A juíza de Direito Adriana Sucena Monteiro Jara Moura, do Rio de Janeiro, negou liminar requerida pela Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura de suspensão do filme do Porta dos Fundos - o especial de Natal “A Primeira Tentação de Cristo", exibido pela Netflix.
A associação ajuizou a ACP alegando que “a honra e a dignidade de milhões de católicos foram gravemente vilipendiada pelos réus”, com a produção e exibição do filme, onde "Jesus é retratado como um homossexual pueril, Maria como uma adúltera desbocada e José como um idiota traído".
Ponderação entre princípios
A magistrada, ao negar a liminar, lembrou que o grupo Porta dos Fundos é um grupo de humor, muitas vezes escrachado, “reconhecido em âmbito nacional e mesmo internacional e que em diversas de suas produções opta por fazer sátiras e críticas a temas sensíveis da sociedade moderna, como religião, homossexualidade, racismo, política e outros”.
Explicou a julgadora que na controvérsia está, de um lado, o direito à liberdade de expressão artística enquanto corolário da liberdade de expressão e pensamento e de outro a liberdade religiosa e a proteção aos locais de culto e as suas liturgias, consubstanciadas no sentimento religioso.
Citando julgados do STF, a juíza pondera que tanto o sentimento religioso, como a liberdade de expressão artística merecem a tutela do Judiciário quando este é chamado a intervir, mas que não é estabelecido previamente o caráter absoluto de qualquer um deles ou a preponderância de um sobre o outro de forma abstrata. E, portanto, cabe analisar o filme em si, o meio em que este é exibido e o alcance de sua veiculação, a fim de averiguar se houve ou não abuso da liberdade de expressão e do direito de sátira e crítica.
“Assim, no exercício do juízo de ponderação entre caros princípios, direitos constitucionais como os que se confrontam neste feito e na linha do entendimento jurisprudencial ao qual me filio, entendo que somente deva ser proibida a exibição, publicação ou circulação de conteúdo, em verdadeira censura, que possa caracterizar ilícito, incitando a violência, a discriminação, a violação de direitos humanos, em discurso de ódio.”
Na avaliação de Adriana Moura, diante do confronto entre direitos igualmente protegidos pelo ordenamento constitucional, há que se assegurar que a preponderância de um direito sobre o outro não sirva de salvaguarda para práticas ilícitas.
“Assim, entendo, enquanto não haja decisão diversa do STF em sede de Repercussão Geral, que somente possa haver a proibição da publicação, circulação e exibição de conteúdos de manifestações artísticas, filmes e livros pelo Judiciário quando houver a prática de ilícito, incitação à violência, discriminação e violação de direitos humanos nos chamados discursos de ódio.”
Liberdade de expressão
Na longa decisão, a magistrada diz que compreende que algumas pessoas são mais permeáveis ao riso e ao humor que outras, sem que isto possa significar falta de caráter, falta de inteligência ou mesmo de cultura, como alguns possam aventar.
“Ao assistir ao filme podemos achar que o mesmo não tem graça, que se vale de humor de mau gosto, utilizando-se de expressões grosseiras relacionadas a símbolos religiosos. O propósito de muitas cenas e termos chulos podem ser questionados e considerados desnecessários, mesmo dentro do contexto artístico criado com a paródia satírica religiosa. Contudo, há que se ressaltar que o juiz não é crítico de arte e, conforme já restou assente em nossa jurisprudência, não cabe ao Judiciário julgar a qualidade do humor, da sátira, posto que matéria estranha às suas atribuições.”
Além de não verificar no filme do Porta dos Fundos qualquer ocorrência de ilícito, a juíza tampouco encontrou violação a direitos humanos, incitação ao ódio, discriminação ou racismo.
“Ademais, também considero como elemento essencial na presente decisão que o filme controverso está sendo disponibilizado para exibição na plataforma de streaming da ré Netflix, para os seus assinantes. Ou seja, não se trata de exibição em local público e de imagens que alcancem àqueles que não desejam ver o seu conteúdo. Não há exposição a seu conteúdo a não ser por opção daqueles que desejam vê-lo. Resta assim assegurada a plena liberdade de escolha de cada um de assistir ou não ao filme e mesmo de permanecer ou não como assinante.”
Dessa forma, a magistrada negou a pretensão de se proibir o especial de Natal “A Primeira Tentação de Cristo".
- Processo: 0332259-06.2019.8.19.0001
Veja a decisão.