Quem morou no Distrito do Jardim Ângela, bairro da zona sul da cidade de SP, no ano de 1996, viveu uma dura realidade. Realidade constatada, até mesmo, pela ONU: a região foi eleita a mais perigosa do planeta, registrando a taxa anual de 116,23 assassinatos para cada 100 mil habitantes.
Muito do que contribuiu para o alto índice de violência na região, segundo se dizia, era a facilidade com que os cidadãos brasileiros tinham em comprar uma arma. Sem muita burocracia, as pessoas com mais de 21 anos poderiam se dirigir a lojas de artigos esportivos e adquirir pistolas e revólveres, os quais estavam expostos nas prateleiras.
No ano seguinte ao desditoso título de possuir no país a região mais violenta do mundo, em 1997 o Brasil passou a controlar o acesso às armas. O Congresso aprovou e o então presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a lei 9.437/97, que instituiu o Sinarm - Sistema Nacional de Armas como o responsável pelo controle de armas de fogo em poder da população.
Todavia, mesmo com maior controle pelo Sinarm, os índices de violência no Brasil não pararam de aumentar. Por isso, quatro anos mais tarde, em 2003, veio uma nova legislação, que, aí sim, restringiu o acesso às armas. Trata-se do "Estatuto do Desarmamento". Na época, o presidente era Lula, que prometou "fechar o cerco" em torno dos traficantes de armas, salientando que a violência no país "constrangia" nossa imagem no exterior.
E o que diz o tão questionado Estuto do Desarmamento? Vejamos:
Do Estatuto do desarmamento ao refendo
Dois anos depois da publicação do Estatuto do Desarmamento, em 2005, a população foi perguntada, por meio de referendo, se concordava ou não com a restrição de armas imposta pela norma. Nessa consulta popular, mais de 63% dos cidadãos disseram "não". Ou seja, foram contrárias aos termos do Estatuto e, portanto, favoráveis à comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional. “Por um Brasil com armas” – Esta era a manchete que estampava a edição do jornal O Globo no dia 24 de outubro de 2005, quando se anunicou o resultado do referendo.
Com o resultado do referendo, os jornais também anunciavam quem ganhava e quem perdia. Do lado “vitorioso”, a bancada da bala, a indústria de armas, os colecionadores e atiradores profissionais. Do lado “perdedor”, o presidente da República, ONGs, artistas e as igrejas, que, naquela época, defendiam o discurso contra armas.
"Faz arminha com a mão"
O que era um anseio popular em 2005 chegou ao poder em 2019, com a posse de Jair Bolsonaro. E, de fato, ninguém foi enganado nas eleições, pois o presidente sempre se mostrou simpático ao uso das armas, para dizer o mínimo. E as promessas de campanha têm sido cumpridas.
Com pouco mais da metade do mandato presidencial, Bolsonaro já realizou diversas alterações no Estatuto do Desarmamento.
Vejamos:
- Flexibilizou os procedimentos para o posse de armas - Logo no primeiro mês de seu mandato, Bolsonaro aumentou do prazo de validade dos registros de armas de fogo de uso permitido; aumentou do prazo de validade dos registros de armas de fogo de uso restrito e; previu a renovação automática da validade dos certificados expedidos até a data da sua publicação.
- Ampliou a lista de profissões que estão autorizadas a possuírem armas, incluindo a profissão do advogado como de risco.
- Permitiu a posse de arma para toda a propriedade rural. Antes da alteração, a posse de arma era permitida apenas na sede da propriedade rural. Alterou-se o Estatuto do Desarmamento para determinar que, em área rural, considera-se residência ou domicílio toda a extensão do respectivo imóvel.
- Assinou ato que zerou imposto de importação de armas. Antes da mudança, a alíquota era fixada em 20%. A dedução estimada dos preços dessas armas poderia chegar a 40% do preço atual, o que poderia acarretar maior número de armas de fogo em circulação. A disposição, no entanto, foi suspensa por ordem do ministro Fachin e agora está sub judice.
Aliás, todos os mencionados decretos de Bolsonaro estão judicializados por provocação de partidos políticos - ADIns 6.134, 6.119, 6139; ADPFs 581 e 586. Mas, vamos e venhamos, estão compatíveis com o discurso que o elegeu.
E a mais recente, e provavelmente mais polêmica das modificações, aconteceu na última semana, em edição extra do DOU (em plena sexta-feira de carnaval), com um pacote de quatro decretos que versam sobre registro de armas, compra de munições e armamento para os CACs - Colecionadores, Atiradores e Caçadores. Com este último pacotão, atira-se para valer (ou para matar) no Estatuto do Desarmamento.
Antes de esmiuçarmos as novas disposições, há conceitos que precisam estar claros. São eles:
Porte: O porte de arma de fogo consiste em transitar com o dispositivo, mantendo-a em um ambiente que não seja a residência ou local de trabalho.
Posse: A arma de fogo só pode ser mantida no interior de residência ou em local de trabalho.
Arma de fogo de uso restrito: aquela de uso exclusivo das Forças Armadas, de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exército, de acordo com legislação específica.
Arma de fogo de uso permitido: aquela cuja utilização é autorizada a pessoas físicas, bem como a pessoas jurídicas, de acordo com as normas do Comando do Exército.
Analisemos agora as principais mudanças operados pelo presidente nos decretos momescos de 2021:
Os decretos assinados por Bolsonaro trazem significativas mudanças para quem deseja ter uma arma ou para quem já a tem. A norma abranda o rigor para o acesso e registro do armamento. Na língua do governo Federal, as normas "desburocratizam os procedimentos". Confira:
Confira aqui a íntegra dos novos decretos:
Os decretos de Bolsonaro provocaram uma onda de reação no Congresso. Se por um lado o presidente da Câmara, Arthur Lira, afirma que Bolsonaro não invadiu competência do Legislativo com decretos sobre armas, os partidos progressistas do parlamento protocolaram os PDLs – Projetos de Decretos Legislativos contra os atos presidenciais. Eles alegam que tais disposições só poderiam ser apreciadas pelo Congresso, já que provoca alterações na lei maior sobre o tema, que é o Estatuto do Desarmamento. Atualmente, existem 15 propostas para anular as novas disposições feitas.
Os decretos já foram judicializados. Vários partidos (PSB, Rede Sustentabilidade, PT e PSOL) acionaram o STF pedindo a suspensão das normas. Migalhas conversou com o deputado Federal Alessandro Molon, do PSB, para entender os questionamentos. Para o parlamentar, o momento pede por investimentos na saúde e não em armas.
Abolitio criminis?
O novo decreto de Bolsonaro estabelece "qualquer itinerário" o trajeto no qual a arma pode ser levada de forma municiada entre o local de guarda autorizado e os clubes de treinamento.
Perguntamos à criminalista Marina Pinhão Coelho Araújo, presidente do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, se essa nova disposição poderia gerar o "abolitio criminis" para pessoas que pegas anteriormente por portar arma em locais proibidos. Para a especialista, esta resposta é negativa, ou seja, não há o "abolitio criminis".
A nova disposição, segundo Marina, não significa a autorização para a pessoa fazer diversas paradas."Itinerário significa de um lugar para o outro, então, ele tem que estar no caminho", explicou.
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**Fonte: Desarmamento no Brasil: Lei 9.437/97 x Lei 10.826/03; in Revista Brasileira de Criminalística. (Márcio Santos Aleixo e Guilherme Antônio Behr). Clique aqui para ver a íntegra do artigo.