Móveis coloridos, livros infantis, brinquedos e um relógio com flor no fundo. As características poderiam facilmente descrever um quarto de criança, mas, na verdade, descrevem uma sala especial para colher depoimentos de crianças ou adolescentes vítimas de violência.
A sala lúdica faz parte da VECCA - Vara Especializada em Crimes Contra a Criança e o Adolescente, em Belo Horizonte. Recentemente, a iniciativa completou um ano de existência mostrando que tratar de forma especializada este tipo de crime desafoga as demais varas e, principalmente, evita mais sofrimento para criança.
Segundo o Atlas da Violência de 2018, mais da metade de crimes de estupro cometidos em 2016 foram praticados contra pessoas menores de 13 anos de idade. Ao mesmo tempo, entre 2011 a 2017 foram notificados no SINAN - Sistema de Informação de Agravos de Notificação mais de um milhão de casos de violência interpessoal ou autoprovocada. Desse total, foram registradas 219.717 notificações de violência contra crianças e 372.014 notificações de violência contra adolescentes.
A juíza titular da VECCA, Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, afirma que esses números "assombrosos" são apenas a ponta do iceberg, pois a subnotificação é muito maior do que se espera, já que a maioria dos crimes ocorre em ambiente familiar.
A magistrada explica que antes da criação da vara especializada, os feitos que tratavam de violência praticada contra crianças e adolescentes em Belo Horizonte eram distribuídos às diversas varas criminais. No entanto, nem sempre era possível dar celeridade aos casos, diante da própria complexidade inerente ao tema, de extrema delicadeza.
“O surgimento da VECCA não busca apenas desafogar as demais varas, mas principalmente dar guarida integral ao nosso jurisdicionado menor de idade, que não raro se sentia desamparado pela própria justiça por não ter a sua situação resolvida de modo rápido, eficiente e ausente de revitimização.”
Métodos
Diferente do método tradicional, em que diversas pessoas presenciam o relato da vítima e são expostas a perguntas difíceis - tornando a situação mais constrangedora para o depoente - apenas uma pessoa acompanha a fala da criança ou do adolescente. Assim, as vítimas não veem discussões que ocorrem dentro da sala e nem passam por perguntas inapropriadas.
Tudo é pensado em favor da criança e do adolescente. A juíza esclarece que, quando o menor é intimado para comparecer à audiência de instrução e julgamento, o oficial de Justiça lhe apresenta uma cartilha explicativa, no formato de gibi infantil, contendo ilustrações que tratam acerca do que ocorrerá em juízo, de modo a facilitar seu entendimento e reduzir seu estranhamento.
Marixa explica a importância desse gibi:
“Percebo que os menores que leem o gibi na companhia de seu representante legal comparecem à VECCA menos temerosos, o que demonstra a necessidade de que sejam eles amparados por pessoa que visa ao seu crescimento e desenvolvimento pessoal. Há uma diferença em relação àqueles que não dão tanta atenção à cartilha: muitas vezes, a criança, num primeiro contato, se mostra um pouco arredia, envergonhada ou ansiosa. Mas ela é recebida por uma de nossas Psicólogas ou Assistente Social, que imediatamente a acolhe.”
Psicóloga e assistente social
De acordo com a psicóloga Judicial Ana Flávia Ferreira de Almeida Santana, o tratamento diferenciado para as crianças e adolescentes faz toda diferença:
“Quando falamos de crianças e adolescentes estamos falando de sujeitos em situação peculiar de desenvolvimento. Desta forma, compreender as capacidades, as vulnerabilidades e as condições da criança no momento do seu testemunho, torna-se de fundamental importância.”
Ana Flávia Santana explica que o processo de acolhida, técnicas adequadas de abordagem e de entrevista, ambientes adequados, bem como a condução coerente com as habilidades e dificuldades das crianças e adolescentes, proporcionam melhores condições para a garantia da proteção e da prevenção da violação dos direitos destes sujeitos.
Ela destaca que o sistema de Justiça é voltado, quase exclusivamente, para o mundo dos adultos e que são raros os procedimentos que levam em consideração as particularidades apresentadas por crianças e adolescentes. “Além disto, percebo que os operadores do Direito quase não entram em contato com questões da infância e juventude durante a formação universitária”, completa.
A psicóloga diz que percebe que questões que envolvem crianças e adolescentes “incomodam”, de alguma maneira, por trazer à tona questões relacionadas com vivências traumáticas e/ ou de difícil trato do passado dos profissionais, que precisam lidar com problema do outro sem ter conseguido antes solucionar os próprios problemas.
Desafios
A titular da VECCA conta que um dos desafios na luta contra os crimes contra crianças e adolescentes é a informação. Ela relata que os menores “entenderam que o que estava acontecendo com eles não era correto” porque viram alguma propaganda na televisão ou na internet, ou assistiram a alguma palestra na escola, que tratava sobre abuso sexual e violência doméstica.
“É preciso levar a informação à criança e ao adolescente de modo responsável, em uma linguagem que lhes seja acessível e sem parecer uma obrigação tediosa, mas sim transmitido com zelo. Faz-se extremamente necessário capacitar todos os profissionais que cuidam desses indivíduos, para que possam identificar situações de abuso e tomar as medidas cabíveis, atribuindo-lhes conhecimento específico sobre a condição peculiar das pessoas em desenvolvimento.”
Já a psicóloga Ana Flávia Santana ressalta a necessidade de se trabalhar de forma interdisciplinar e em conjunto com toda a rede de atendimento e proteção da criança e do adolescente. Ela diz que percebe que as leis que regulamentam questões relacionadas à infância não abarcam soluções para os problemas apresentados pela sociedade e não funcionam sem a parceria do Executivo.
“Resguardar os direitos das crianças e adolescentes no contexto sociocultural em que vivemos não é tarefa fácil. Garantir a proteção, sem o respaldo de políticas públicas eficientes, torna-se tarefa quase impossível.”