade, esta há de prevalecer.
A efetiva aplicação da PP só se mostra juridicamente correta se estreme de dúvida quanto à impossibilidade de utilização de todos os outros mecanismos cautelares potencialmente existentes como menos gravosos, inclusive com justificação precisa neste sentido.
O direito fundamental à duração razoável do processo não pode continuar como mera inefetividade processual e apenas esporadicamente perfectibilizado, dada uma continuada morosidade endêmica do processo judicial brasileiro, necessitando entrar, ordinariamente, na cultura brasileira.
O processo judicial como fator cultural perpetua-se no tempo como patologia social, no sentido de que não deveria compor, com o conflito de interesses, um modelo ordinário de existência humana que normaliza o conflito intersubjetivo, devendo-se buscar, em substituição a toda esta realidade degradada, a otimização verdadeira da educação e outros vieses para uma pacificação e requalificação social, equação que, todavia, no caso brasileiro, estima-se ainda bastante utópica.
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1 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman. 11 ed. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 1976, p. 18.
2 In GRECO, Luís; LOBATO, Danilo (coord.). Temas de direito penal - primeira parte. A (i)rresponsabilidade penal da pessoa jurídica - incompatibilidades dogmáticas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 107.
3 Highest to Lowest - Prison Population Total | World Prison Brief. Prisonstudies.org. https://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All.
4 Highest to Lowest - Prison Population Rate | World Prison Brief. Prisonstudies.org. https://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison_population_rate?field_region_taxonomy_tid=All.
5 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/253.
6 Secretaria Nacional de Políticas Penais, 11/10/2024 registrou - 1º semestre 2024: aumento de 25,9% em atividades de educação no sistema penitenciário brasileiro; 158.380 presos com alguma atividade laboral; 105.104 em monitoração eletrônica; 115.117 em prisão domiciliar, sem tornozeleira eletrônica.
7 Uma política penal conservadora, então, vai ser conduzida por este 'pequeno funcionário da ortopedia moral', Foucault, Vigiar e Punir, crédulo num cadeísmo redutor da criminalidade, conteste com a sociedade que vê igual.
8 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 9 ed. São Paulo: RT, 2021, p. 1177.
9 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 31 ed. São Paulo: SaraivaJus, 2024, p. 194.
10 Na contramão da evolução científica da penalística, a recente pena pretensamente exemplarista do crime de feminicídio, irreal e panfletária, posto que tal crítica diga respeito exclusivamente à questão da pena, não à gravidade do crime em si.
11 TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p 101.
12 TAVARES, Juarez. Crime: crença e realidade. Rio de Janeiro: Da Vince Livros, 2021, p. 67.
13 STF, tese de jurisprudência: A inobservância do prazo nonagesimal do artigo 316 do CPP não implica automática revogação da PP. https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur439615/false.
14 A capa da Tribuna da Advocacia, outubro/24, da OAB RJ mostra um elefante sentado numa poltrona de couro, em que o paquiderme simboliza a morosidade da justiça, objeto de cobrança da autarquia, por processos simplesmente parados em todo o estado. Isto, após a nova 'sociologia' da Covid com o advento do Zoom e o conforto da casinha, está longe de ser um 'privilégio' carioca.
15 ONU. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, art. 9.3.
16 Decreto 678/1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), art. 7.5.
17 Relativize-se o popular 'relaxamento de prisão' como conceito processual penal, vez que, s.m.j., inexiste o instituto em sua estanqueidade epistêmica, tendo mera funcionalidade de consequência de HC, ou espontâneo ou acionário. A questão é: a mera referência-efeito, inserida na CR, art. 5º, LXV, de que a prisão será relaxada cria, por si só, o instituto autônomo de relaxamento de prisão? Opta-se aqui por uma resposta negativa, o que não empece possa se pedir soltura, relaxamento, livramento, liberdade ou o efeito nominalista que se supuser, sabido que ao ato processual o apelido é-se-lhe sempre irrelevante.
18 LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 19. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 82.
19 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 90.