De acordo com o ministro Edson Fachin, do STF, a soberania dos vereditos do Júri não pode implicar a concessão de perdão a crimes que nem mesmo o Congresso Nacional perdoaria. Sob esse entendimento, o ministro votou por declarar a tese da legítima defesa da honra, usada na defesa de feminicidas, inconstitucional.
O caso
O PDT - Partido Democrático Trabalhista acionou o STF para questionar a constitucionalidade da tese jurídica da "legítima defesa da honra". Na ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com pedido de liminar, a legenda argumenta que, com base na interpretação de dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal, Tribunais do Júri têm aplicado a tese e absolvido feminicidas.
O partido alegou que a garantia constitucional de soberania dos veredictos do tribunal do júri, por vezes, acaba legitimando julgamentos contrários aos elementos fático-probatórios produzidos à luz do devido processo legal, passando a mensagem de que legítimo absolver réus que comprovadamente praticaram feminicídio, se o crime houver ocorrido em defesa da sua honra.
Sociedade machista
Fachin destacou que é absolutamente contrária à Constituição a interpretação do quesito genérico formulado ao Júri que implique a repristinação da odiosa figura da legítima defesa da honra. O ministro disse, ainda, que os avanços na legislação no combate à violência contra a mulher, como a Lei Maria da Penha e a tipificação do feminicídio não podem ser desconsiderados pela interpretação sem limites da formulação de quesitos genéricos.
“É parte da missão constitucional deste Tribunal honrar a luta pela afirmação histórica dos direitos das minorias, não se podendo permitir que, a pretexto de interpretar o direito democrático da cláusula do Júri, sejam revigoradas manifestações discriminatórias.”
Para o ministro, ainda que fundada em eventual clemência, a decisão do Júri não pode implicar a concessão de perdão a crimes que nem mesmo o Congresso Nacional teria competência para perdoar, e o homicídio qualificado é considerado crime hediondo.
Fachin disse, ainda, que havendo um mínimo lastro probatório, mesmo que haja divergência entre as provas, deve prevalecer a decisão do Júri. Por outro lado, o ministro explicou que, se não houver indícios que justifiquem suficientemente a absolvição, pode o tribunal, provendo recurso da acusação, determinar a realização de novo Júri, "sob pena de transformar a participação democrática do júri em juízo caprichoso, arbitrário de uma sociedade que ainda é machista e racista".
O ministro votou por conceder a cautelar em maior extensão e conferir interpretação conforme ao art. 483, III, §2º, do Código de Processo Penal, para excluir a interpretação do quesito genérico que implique a repristinação da odiosa figura da legítima defesa da honra, de modo que a decisão do tribunal de Justiça que a anula é compatível com a garantia da soberania dos vereditos do Tribunal do Júri.
Relator
Em decisão cautelar, o relator, ministro Dias Toffoli, afirmou que a tese da legítima defesa da honra constitui recurso argumentativo e retórico "odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil".
O relator havia proposto que a limitação argumentativa da tese de legítima defesa da honra se aplicasse apenas à defesa. Após o voto do ministro Gilmar Mendes sugerindo que seja aplicável a todas as partes processuais, o relator aderiu à proposta. As teses após a alteração de Toffoli foram:
"i - firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero;
ii - conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência,
"iii - obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento."
Relações patriarcalistas
O ministro Gilmar Mendes destacou em seu voto que, "sem dúvidas, vivemos em uma sociedade marcada por relações patriarcalistas, que tenta justificar com os argumentos mais absurdos e inadmissíveis as agressões e as mortes de mulheres, cis ou trans, em casos de violência doméstica e de gênero".
Gilmar Mendes esclareceu que neste cenário, a tese de legítima defesa da honra aflora nas discussões e em alguns casos de julgamentos por jurados para justificar, manifestamente de modo absurdo e inadmissível, atos aberrantes de homens que se sentem traídos e se julgam legitimados a defender sua honra ao agredir, matar e abusar de outras pessoas.
- Processo: ADPF 779