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Modificação de lei provoca “fla x flu” no direito público brasileiro

Rodrigo Zambão comenta os efeitos da nova lei 14.230/21, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no fim de outubro, que alterou a tipificação do crime de Improbidade Administrativa.

25/5/2022

Em entrevista à Tônica Mídia, professor e mestre em Direito Público, Rodrigo Zambão, do Centro de Estudos e Pesquisa no Ensino do Direito - UERJ, comenta os efeitos da nova lei 14.230/21, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no fim de outubro, que alterou a tipificação do crime de improbidade administrativa. 

(Imagem: Divulgação)

Rodrigo Zambão do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito (CEPED) da UERJ

O jurista vê pontos positivos e negativos nas mudanças, ressaltando que é natural haver ajustes na legislação: "Há espaço para potencializar o que a Lei da Improbidade traz de positivo e questionar aspectos que podem dificultar a punição de agentes desonestos", argumenta o jurista.

1) Fala-se muito em um "apagão da Administração Pública" por causa de supostos excessos da atual Lei de Improbidade e do Ministério Público, o que justificariam as mudanças feitas no Congresso. O caminho era realmente mudar a lei?

O “apagão da Administração Pública” – ou "apagão de canetas" – representa um fenômeno de paralisação na atuação de agentes públicos em razão do medo de responsabilização excessiva. Trata-se de fenômeno presente na realidade de muitas estruturas administrativas, em todos os níveis da Federação. Mas é necessário reconhecer que o citado "apagão" não é decorrência de causa única. Não pode ser atribuído exclusivamente ao Ministério Público e a excessos eventualmente verificados no manejo de ações de improbidade. O Ministério Público é uma instituição essencial ao Estado Democrático de Direito e deve permanecer dotado de independência e estrutura para bem desempenhar suas funções constitucionais. Na verdade, a inércia administrativa tem mais ligação com a existência de uma pluralidade de instâncias de controle, que não raro atuam de forma não dialógica e sobreposta. E isso, também não raro, compromete a boa gestão pública e atinge muitos agentes públicos bem intencionados, que não são imunes ao cometimento de erros. O problema maior de um controle desproporcional é que ele gera estagnação e dificulta a inovação na Administração Pública. O medo da responsabilização excessiva realmente produz paralisia.

Dito isso, enxergo a alteração legislativa como uma tentativa de se calibrar o controle em razão da imputação de atos de improbidade. A novidade legislativa pode contribuir para melhorar o estado de coisas, mas certamente não resolverá o problema do “apagão” como um todo.

2) Como o senhor vê as mudanças feitas? Quais são os principais aspectos positivos e negativos?

A alteração na lei de improbidade há muito vinha sendo objeto de estudos em setores especializados. É natural que leis sejam objeto de modificações e ajustes ao longo do tempo. O grande problema é que a atual modificação despertou paixões, uma espécie de “fla x flu” no direito público brasileiro. Eu prefiro reconhecer que há argumentos legítimos e bem intencionados de parte a parte. E a nova lei, como tudo na vida, tem pontos positivos e negativos. Como ponto positivo, eu enxergo a reafirmação da ideia de que a improbidade administrativa não pode ser associada a toda e qualquer infração praticada por agente público. Nem toda atuação desviada de agentes públicos deve ser caracterizada como improbidade. Há diferentes níveis de responsabilização de agentes públicos, e a improbidade, com sanções extremamente gravosas, está em nível elevadíssimo, abaixo apenas da responsabilidade criminal. Em termos mais diretos: a lei traz uma tentativa de evitar a banalização da improbidade administrativa.

No aspecto negativo, enxergo com preocupação a complexa discussão sobre a possibilidade de aplicação do novo prazo prescricional a ações em curso, circunstância que poderá deixar atos realmente ímprobos sem a devida punição. A matéria será decidida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Repercussão Geral, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

3) No texto final, foi acrescentado um dispositivo para exigir dolo em casos de nepotismo. A tendência, na sua opinião, é os casos de nomeação de parentes aumentarem?

Realmente um dos temas polêmicos da alteração legislativa, sobretudo pelo fato de que o nepotismo é algo objetivo, ou seja, basicamente a nomeação de parentes para exercícios de funções comissionadas ou de confiança, em contrariedade aos princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade e eficiência. Por isso a perplexidade de muitos no que diz respeito à exigência do dolo.

Só que é necessário fazer uma ressalva. A alteração legislativa não torna o nepotismo algo legítimo. Na verdade, o que a lei consagra é que nem todo nepotismo será caracterizado como improbidade, sem que isso automaticamente represente impossibilidade de responsabilização em outras esferas.

Tenho a esperança de que a alteração legislativa não representará um retrocesso, já que o combate ao nepotismo é uma conquista recente na história constitucional brasileira. Ao fim e ao cabo, o abandono do nepotismo deveria ser algo cultural e não jurídico.

4) Como é possível provar dolo em casos de improbidade?

O dolo sempre foi a regra para caracterização de atos de improbidade, a exceção daqueles causadores de dano ao erário, relativamente aos quais se admitia a responsabilização por culpa grave. O que a lei passa a exigir é o chamado dolo específico, ou seja, a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado.

A exigência do dolo específico vai tornar mais onerosa a construção do lastro probatório necessário – uma justa causa – para o ajuizamento de ações de improbidade. E a obtenção de provas em matéria de improbidade é realmente algo relevante, considerada a intensidade das punições.

Mas a forma de se provar o dolo não vai mudar tanto assim. O dolo continuará a ser validamente extraído de uma pluralidade de situações, notadamente das circunstâncias em que é praticado o ato e das condutas especificamente reveladas pelo agente público.

5) Quais as implicações de apenas o MP ter o condão de apresentar casos de improbidade?

Sou especialmente crítico da previsão de legitimidade exclusiva para o Ministério Público. É um tanto quanto questionável que se prive o ente lesado, por intermédio do seu órgão de advocacia pública, do ajuizamento de ações de improbidade, especialmente quando está em jogo dano ao erário. A modificação legislativa também cria danos sistêmicos no tratamento do combate à corrupção. Enfraquece a atuação dos órgãos de advocacia pública na negociação e celebração de acordos de leniência, por exemplo.

É relevante registrar que em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, também sob a relatoria do Ministro Alexandre, foi concedida medida cautelar para suspender os efeitos da legitimação exclusiva, dentre outros argumentos, pelo fato de que representaria um retrocesso no combate à corrupção.

Ainda assim, caso ao final seja mantida a previsão da legitimidade exclusiva, a consequência mais imediata é que ela forçará um maior diálogo entre órgãos administrativos de controle e o Ministério Público, que deverá ser constantemente municiado de elementos para instauração de inquéritos e ajuizamento de ações de improbidade.

6) Como essa questão é tratada internacionalmente? Há algum modelo em que poderíamos nos espelhar?

Difícil endereçar o tema internacionalmente, já que cada país tem estruturas de controle compatíveis com as suas respectivas realidades. O que eu arriscaria dizer é que dificilmente encontraremos países com tantos (e tão poderosos) órgãos de controle como no Brasil. E mais: também não há exemplos de tamanha interferência externa no campo da gestão pública, no controle de políticas públicas, como no país. Trata-se de ponto que deve ser continuamente objeto de reflexão e de ajustes legislativos.

7) O senhor tem alguma proposta de mecanismos para proteger a coisa pública mas que, ao mesmo tempo, não afastem as pessoas da política?

Também é um tema muito complexo. Não há providência milagrosa. Ainda assim, penso que o grande desafio reside justamente na criação de incentivos adequados para atração de pessoas de bem e tecnicamente qualificadas para cargos públicos, especialmente os de natureza política.

Só que um automatismo sancionador e um punitivismo exacerbado acabam criando incentivos invertidos. O medo de responsabilização desproporcional afasta bons quadros de instâncias administrativas e políticas. Não podemos transformar cargos públicos em armadilhas. Meu desejo é que a alteração da lei de improbidade contribua para a mudança do estado atual de coisas. Se os resultados serão alcançados, só o tempo dirá.

8) Temos um sistema burocrático ou leniente, na sua opinião?

O sistema é muito dos dois, mas eu arriscaria dizer que é mais burocrático do que leniente. Temos um Estado agigantado, caro, lento e muitas vezes insensível a resultados dele esperados. E a solução para a ineficiência da máquina pública também passa pelo que afirmei acima: a necessidade de criação de incentivos para incorporação de indivíduos bem intencionados e devidamente qualificados para o desempenho de funções públicas de todos os tipos.

No campo da leniência, registro que não enxergo na alteração legislativa a criação de uma “lei da impunidade”. Há espaço para potencializar o que ela traz de positivo, e, pelos caminhos institucionais adequados, questionar aspectos que podem dificultar a devida punição de agentes públicos desonestos.

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*Rodrigo Crelier Zambão da Silva é professor de Direito Administrativo no Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito (CEPED) da UERJ, Mestre em Direito Público pela UERJ, Procurador do Estado (Ex-Procurador-Geral), Advogado e Ex-assessor de Ministro no Supremo Tribunal Federal.

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