Migalhas Quentes

Confidências, Pudim e Filatelia

3/4/2006


Confidências, Pudim e Filatelia

Confira abaixo a filosófica crônica "Confidências, Pudim e Filatelia", elaborada pelo migalheiro advogado Helio Silva.
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Confidências, Pudim e Filatelia


As traições do amor doem, as do vernáculo também. . .


Linda, simplesmente. Seu sorriso, na cintilação daqueles olhos verdes, é o próprio sol em manhã de primavera. São muitos os que a cortejam, nenhum ao qual ela dispense atenção maior além da mera delicadeza. Entre as tantas paixões que desperta, a mais intensa deve ser a de Toninho, sempre falante, capaz de dialogar com as paredes e arrancar ousados testemunhos do silêncio fundido na alvenaria. Mas, a segurança de Toninho vai embora quando, colocado à frente da musa a quem dedica versos secretos, sente o chão fugir-lhe dos pés, emudece, quase não consegue respirar e seu coração bate descompassado.


Ela parece perceber essas manifestações. Tanto que, com a leveza da pluma ao vento, afasta-se rápida e graciosa. Parece dizer ao admirador que busque outra, não ela, inatingível e a própria impossibilidade a enlouquecer Toninho que, afinal, consola-se com a olímpica indiferença também dispensada a outros ardorosos pretendentes, uma galeria, tantos e todos.


Vírgula, não todos! Tem o amigo número um de Toninho, a quem ela fez de confidente e com esse conversa sobre temas variados, desde as queixas contra o professor de matemática ao filme do fim-de-semana. Mera questão de afinidade! Ambos tem dificuldades enormes com a Álgebra, ambos adoram cinema. Ambos têm as mesmas preferências em um sem número de situações, coisas, fatos, rotina, do gosto musical à aversão por pudim. Pudim? Pois é. Nem acham, os dois, que pudim engorda, é o cheiro de ovo, dizem ambos . . .


Para manter viva sua esperança, Toninho conta com os dotes de sua irmã, um furacão calabrês capaz de enxugar o sono e ocupar o pensamento do mancebo mais contido e que, graças, é a namorada do amigo número um. Toninho tranquiliza-se. Confia na capacidade de convencimento de sua irmã e na dupla fidelidade do amigo, à irmã e a ele.


Tanto confia que incumbiu ao amigo a tarefa de levar à musa a notícia da avassaladora paixão em que se consome, com a recomendação expressa de que tudo deverá ser feito da forma menos comprometedora possível, pois que Toninho, embora perdidamente apaixonado, nunca foi rejeitado nas tantas conquistas a que se dispôs.


E, eis que estão ali, frente a frente os dois, o amigo número um e ela, aqueles olhos verdes refletindo esmeraldas e o confidente engolfado em tão ofuscante luz. Ela, costumeiramente linda, num gesto breve ajeita com a mão pequena a gola da camisa do amigo, fazendo-lhe uma observação qualquer a que ele, absorto, não dá a menor atenção. Pela primeira vez, o confidente perturba-se com presença que sempre lhe pareceu tão plácida, mas agora inquietante. Considera por um instante furtivo a possibilidade de que a figura diáfana . . . “Que bobagem, que pensamento canalha”, conjetura.


Concentra-se em atender ao dramático apelo de Toninho e diz em voz firme a frase que tanto ensaiara: “preciso falar-lhe acerca de você”. Tragédia! A frase não tem a comunicação e a naturalidade dos diálogos entre confidentes, é complicada, soa mecânica e incompreensível, é mal feita. Instante seguinte, uma sombra tolda o semblante da musa: “Cerca? A cerca de quem?” É demais! A conversa fica inviável e está chegando aquele admirador que coleciona selos. Ah! Uma única dissidência entre a musa e o confidente: os selos. O amigo de Toninho não conhece nada de filatelia e nem mesmo sabe direito o que significa essa palavra.
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