"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados". Vladimir Herzog
Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, receberá na próxima sexta-feira o atestado de óbito do jornalista, corrigido por determinação da Justiça. Em vez de "suicídio", o documento dirá que a morte "decorreu de lesões e maus tratos sofridos em dependência do 2º Exército de SP".
Dona Zora, mãe de Herzog (à esquerda), e Clarice abraçada com os filhos Ivan (à direita) e André no dia do velório.
História
Foi em outubro de 1975 que Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, se apresentou no DOI-CODI - Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, imaginando que seria ouvido, responderia sobre a suspeita de pertencer ao PCB e voltaria para casa a tempo de almoçar com a esposa, Clarice. Era um sábado, e no início da noite o comando do então II Exército anunciou que Vladimir Herzog se enforcara em uma das celas do DOI-CODI.
Na sexta-feira, 24 de outubro de 1975, Vlado havia sido intimado a depor por dois agentes da polícia, que tinham ordem de levá-lo naquela mesma noite para o DOI-CODI. Ele já esperava ser preso, pois colegas seus de trabalho estavam detidos por participarem de discussões políticas organizadas em sua casa. Enquanto os dois agentes conversavam com ele, Paulo Nunes, jornalista da emissora que cobria a área militar, ligou para o coronel José Barros Paes, chefe da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército. Pediu que Vlado pudesse se apresentar no dia seguinte pela manhã. Ficou acertada a apresentação dele às 8h do sábado. Vlado despediu-se confiante dos colegas do Canal 2: “Amanhã vou até lá, presto um depoimento e pronto. Não tenho nada a esconder.”
No dia seguinte, ele seria amarrado pelos braços, pés e tronco; encapuzado para não poder identificar seus algozes, foi torturado em sessões de choques elétricos.
Jornalista de alma e coraçãoVlado começou sua carreira de jornalista em 1959 como repórter de O Estado de S. Paulo, logo depois de se formar em Filosofia na USP. Ali ficou até 1965, tendo sido um dos repórteres destacados para a equipe pioneira que foi instalar a sucursal do Estado em Brasília, nos primeiros meses de vida da nova Capital. Exerceu também as funções de redator e, interinamente, de chefe de reportagem do jornal.
Na televisão entrou em 1963, acumulando com o trabalho de jornal, como redator e secretário do "Show de Notícias", o telejornal diário do antigo Canal 9 de São Paulo,TV-Excelsior. Essa experiência que o colocou em contato pela primeira vez com o telejornalismo foi a base para o passo seguinte de sua carreira. Em 1965, Vlado foi para Londres, contratado pelo Serviço Brasileiro da BBC, como produtor e locutor, prestando colaboração também ao Departamento de Cinema e TV do Central Office of Information, órgão do Foreign Office, na produção e apresentação de programas sobre a Inglaterra, para a televisão brasileira.
Foi ainda durante sua estada em Londres - onde nasceram seus dois filhos, Ivo e André – que Vlado aprimorou seus conhecimentos de televisão e cinema, cursando, como bolsista indicado pela Secretaria da Educação de São Paulo, o Film and Television Course for Overseas Students, no Centro de Televisão da BBC.
O rigor e o zelo profissional que exigia dos outros, Vlado tinha também no seu próprio trabalho: em 1971, quando o ministro da Educação, Jarbas Passarinho, ironizava dizendo que "antes, qualquer prefeito se satisfazia com um chafariz novo na praça; agora, todos querem uma TV educativa", Vlado fez uma matéria de capa para a revista Visão - o estudo jornalístico mais completo que se fez até hoje sobre o problema no Brasil. Levou quatro meses esmiuçando livros, acompanhando experiências em vários Estados, assistindo TV toda noite, fazendo entrevistas e, finalmente, escrevendo a matéria.
A mesma seriedade profissional ele levou para a TV Cultura em 1972, quando for chamado para secretariar o recém-lançado telejornal "Hora da Notícia” e, ainda, para a Fundação Armando Álvares Penteado, onde deu aulas de telejornalismo na mesma época, e para a Escola de Comunicações e Artes da USP, onde era professor desde o último semestre.
Na TV Cultura, para onde tinha retornado em setembro, agora como diretor do Departamento de Telejornalismo, Vlado anteviu, finalmente, a possibilidade de comandar um trabalho dentro do conceito que tinha da grande responsabilidade social do jornalismo na TV. Não lhe deram tempo.
A confissãoSubmetido a novos choques elétricos depois de ter se recusado a confirmar o que os investigadores queriam ouvir, Vlado acabou por admitir finalmente que todo mês dava uma quantia em dinheiro para o PCB e que recebera três vezes exemplares do Jornal Voz Operária.
Do lado de fora da estreita sala, no térreo do prédio do DOI-CODI, os jornalistas Rodolfo Konder e Duque Estrada podiam ouvir os berros de dor do colega.
Garncieri, o principal carrasco, continuou a sessão de pancadas, até que Vlado não suportou mais e decidiu escrever um depoimento de próprio punho, como era de praxe no DOI-CODI, admitindo ser militante do PCB:
“Eu, Vladimir Herzog, admito ser militante do PCB desde 1971 ou 1972, tendo sido aliciado por Rodolfo Konder”.
Uma vez assinado o documento, num gesto de indignação Vlado rasgou o papel em pedacinhos. Daí em diante foi torturado até não agüentar mais. Eram quase 5 da tarde quando ele sucumbiu de vez às torturas.
Despedida
Paulo Nunes dormiu na casa do Herzog na véspera da ida dele para o DOI-CODI. Nunes acompanhou Vlado até o bairro Paraíso, onde ficava o prédio do Destacamento. Fez isso a pedido de Rui Nogueira, diretor do Canal 2, e de Clarice Herzog, mulher de Vlado.
Às 6h30 da manhã, Vlado acordou. Levantou-se, fez a barba, tomou banho e depois deu um beijo na mulher que ainda estava deitada. Parecia calmo.
Clarice quis se levantar para fazer o café, mas ele não deixou. Os dois se despediram sem imaginar que o faziam pela última vez.
No caminho, Vlado, que era judeu, contou para Nunes histórias de torturas e perseguições nazistas vividos por sua família na Europa.
No DOI-CODI, Herzog e Nunes foram recebidos por um guarda que exigiu os documentos de identidade. Pelo interfone, o guarda conversou com alguém e em seguida avisou apontando para o Herzog: “Você fica e você vai”. Eram 8h e a partir daquele momento ele teria de prosseguir sozinho.
Às 10 horas, Nunes telefonou para o coronel Paes e avisou que Herzog já estava no DOI. Na conversa, Paes afirmou que ele não era importante para a investigação. E para não interromper o trabalho no Canal 2, seria liberado provavelmente naquele mesmo dia tão logo fosse ouvido.
Nunes ligou às 3h da tarde para Clarice e deu a notícia que mais tarde não se confirmaria: “Seu marido está bem e deve retornar antes do anoitecer”.
Notícia
Passava das 5h30 da tarde de sábado, 25 de outubro de 1975. Clarice, mulher de Herzog, perdera a esperança de ter o marido de volta naquele dia. Ela havia esperado até perto das 6 da tarde para contar à sogra, dona Zora, sobre a prisão do filho. Achava que seria melhor para a sogra ouvir a notícia da boca dele, quando já estivesse solto.
Às 6 da tarde ela contou a dona Zora que Herzog tinha ido depor no DOI. Tentou suavizar a notícia. Explicou que ele havia sido intimado na sexta e autorizado a se apresentar só no dia seguinte. Que esse tipo de regalia não era comum e que muitos outros jornalistas amigos dele também estavam presos.
Dona Zora balançou a cabeça discordando e profetizou:
– Vão matar o Vlado.
Herzog era ou único filho de dona Zora. Mãe judia e viúva há três anos, ela viu parte de sua família ser exterminada pelos nazistas. Quando Herzog tinha seis anos, ela e o marido fugiram da Iugoslávia para a Itália e depois para o Brasil.
A notícia de que o filho estava preso reavivou antigas e amargas lembranças dela. Dona Zora farejou a morte.
Às 10 horas da noite do dia 25 de outubro de 1975, o diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e amigo pessoal de Herzog, Fernado Pacheco Jordão, recebeu uma ligação estranha.
Era uma companheira de profissão da Rede Globo querendo marcar um encontro para tratar de um assunto urgente em um bar na Praça da República, em São Paulo. Ele não levou a sério e respondeu que estava ocupado.
Menos de dez minutos depois, ligou Hélio Oliveira, editor-chefe do Jornal Nacional.
– ‘Fernando, uma notícia triste para lhe dar, o Vlado morreu. O Lang (jornalista da Rede Globo que cobria a área militar) ligou agora há pouco e disse que o II Exército está preparando uma nota oficial dizendo que o Vlado se suicidou.” Pacheco Jordão perdeu a voz por alguns segundos.
A notícia se espalha
Às 23h do dia 25 de outubro de 1975, tocou a campainha na casa de Herzog. Era o diretor da TV Cultura, Rui Nogueira. Clarice, mulher de Herzog, havia telefonado para ele duas horas antes e ele lhe dissera que precisava vê-la naquela noite.
Nogueira estava acompanhado de Armando Figueiredo, assessor de imprensa da Secretaria de Cultura, e de mais quatro homens que Clarice não conhecia.
– Olha, as coisas se complicaram – disse Nogueira sem levantar o tom da voz, assim como quem se prepara para dar uma má notícia.
– Ccomo assim se complicaram? – perguntou Clarice, nervosa.
Amando Figueiredo olhou para Nogueira que estava visivelmente constrangido. Queria dar a notícia, mas só conseguia repetir que as coisas haviam se complicado.
Foi então que Clarice desconfiou do que acontecera.
– Mataram o Vlado. Eles mataram o Vlado – gritou.
A campainha tocou novamente. Era Fátima, mulher de Fernando Pacheco Jordão. Ele já sabia da morte e havia alertado a mulher para procurar Clarice.
Chorando muito, Clarice informou à amiga sobre a morte do marido.
– Eles mataram o Vlado – repetiu. E era tudo o que ela conseguia dizer.
Versões
Da nota oficial distribuída pelo comando do II Exército na manhã do dia 26 de outubro de 1975:
“Cerca das 16 horas, ao ser procurado na sala onde fora deixado desacompanhado, (Herzog) foi encontrado morto, enforcado tendo para tanto utilizado uma tira de pano. (...) As atitudes do senhor Vladimir Herzog, desde a sua chegada ao órgão do II Exército, não faziam supor o gesto extremo por ele tomado”.
Cinco dias após a morte de Herzog, a mídia foi obrigada a divulgar uma nota elaborada pelo SNI - Serviço Nacional de Informação - o órgão de espionagem do regime criado pelo general Golbery do Couto e Silva, então ministro da Casa Civil do presidente Ernesto Geisel.
A nota sustentava a tese de suicídio. Por ordem do SNI, foi divulgada sem que se indicasse o seu caráter oficial, e sem que se pudesse dizer quem a elaborara. Foi para funcionar, digamos, como uma espécie de editorial dos veículos de comunicação, para que as pessoas pensassem que era a opinião deles.
“É por todos os motivos, profundamente lamentável o suicídio do jornalista Vladimir Herzog. Sua morte ocorre no contexto da crescente atividade desenvolvida pelo comunismo no Brasil, com sua ação de infiltração e de proselitismo.
As chamadas “prisões em massa” constituem parte da técnica desenvolvida pelas organizações comunistas para neutralizar ou impedir a ação dos órgãos de segurança. Não há “prisões em massa”, e sim prisões legais, para identificar e aprofundar os dados disponíveis sobre a ação comunista.
Situam-se dentro do quadro de combate a subversão, que motivou a nota circular do Ministério da Justiça.”
Nota oficial do Sindicato do Jornalista de São Paulo em resposta ao comunicado do II Exército sobre a morte de Herzog:
“O Sindicato dos Jornalistas, que ainda aguarda esclarecimentos necessários e completos, denuncia e reclama das autoridades um fim a esta situação, em que jornalistas profissionais, no pleno, claro e público exercício de sua profissão, cidadãos com trabalho regular e residência conhecida, permanecem sujeitos ao arbítrio de órgãos de segurança que os levam de suas casas ou de seus locais de trabalho, sempre a pretexto de que irão apenas prestar depoimento, e os mantêm presos, incomunicáveis, sem assistência da família e sem assistência jurídica, por vários dias e até por várias semanas, em flagrante desrespeito à lei.
Trata-se de uma situação, pelas peculiaridades, capaz de conduzir a desfechos trágicos, como a morte do jornalista Vladimir Herzog, que se apresentara espontaneamente para um depoimento”.
A nota foi assinada pelo jornalista Audálio Dantas, presidente do sindicato. Mais de 300 pessoas participaram da primeira reunião promovida pelo sindicato logo após o anúncio da morte de Herozg. Elas estavam tristes, indignadas e com medo.
Ninguém acreditava na versão oficial de que Herzog havia se suicidado. Mas ainda não dera tempo de surgirem as evidências de que ele de fato fora torturado e morto.
O primeiro gesto daquelas pessoas foi o de aprovar a proposta de batisar com o nome de Vladimir Herzog o auditório onde acontecia a reunião. Depois, o jornalista David de Morais sugeriu a realização de um ato religioso ecumênico em memória de Herzog.
O ato serviria para marcar o sétimo dia da morte do jornalista.
Despedida - II
Goffredo da Silva Telles Jr, professor de Direito da USP (esquerda) e Dom Paulo Evaristo Arns, então Cardeal Arcebispo de São Paulo (centro) compareceram ao velório de Herzog no Hospital Albert Einstein.
Quem cuidou do enterro de Herzog foi a mãe dele, dona Zora. Ele era judeu e sua mulher, católica. A pedido de Clarice, a cerimônia foi marcada para a segunda-feira, 27 de outubro, ao invés do domingo, dia seguinte à morte, como desejavam os militares. Era para dar tempo de avisar às pessoas.
O corpo foi velado no Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Seguindo as tradições judaicas, foi feito o serviço de Tahara (lavagem do corpo) numa sala do necrotério do hospital.
Clarice, nesse dia ainda, tentou fazer uma necrópsia do corpo do marido antes da Tahara. Mas ela precisava que três médicos assinassem o exame para ter alguma validade jurídica – e apenas um havia se disposto a assinar. A necrópsia poderia constatar as marcas da tortura.
Herzog foi enterrado no túmulo 64 da quadra 28 do Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo, ao som dos cantos do músico judeu Paul Novak e do barulho das sirenes dos carros dos órgãos de repressão do regime. Quase 600 pessoas, entre jornalistas, estudantes, artistas e parlamentares testemunharam o enterro.
A Congregação Israelita foi pressionada para enterrar Herzog o mais rápido possível. A pressa foi tanta que quando Dona Zora, mãe do jornalista, chegou ao cemitério o caixão já estava sendo coberto por terra.
Um ritual de enterro judaico costuma durar 2 horas em média. O de Herzog não durou 15 minutos. Clarice ficou revoltada.
A cerimônia foi marcada pela incerteza se o túmulo estava em local reservado para suicidas. O rabino-mor Fritz Pinkuss informou depois que o corpo de Herzog fora enterrado em área reservada para suicidas.
Na semana seguinte, em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, o rabino Henri Sobel, que estava no Brasil há 5 anos, desmentiu a informação e garantiu que a quadra 28 do Cemitério Israelita era reservado a pessoas que tiveram morte natural.
Inquérito
No dia 30 de outubro, o general Ednardo d`Ávila Mello, comandante do II Exército, mandou instaurar um Inquérito Policial-Militar (IPM) para apurar “as circunstâncias em que ocorreu o suicídio do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do Destacamento de Operações de Informações do centro de Operações de Defesa Interna do II Exército”.
O IPM deixou claro o objetivo do regime de responsabilizar Herzog por sua própria morte. Ele poderia ter sido aberto para apurar “as circunstâncias em que ocorreu a morte do jornalista”. Mas, não: foi aberto para apurar “as circunstâncias em que ocorreu o suicídio” de Herzog. O regime não era nada sutil e não se preocupava em ser. Tinha a força das armas ao seu lado.
Na sexta-feira 19 de dezembro de 1975, foi divulgado o resultado do Inquérito Policial-Militar instaurado para apurar as circunstâncias que cercaram “o suicídio” de Herzog. O IPM concluiu que Herzog havia se enforcado com um cinto.
Em janeiro de 1976, o procurador Oscar Queiroz do Prado pediu o arquivamento do inquérito. Em seu parecer, considerou “uma irregularidade administrativa” a presença de um cinto no macacão de um preso.
Do parecer: “Não podemos deixar de lamentar a inadvertida entrega ao então investigado de um macacão com cinto, com o qual ele se enforcou, o que para nós constitui irregularidade administrativa, dado o perigo que pode oferecer”.
Culto
O Culto Ecumênico, que havia sido marcado em reunião no Sindicato dos Jornalistas, aconteceu no dia 31 de outubro de 1975, na Catedral da Sé, em São Paulo.
O clima era de muita insegurança. A morte de Herzog serviu para fazer estremecer o governo Geisel. Qualquer tumulto que viesse a ocorrer durante o ato religioso daria fôlego à linha dura do regime que resistia à idéia de redemocratização do país.
Geisel defendia uma abertura política “lenta, segura e gradual”, mas admitia torturas e até assassinatos para defender a ditadura.
O culto contou com a presença dos dois líderes religiosos mais odiados pelos militares – Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, e Dom Hélder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife. Participaram também o pastor protestante James Wright e o rabino Henry Sobel.
O nome de Dom Hélder fora banido da mídia por ordem da censura. Nada podia ser dito a respeito dele – nem mesmo contra ele. Era como se ele tivesse morrido ou desaparecido.
Mais de 500 policiais foram escalados no dia do Culto Ecumênico para montar 385 barreiras armadas pela cidade de São Paulo. Era a Operação Gutemberg.
Em alguns bairros, o trânsito foi delimitado por cones e a passagem de carros se tornou difícil. Em outros locais, carros da polícia travavam as ruas.
A operação policial tinha o único objetivo de impedir o acesso do público à Catedral da Sé. Mesmo assim, oito mil pessoas compareceram. Muitas delas foram fotografadas e filmadas à distância por agentes da repressão dirfarçados de jornalistas.
Os veículos de comunicação foram proibidos de divulgar qualquer notícia sobre o culto.
"Em nome da verdade"
Depois que conheceu o resultado do IPM sobre a morte de Herzog, um grupo de jornalistas escreveu o documento “Em nome da verdade”. Assinado por 1.004 jornalistas de São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre, o documento contestava as conclusões do IPM..
Os principais pontos do documento, mais tarde remetido à Justiça Militar:
Não havia cinto no macacão que Herzog foi obrigado a vestir tão logo chegou ao prédio do DOI-CODI. Os macacões usados pelos outros presos eram iguais ao dele – e não tinham cinto. A ausência de cinto era para prevenir um possível suicídio.
A posição da cadeira supostamente usada por Herzog para se pendurar na cela e em seguida se suicidar não permitiria tal ação. Na fotografia oficial de Herzog enforcado, a cadeira está na frente do corpo, em primeiro plano. Deveria estar atrás caso a cena fosse verdadeira.
O pescoço de Herzog apresentava duas áreas roxas, o que caracteriza morte por estrangulamento. Para que a tese do suicídio prevalecesse deveria haver uma única marca.
De resto, o laudo de exame do corpo que concluiu pelo suicídio foi assinado por dois legistas – mas um deles, depois, admitiria não ter examinado o corpo.
Processo
Vladimir Herzog tinha dois filhos quando foi morto. Ivan, na época com nove anos, e André com sete.
No dia 20 de abril de 1976, Clarice e os dois filhos entraram na Justiça com uma ação declaratória responsabilizando a União pela tortura e morte de Herzog.
Era a primeira vez que havia uma ação desse tipo na história da Justiça brasileira. E seria o primeiro de uma série de casos de vítimas da ditadura a serem julgados por um Tribunal Civil.
Dois anos depois, a vitória da verdade – por mais brutal que a verdade tenha sido.
Em 27 de outubro de 1978, exatos três anos depois do dia do enterro de Herzog, o juiz Márcio José de Morais, da 7a. Vara da Justiça Federal de São Paulo, proferiu sua sentença.
Ele declarou a União responsável pela prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog. Considerou imprestável o laudo médico-legal que amparava a versão oficial. E terminou afirmando que as autoridades não conseguiram provar que a morte foi por suicídio.
Acerca do processo, vale a pena conferir depoimento do advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa:
2013"O processo jurídico que resultou na responsabilização da União pela morte de Vlado: relato do advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa em 25/10/2000
No mês de outubro de 1975, sob a égide da famigerada doutrina de Segurança Nacional e em plena vigência do Ato Institucional nº 5, que suspendera os direitos e garantias individuais, dentre os quais o habeas corpus, a repressão corria solta neste país. Os agentes de segurança prendiam ilegalmente (sem mandado judicial) diversas pessoas, em manobras denominadas "arrastão" e submetiam alguns desses presos ao mais covarde e hediondo dos crimes: a tortura. Depois, soltavam parte desses presos e mantinham ilegalmente outra parte nos cárceres. Muitas vezes, era possível saber, com antecedência, qual seria o próximo grupo escolhido para as subseqüentes operações "arrastão". Foi o que ocorreu com o grupo de jornalistas, no mês de outubro de 1975.
Foi nesse contexto de aguda repressão, sob o domínio de absoluto medo e sofrimento de muitos brasileiros, num país construído sobre o arbítrio, que, em 25 de outubro de 1975, nas dependências do Departamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna ( DOI-CODI) do II Exército, onde estavam presos diversos jornalistas – Rodolfo Konder, Luis Weis, Duque Estrada, Anthony de Christo, Paulo Markun, Sérgio Gomes da Silva -, morreu Vladimir Herzog, onde se apresentara e fora mantido preso, em virtude de suposto envolvimento com um partido político clandestino. A nota do Comando do II Exército, que divulgou o óbito, dava início à farsa, informando que Vladimir havia se suicidado, enforcando-se com uma tira de pano do macacão, depois de ter assinado confissão da sua militância política.
O Comando do II Exército, dando continuidade à farsa, em 30 de outubro de 1975, baixou portaria, determinando a instauração de um IPM para apurar as circunstâncias em que se dera o suicídio (e não a morte) do jornalista. Ou seja: o inquérito fora instaurado, já com a conclusão, incluída na premissa da instauração, vale dizer, com a finalidade única e inequívoca de contestar a versão oficial do suicídio.
Os advogados criminalistas, contratados por Clarice – Heleno Cláudio Fragoso, José Carlos Dias, José Roberto Leal de Carvalho e Arnaldo Malheiros Filho -, desde logo, tiveram consciência da impossibilidade de êxito de desvendar, no âmbito do IPM, as circunstâncias exatas da morte de Vladimir Herzog. Sob a vigência do AI-5, com a suspensão do habeas corpus – uma imoralidade que permitia o abuso de poder e sua ilegalidade -, sabiam eles que era difícil, senão inútil, num IPM, apurar rigorosamente as torturas e mortes de presos políticos, mesmo sendo notório que o DOI era uma casa de horrores, onde os presos eram submetidos a terríveis constrangimentos, inclusive com choques elétricos. Tanto assim é que esses bravos advogados não puderam sequer acompanhar o depoimento prestado por Clarice, no QG do II Exército, no "inquérito instaurado para apurar em que circunstância ocorreu o suicídio do jornalista Vladimir Herzog"; foram-lhes indeferidos até mesmo os simples pedidos de juntada aos autos do IPM do depoimento extrajudicial que havia sido prestado por Rodolfo Konder e de outras diligências para elucidação dos fatos, a partir das novas revelações contidas nos documentos.
Foi nessas circunstâncias que, como advogados na área cível, fomos procurados – Sérgio Bermudes, Samuel Mac Dowell de Figueiredo e eu – por Heleno Fragoso e por José Carlos Dias, para que, em nome de Clarice e seus filhos menores, André e Ivo, propuséssemos uma ação que pudesse conduzir ao reconhecimento de que Vladimir Herzog fora preso de modo arbitrário, sofrera torturas e morrera em decorrência dos maus tratos a que fora submetido.
Assim, em observância a solicitação de Clarice, no sentido de que a ação não contivesse conteúdo pecuniário, em 19 de abril de 1976, foi proposta a ação declaratória contra a União Federal, onde não se pleiteou o pagamento de uma indenização, mas tão somente a declaração da responsabilidade desta pela prisão arbitrária de Vladimir Herzog, pelas torturas a que foi submetido e por sua morte e a conseqüente obrigação de indenizá-los, em decorrência dos danos morais e materiais que esses fatos lhes causaram.
A sentença, proferida pelo juiz Márcio José de Moraes, em 27 de outubro de 1978, em circunstâncias adversas, pois ainda não havia sido revogado o AI-5, e, como tal, a magistratura encontrava-se privada de suas garantias, concluiu que (a) a prisão de Vladimir foi ilegal, reconhecendo, então, que a União prende arbitrariamente; (b) Vladimir foi torturado e que, no do DOI/CODI, a tortura é método de investigação; (c) não tem qualquer valor o laudo pericial que atribuiu a morte de Vladimir a suicídio voluntário; (d) a União não provou o suicídio de Vladimir; (e) declarou a responsabilidade da União Federal, ao julgar inteiramente procedente a ação dos autores.
Creio seja escusado ressaltar que, a partir da morte de Vladimir Herzog, muita coisa mudou neste país. Hoje não mais subsiste o mesmo medo, que vigia na ditadura militar. O próprio país se modificou: houve resistência e luta por transformação. A partir de sua morte, recrudesceram as lutas pela anistia de presos políticos, pela abertura política, pelas eleições diretas, enfim, pela redemocratização, que culminou na promulgação da Constituição de 1988. Igualmente, creio seja desnecessário enfatizar a importância da ação cível, cujo processo contém um dos mais valiosos documentos sobre torturas de presos políticos, na medida em que reúne depoimentos prestados em juízo por testemunhas que depuseram em clima de liberdade. A ação cível, que era a única esperança de desvendar as circunstâncias cruéis que envolveram a morte de Vladimir Herzog e, através dela, denunciar o arbítrio generalizado que vigorava no país, assentado na famigerada doutrina de segurança nacional, produziu o resultado esperado, consubstanciado na sentença, que, desnudando esse arbítrio, foi uma das pedras históricas para a restauração do Estado de Direito Democrático.
Hoje, quando se reverencia a memória de quem, segundo Mino Carta, foi "mártir, sem querer ser mártir", é relevante relembrar, sobretudo para as novas gerações, a importância de Vladimir Herzog, covardemente assassinado no dia 25 de outubro de 1975, para a permanente transformação, resistência e consolidação do Estado de Direito Democrático."
A mudança no atesto de óbito de Vlado marca uma nova fase quanto aos esclarecimentos de fatos do período da ditadura militar, com a intensificação dos trabalhos de diversas comissões da verdade.
Em fevereiro, a Comissão Nacional da Verdade concluiu, a partir de documento inédito, que o ex-deputado Rubens Paiva foi assassinado dentro das instalações do Exército no RJ por agentes da ditadura, quatro anos antes do jornalista, em 1971.
O juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª vara de Registros Públicos do TJ/SP, aceitou pedido da Comissão Nacional da Verdade de que conste no assento que a morte do jornalista "decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército – SP (Doi-Codi)". A iniciativa foi representada pelo coordenador da comissão, ministro Gilson Dipp. A cerimônia em que a viúva do jornalista receberá o novo atestado de óbito será na USP.