Direito de ação
Abuso do direito de ação gera indenização por danos morais
A decisão considerou representações criminais e procedimentos instaurados pelos requeridos. Segundo os autos, documentação revela que os requeridos ofereceram 69 representações criminais contra o autor, desistindo de 25 delas para, em seguida, requererem a desconsideração da desistência.
Segundo o magistrado, os requeridos deixaram evidentes que eles "não se comportaram, pelas condutas que praticaram, em conformidade com o valor normativo do direito de ação, exercendo-o de forma irresponsável, desvinculando-o dos fatos concretos da vida, em flagrante má-fé, não apenas desvirtuando o instituto mas, efetivamente, causando prejuízo ao autor".
A causa foi patrocinada pelos advogados Carlos Eduardo Jordão de Carvalho e Márcio Oliveira e Souza, do escritório Almeida Alvarenga e Advogados Associados.
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Processo: 048.01.2010.011104-1
Confira a petição inicial da ação e veja abaixo a íntegra da decisão.
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Processo Nº 048.01.2010.011104-1
VISTOS Proc. 1.871/10
Ação de Indenização por Danos Morais Autor: José Bernardo Denig
Requeridos: CND- BR – Centro Nacional de Denúncia e Cléber Stevens GerageO autor ajuizou a presente ação alegando que é médico, atuou como Vereador no Município de
Atibaia por 12 anos e atualmente é o Prefeito dessa cidade. Os requeridos, por sua vez, vem apresentando contra ele inúmeras representações junto ao Ministério Público e Poder Judiciário, ajuizando ações sem motivação jurídica e, com isso, causando danos de natureza moral. Alegou que os requeridos, uma organização não governamental e seu representante possuem objetivos obscuros com essas condutas, de caráter denuncista e vazio, agindo em flagrante má-fé. Registrou que já tomou ciência de 69 representações formuladas pelos requeridos, com 25 desistências, seguidas de pedidos de desconsideração das desistências e citou trechos de acórdão que teria ressaltado o caráter frívolo de uma das representações. Em vista desses fatos considerou que são abusivas as práticas adotadas pelos requeridos e que, com elas, vem o autor experimentando prejuízos. Transcreveu a legislação que considerou pertinente, bem como doutrina e jurisprudência para requerer a condenação dos requeridos no pagamento de indenização por danos morais, em valor a ser arbitrado pelo juízo.
Em suas contestações os requeridos apresentaram pedidos de assistência judiciária gratuita e sustentaram que a inicial é inepta por ausência de pedido certo. Defenderam as condutas praticadas, que teriam natureza de exercício regular de um direito. Alegaram que não agiram com má-fé. Impugnaram a existência de danos e requereram a extinção do processo ou a improcedência da ação (fls. 236/250; 258/277). Réplica a fls. 325/338. O despacho de fls. 363/369 afastou as preliminares e indeferiu os pedidos de Assistência Judiciária Gratuita, deferindo a produção de prova oral.
Certificou-se a interposição de exceção de suspeição por parte dos requeridos (fls. 439), com a suspensão do processo (fls. 440). Veio aos autos a decisão do incidente, não conhecido pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (apenso). Seguiu-se com audiência para a produção da prova oral (fls. 452/473) e memoriais (fls. 480/491 e 492/494); sobre os documentos juntados nessa fase as partes se manifestaram.
Relatei.
DECIDO.
Apesar da impertinência de alguns temas levantados pelos requeridos, com juntada de documentos que não guardam vínculo direto com os pontos controvertidos do processo, é legítimo concluir que o conflito entre as partes se estabelece sobre a questão do abuso do direito; no caso, abuso do direito de ação (englobando-se aqui o direito de representação). O autor reclama por danos de natureza moral que vem experimentando em razão das condutas praticadas pelos requeridos, consistentes no ajuizamento e nas constantes representações (na esfera administrativa, cível e criminal) sem fundamento por eles apresentadas. A documentação que acompanhou a inicial e o teor da contestação tornam os fatos (causa de pedir mediata) incontroversos, sendo certo que a prova oral foi deferida para dar ao requerido uma oportunidade de explicação a respeito das condutas mencionadas na inicial e para que o juízo pudesse obter mais e melhores dados para decisão mais segura. Diante desse quadro, é certo que um tema ganha fundamental destaque para a melhor solução da controvérsia – O Direito de Ação. Indispensável que se tome como norte o tema em referência, na medida em que as condutas praticadas pelos requeridos, contra as quais se insurge o autor, são todas elas decorrentes desse direito.
Para o autor houve abuso desse direito e para os requeridos houve exercício regular desse direito. Observados os limites técnicos de uma sentença e os naturais do julgador, aqui serão feitas considerações sobre “O Direito de Ação” para definir a sua natureza e, com isso, identificar, nas condutas indicadas na inicial, se houve abuso ou exercício regular desse direito. O art. 5º, XXXV, da Constituição Federal consagra o direito público subjetivo de ação e aqui já é de interesse destacar a pertinente observação de José Afonso da Silva, no sentido de que o dispositivo em referência consagra também, o direito daquele contra quem se propõe a ação:
“O art. 5º, XXXV, consagra o direito de invocar a atividade jurisdicional, como direito público subjetivo. Não se assegura aí apenas o direito de agir, o direito de ação. Invocar a jurisdição para a tutela de direito é também direito daquele contra quem se age, contra quem se propõe a ação. Garante-se a plenitude de defesa, agora mais incisivamente assegurada no inc. LV do mesmo artigo: aos litigantes, em processo judicial e administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Agora a seguinte passagem do magistério de Liebman tem ainda maior adequação ao Direito Constitucional Brasileiro:
‘O poder de agir em juízo e o de defender-se de qualquer pretensão de outrem representam a garantia fundamental da pessoa para a defesa de seus direitos e competem a todos indistintamente, pessoa física e jurídica, italianos (brasileiros) e estrangeiros, como atributo imediato da personalidade e pertencem por isso à categoria dos denominados direitos cívicos’ .
O princípio em referência, também chamado de inafastabilidade do controle jurisdicional ou do acesso à Justiça, trata da ação constitucional, que difere da ação processual, uma vez que esse direito (constitucional) não está desvinculado de uma situação da vida, de direito material. Os bens da vida são limitados e na disputa entre eles surge o conflito.
As normas de direito material contém os valores necessários para dar a quem possui, o direito que postula, com o que, visa a pacificação social. Havendo resistência ao interesse, o único modo (salvo exceções) para garantir essa pacificação é por meio da jurisdição, atividade estatal oferecida às pessoas que possuem o direito subjetivo material invocado. A jurisdição é inerte e essa garantia constitucional a provoca.
O direito constitucional de ação garante que a jurisdição saia de sua inércia e por esse modo o Estado presta serviço fundamental de pacificação social, dando a quem possui, aquele bem que lhe foi inicialmente negado. Contudo, dado o caráter instrumental dessa garantia constitucional, legítimo que normas processuais sejam utilizadas para dar ao Estado elementos para aferir a probabilidade de eficácia e de adequação do instrumento utilizado pelo demandante, de modo que, analisada a situação da vida, convém um juízo de valor por meio do qual se verifique a impossibilidade de se obter a tutela jurisdicional do Estado. A análise das condições da ação implicam na análise da situação de direito material e, nesse sentido, correto afirmar que toda ação processual pressupõe necessariamente, a apreciação do mérito, compreendido esse como objeto litigioso do processo. Por esse aspecto é correto afirmar que não há direito absoluto à garantia constitucional do acesso à Justiça, uma vez que o seu exercício está condicionado a uma situação de direito material presente na vida real e ainda, que há condições previamente estabelecidas para a utilização desse direito. Desnecessário reafirmar aqui a importância desse instituto fundamental do processo, notadamente no seu contexto histórico, sobre o qual emerge como corolário da própria evolução do ser humano. O direito de ação é, sem dúvida, uma das maiores conquistas da humanidade e nesse sentido não é exagero ressaltar a sua sacralidade em homenagem à plêiade de homens que derramaram sangue no curso da história para, de uma forma ou de outra, defender sua criação e sua permanência entre os povos civilizados. Feitas essas breves observações a respeito do tema que se destaca na controvérsia do caso concreto, que sejam agora expostos os fatos do conflito. A petição inicial foi inaugurada com a transcrição de um trecho da r. decisão proferida nos autos do v. acórdão relatado pelo Desembargador Amado de Faria:
“Lamenta-se que os escassos recursos do Poder Judiciário sejam dissipados com o exame de pedidos a ele remetidos por grossa erronia. Nenhuma utilidade a todos, inclusive ao advogado interessado, aproveita; ao revés, perde a sociedade com o prejuízo do desperdício gerado por este expediente” (fls. 220).
Tratou-se de uma representação criminal promovida pela entidade requerida, representada pelo mesmo advogado que defende os requeridos nessa ação, o advogado e pai do correquerido, Domingos Gerage, tal como expressamente constou na decisão.
A representação contra o Prefeito, autor dessa ação, foi de pronto descartada, com a observação acima lançada e outras, que bem amparam as conclusões que serão tiradas nessa sentença: “Como já asseverado alhures, o advogado subscritor da ‘representação’, sequer aponta qual seria o crime em tese, atribuível ao Alcaide de Atibaia, a justificar sua ‘notitia’ a este Tribunal de Justiça”. E adiante:
“Observa-se, ainda mais, que a representação é completamente inútil”. Mais: “Beira as raias do menoscabo a esta Corte, a pretendida remessa da presente representação à Douta Procuradoria Geral da Justiça, nestas circunstâncias. Com a devida venia, o representante parece dispor do ‘animus’ de representar por representar, sem sequer atentar para a efetiva necessidade da providência postulada. Este caso serve como paradigma do desperdício de tempo dos membros desta Corte e ainda da Procuradoria Geral de Justiça. O subscritor da representação deveria ter maior cautela na provocação da atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário” (cf. fls. 218/219).
Em outra representação criminal o arquivamento também foi determinado, não sem antes algumas importantes considerações do douto Relator, Desembargador Pedro Gagliardi:
“Assim, nos termos da manifestação da d. Procuradoria de Justiça o caso é de arquivamento quanto ao representado, bem como a instauração de investigação de eventual prática de crime de denunciação caluniosa em face do peticionário. Arquive-se o presente feito, nos termos do artigo 3º, inciso I, da Lei n. 8.038/90, e artigo 18, do Código de Processo Penal, determinando-se, ainda, a extração de cópias do presente feito e remessa à Comarca de Atibaia para a apuração de denunciação caluniosa em face de Cléber Stevens Gerage” (fls. 209/210).
Essas duas representações já seriam suficientes para identificar a má-fé dos requeridos e o natural prejuízo de natureza moral experimentado pelo autor. Mas há mais; muito mais.
A documentação revela que os requeridos ofereceram 69 (SESSENTA E NOVE) representações criminais contra o autor, desistindo de 25 delas para, em seguida, requererem a desconsideração da desistência (fls. 41/206). Como é possível, diante do juízo de valor que deve ser elaborado pelo interessado antes dessa provocação, tenham os requeridos desistido de 25 representações para, em seguida, sem qualquer fato novo, requererem a desconsideração do pedido de desistência ? Ao propor uma ação ou uma representação criminal, é certo que o interessado, notadamente pelo conteúdo ético que envolve essa empreitada, deve se ater às consequências dessa conduta, tal como nos lembra Calamandrei, referindo-se a uma ação cível, na festejada obra “Eles os juízes, vistos por nós, os Advogados:
“Há um momento em que o advogado do cível deve olhar a verdade de frente, com o olhar desapaixonado do juiz: é aquele em que, solicitado pelo cliente para o aconselhar sobre a oportunidade de propor uma ação, tem o dever de examinar imparcialmente, tendo em conta as razões do eventual adversário, se pode fazer com que seja de justiça a obra de parcialidade que lhe é pedida. Desta forma, o advogado que trabalha no cível deve ser o juiz instrutor dos seus clientes e a sua utilidade social é tanto maior quanto maior for o número de sentenças de improcedência que pronunciar no seu gabinete” (7ª ed., pág. 121).
Maior a cautela, certamente, em representações criminais contra quem exerce atividade pública e por isso tem o seu nome como patrimônio intocável. No curso do processo o autor juntou cópias de outros cinco arquivamentos, todos com apreciações incisivas sobre a inexistência de elementos mínimos de conhecimento (fls. 374/394).
“...não há crime nos casos trazidos à baila, uma vez que as dispensas de licitação fundaram-se em razões de efetivo interesse público...” (fls. 377). “...inexistência dos mínimos indícios de materialidade do crime...” (fls. 380). “...não há nos autos justa causa que dê azo ao seguimento da representação interposta contra o alcaide... O subscritor da denúncia não apontou uma única disposição legal desrespeitada, bem como não demonstrou fato que pudesse caracterizar ilícito penal...” (fls. 384). “...fato atípico – requisição de funcionário público para permanecer à disposição no gabinete do Prefeito Municipal não configura conduta delituosa – fato atípico – arquivamento proposto pela Procuradoria Geral da Justiça – Acolhimento” (fls. 387). “...não há qualquer elemento que vislumbre a prática de conduta imputada ao Alcaide. Completa ausência de elementos para a instalação do inquérito policial.
Arquivamento proposto pela Procuradoria Geral da Justiça. Acolhimento” (fls. 392). O autor, bacharel em direito, filiado a um partido político e representante da ONG que com ele divide o polo passivo dessa ação, seguramente tem conhecimento, ou deveria ter, sobre a importância aqui já destacada do exercício do direito de ação. Em suas declarações ressaltou: “Eu conheço o meu direito e vou continuar exercendo” (fls. 459). Estranho que não tenha, nas declarações ou mesmo nas contestações, apresentado argumentos que justificassem as representações; não há uma só linha em defesa do mérito dessas providências. E ainda, não há como desconsiderar o que foi registrado pelo Desembargador Antonio Rulli em recurso de apelação cível interposto pelo requerido Cléber Gerage, contra decisão que julgou improcedente uma ação proposta contra a Prefeitura Municipal e outros: “Pretensão à condenação das rés no pagamento de indenização por danos morais em razão do uso de expressão (policial). Preliminares de concessão de justiça gratuita e cerceamento de defesa, afastadas. Mérito. Autor que ajuizou 88 ações com conteúdo diversos, sendo que boa parte delas objetivam indenização por danos morais.
Embora afirme não ter usado a expressão “Policial”, sua atuação foi de autoridade, inclusive com ‘poderes’ para exigir a presença do representante do Hospital no local dos fatos. Autor/apelante que é representante do Conselho
Municipal de Justiça de Atibaia, entidade não governamental que teve suas atividades suspensas em sede de ação civil pública e mesmo não exercendo qualquer função pública com poderes de polícia, exigiu a presença do representante da ré...” (fls. 365/366). O seu jogo de palavras no sentido de excluir sua responsabilidade, fazendo-a recair sobre a entidade que representa não tem sentido.
Aparentemente, pretende se apresentar como uma espécie de “paladino da justiça”, de uma justiça subjetiva, vista ao seu modo, sem considerar as consequências do seu ato. As suas provocações, como já registradas, assentam-se em premissas obscuras, vazias ou abstratas, mas ainda assim, não poupou esforços para chamar o autor em juízo, impondo-lhe a pecha de réu ou de representado. Bem sabe o homem honrado o quanto de angústia experimenta aquele que se vê envolvido em um processo, como réu ou como
representado, em procedimentos administrativos, cíveis ou criminais e o grau de prejuízo social que o acompanha nessas empreitadas, sem considerar ainda o prejuízo político, dada a condição de Prefeito do autor. Evidente que os requeridos extrapolaram os seus direitos e por tudo o que consta nos autos é forçoso reconhecer a má-fé desses litigantes. Vale aqui a observação de Rui Stoco, em sua consagrada obra Abuso do Direito e Má-Fé Processual:
“Se é certo que toda demanda é o resultado de duas pessoas haverem entendido coisas diferentes ao ler a mesma norma, como já se afirmou, não menos correto que essa leitura há de ser feita segundo critérios éticos, informada pela boa-fé, enquanto padrão de comportamento exigido de todos quantos aceitaram viver em sociedade, onde a igualdade e o respeito ao próximo constituem garantias constitucionais asseguradas ao cidadão, como individualidade protegida, e à sociedade, enquanto estrato e tegumento que permeia a nação politicamente organizada... O objetivo foi estudar a boa-fé não só na sua origem filosófica, mas e principalmente, como pressuposto necessário para estar em juízo, onde a lei estabelece, como regra programática, a obrigação de proceder com lealdade e boa-fé e, como norma punitiva, a proibição de conduzir-se com o só objetivo de prejudicar ou de lesar” .
Bem lembrado por Sálvio de Figueiredo Teixeira, citado pelo mesmo Rui Stoco, mesma obra e mesma página:
“o processo não é um jogo de esperteza, mas instrumento ético da jurisdição para a efetivação dos direitos da cidadania”.
Não é sem motivo que o Código de Processo Civil, em seu art. 14, dispõe: “São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: I – expor os fatos em juízo conforme a verdade; II – proceder com lealdade e boa-fé; III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; IV- não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito; V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final”. O legislador trouxe para o processo uma regra moral para dar ao juiz, não obstante o sistema dispositivo, meios de se impedir os excessos e de reprimi-los com sanções específicas. Essa a lição de Alípio Silveira: “A má-fé dos litigantes, no anterior sistema dum extremo dispositivismo, não só prejudicava o resultado final do pleito, conduzindo à vitória do mau interesse, como ainda contribuía para prolongar e encarecer de tal forma o processo, que isso muitas vezes quase correspondia a uma denegação de justiça. Do que surgiu essa tendência reformadora, que passou a exigir a boa-fé não só preliminarmente ao processo, mas durante todo o curso deste” .
Essa a observação de Calamandrei: “...os litigantes, ao contrário do Estado-Juiz, perseguem no processo objetivos mais limitados e egoísticos, às vezes em contraste, não declarado, com o objetivo maior do processo, que é o interesse da justiça” . Evidente pois, que o Estado deve contar com mecanismos de controle ético, sobretudo nos dias atuais, em que a Justiça se encontra sobrecarregada e experimenta sozinha o descrédito por sua morosidade. Posturas desse jaez são um acinte à lealdade, conceito esse de conteúdo normativo que permite ao juiz realizar o conteúdo da norma no momento da sua concreção.
Carlos Maximiliano trata do tema nesses termos: “Os próprios Códigos revelam ter sido reconhecida a impossibilidade de tudo especificar e prever; porquanto deixam ao alvedrio do julgador o apreciar inúmeros motivos de demanda, ou de escusa; por exemplo, quando se referem a boa ou má-fé; equidade; força maior; moral; bons costumes; ingratidão; imprudência ou imperícia; objeto ilícito, ou impossível; fim ilícito ou imoral; injúria grave; dolo, no cível e no crime” .
Diante das novas disposições do Código Civil, não há mais sentido em se duvidar da natureza jurídica do abuso do direito. O art. 187, que se situa no Título III – Dos Atos Ilícitos, do Capítulo V – Da Invalidade do Negócio Jurídico, é claro:
“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Não bastasse a confissão dos requeridos, que em suas defesas expressamente alegaram:
“Portanto, verifica-se que o requerido excedeu os limites legais impostos para o exercício regular de seu direito, jamais invadindo a esfera moral e particular do autor ao ponto de causar-lhe prejuízo passível de indenização na esfera moral” (fls. 270), é certo que a prova dos autos e a consequência de um raciocínio lógico-dedutivo levam à conclusão de que ambos excederam, manifestamente, os limites do direito de ação, na medida em que tomaram a iniciativa violando os fins básicos do processo, contrariando a finalidade de pacificação social desse instrumento, agindo com má-fé, em prejuízo do autor, que seguramente sofreu considerável abalo psíquico repetidas vezes. Após transcrever o dispositivo legal acima mencionado, Rui Stoco registra:
“...é entendimento quase pacífico no meio jurídico, sendo certo que de acordo com esta concepção, o elemento intencional, consistente no animus nocendi, é que transforma em ato ilícito o exercício do direito...”
Em seguida, citando Heloísa Carpena, prossegue:
“De acordo com os princípios que regem tais concepções, em face da necessidade inconteste de censurar juridicamente o abuso do direito, relegou-se o ato abusivo para o campo dos atos ilícitos, entendendo-se como um limite externo do direito subjetivo”.
Trata-se, pois, de ato ilícito. À evidência, não pode ser acolhida a tese da defesa no sentido de que teriam os requeridos agido em exercício regular de um direito. Trata-se de uma excludente da responsabilidade civil prevista no art. 188, do CC e a seu respeito assim pondera Sílvio de Salvo Venosa: “No ato ilícito, há um procedimento contrário ao Direito. Portanto, o exercício de um direito elimina a ilicitude. Quem exerce um direito não provoca o dano (qui iure suo utitur nemine facite damnum). O credor que, preenchendo as condições legais, requer a falência do devedor comerciante; o proprietário que constrói em seu terreno, embora tolhendo a vista do vizinho, apesar de esses agentes causarem dano a outrem, não estão obrigados a indenizá-lo, porque agem na esfera de seu direito.
Sempre que o agente, conquanto à primeira vista esteja exercendo direito seu, extravasa os limites para os quais esse direito foi criado, ingressa na esfera do abuso de direito” . A questão sobre o abuso do direito já rendeu inúmeras controvérsias, como explica Rui Stoco:
“Uma das questões mais complexas e controvertidas de que se tem notícia no campo da dogmática jurídica é o que se convencionou chamar de ‘abuso do direito’. A controvérsia apenas começa na sustentação da teoria em si mesma, posto que alguns nela vislumbram uma contradictio in adiectio ou antítese lógica; um conceito sem conteúdo ou simples logomaquia, na consideração de que o direito cessa onde o abuso começa. Sustentava PLANIOL (1902, n. 807), civilista francês de escol, que um mesmo ato não pode ser, a um só tempo, conforme e contrário ao direito, opinião que, mesmo encontrando alguns adeptos, restou vencida e superada. Isto porque a aparente contradição desaparece quando se admite que o termo ‘direito’ tem acepções distintas: a de juridicidade e a de prerrogativa determinada. Dessa forma, como demonstra Heloísa CARPENA (2001, p. 44/45), o ato pode ser conforme ao direito conferido ao titular e contrário ao direito considerado como corpo de regras sociais obrigatórias. A teoria do abuso do direito se apóia no princípio da convivência, impondo-se conciliar a utilização do direito, respeitando-se, contudo, a esfera jurídica alheia, fixando-lhe um limite” .
E adiante, prossegue o Desembargador: “Do que se conclui que o indivíduo para exercitar o direito que lhe foi outorgado ou posto à disposição deve conter-se dentro de uma limitação ética, além da qual desborda do lícito para o ilícito e do exercício regular para o exercício abusivo. Como se impõe a noção de que nosso direito termina onde se inicia o direito do próximo, confirma-se a necessidade de prevalência da teoria da relatividade dos direitos subjetivos, impondo-se fazer uso dessa prerrogativa apenas para satisfação de interesse próprio ou defesa de prerrogativa que lhe foi assegurada e não com o objetivo único de obter vantagem indevida ou de prejudicar outrem, através da simulação, da fraude ou da má-fé. Para situar-se no campo da normalidade e da licitude não basta estar legitimado pela legislação existente e asseguradora de direitos. Impõe-se fazer uso adequado do arsenal legislativo existente e não dele prevalecer e utilizá-lo para fim ilícito ou pretensão subalterna. Pode-se usar a lei permissiva em vigor, de forma aparentemente adequada para obter fim ilegítimo ou não permitido pelo consenso social, hipótese em que se irá detectar o abuso no exercício do direito. Com estas premissas encontramos o conceito de abuso do direito em Irineu STRENGER, citado por Guilherme STRENGER (1997, p. 24):
‘Abuso de direito é ato realizado, com apoio em preceito legal, que causa dano a interesse não especificamente protegido pelo ordenamento positivo, manifestado pela lesão a princípios éticos e sociais, objetiva ou subjetivamente, mediante adequação entre o intencional e o sentido da lei” .
E a fim de melhor definir o ponto que é objeto desse conflito, tal como prometido no início dessa sentença, isto é, para que se possa identificar, no caso concreto, se houve abuso ou exercício regular de um direito, a lição a seguir vem de um dos maiores especialistas no assunto, o autor português Fernando Augusto Cunha de Sá:
“De fato, o comportamento do titular de certo direito subjetivo pode, esquematicamente, reconduzir-se a uma das três seguintes hipóteses: a) tal comportamento conforma-se quer com a estrutura do direito subjetivo exercido, isto é, com a sua forma, quer com o valor normativo que lhe está inerente; b) o comportamento do titular é, logo em si mesmo, contrário ou disforme da própria estrutura lógico-formal do direito subjetivo em causa; c) o comportamento preenche na sua materialidade in actu, a forma do direito subjetivo que se pretende exercer, mas, do mesmo passo, rebela-se contra o sentido normativo interno de tal direito, isto é, contra o valor que lhe serve de fundamento jurídico. Só no primeiro caso se pode falar, com inteira correção, de exercício do direito. Porque se preenche a estrutura formal do direito e se respeita o valor que juridicamente funda o sentido desse direito, a atuação do titular integra concretamente um ato de exercício do mesmo direito, preenche faticamente a previsão normativa a que é feita seguir a qualificação jurídica de admissibilidade ou permissão em termos de direito subjetivo. Estamos, aí, no domínio da ilicitude, do ato que é válido e legítimo e que o é concretamente, como exercício de um direito” .
Logo se vê e com facilidade se conclui, os requeridos não se comportaram, pelas condutas que praticaram, em conformidade com o valor normativo do direito de ação, exercendo-o de forma irresponsável, desvinculando-o dos fatos concretos da vida, em flagrante má-fé, não apenas desvirtuando o instituto mas, efetivamente, causando prejuízo ao autor. Convém lembrar a preciosa observação de Rui Stoco aqui já destacada:
“...o indivíduo para exercitar o direito que lhe foi outorgado ou posto à disposição deve conter-se dentro de uma limitação ética, além da qual desborda do lícito para o ilícito e do exercício regular para o exercício abusivo...” Prossegue o mestre português, agora sobre a terceira hipótese que mencionou, que seguramente trata do caso em apreciação:
“...mas pode suceder que isso aconteça – trata-se do terceiro caso que acima considerei – isto é, que o comportamento do titular preencha a estrutura do direito subjetivo, mas que, pelos precisos termos em que aparece ou pela exata situação em que surge, a sua realidade material não cumpra aquele mesmo valor normativo que é o fundamento jurídico de tal direito subjetivo. Aparentemente, no plano da forma, o titular atua no seu direito, move-se dentro dele, mas, na realidade, comportamento e direito opõem-se pelo concreto sentido que um e outro possuem diferentemente. A aparência estrutural do direito não é integrada pela sua intenção normativa; a forma está presente, mas o seu preciso valor está ausente, a realidade finge o direito: o comportamento do titular viola, no seu íntimo sentido, os limites materiais que para a qualificação jurídica do permitido em termos de direito subjetivo resultam do seu fundamento axiológico. E tão pouco se pode falar aí de exercício de um direito, pois que, à face deste mesmo fundamento, é ilegítimo o comportamento concreto do titular. Aliás, a nossa própria lei expressamente refere o abuso ao excesso manifesto dos limites do direito...”
É exatamente o caso dos autos, em que os requeridos atuaram com a roupagem da legalidade, ausente o valor desse direito... “A realidade finge o direito”. Vem de outro autor português a conclusão necessária para esse tópico:
“O abuso do direito constitui uma fórmula tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições jurídicas, isto é: do exercício concreto de posições jurídicas que, embora correto em si, acabe por confundir com o sistema jurídico na sua globalidade. Antecipamos pois que, mau grado o seu alcance vocabular imediato, não há, no abuso do direito, nem ‘abuso’ nem, necessariamente, um direito subjetivo: apenas uma atuação humana estritamente conforme as normas imediatamente aplicáveis, mas que, tudo visto, se apresenta ilícita por contrariedade ao sistema, na sua globalidade” .
Em arremate a essas ponderações, adequado que sejam transcritas as definitivas lições de Rui Stoco, que nesse ponto já visualiza o dano causado pelo abuso do direito, com interessantes observações que o diferem da litigância de má-fé, tema que ganhou importância em razão do ponto de vista exteriorizado pelo autor em sua inicial:
“Ressalta claro do texto que também o titular de um direito pode cometer ato ilícito quando o exerce mal e indevidamente, ultrapassando os limites estabelecidos ou desviando-se da boa-fé e dos bons costumes que, então, convertem-se em má-fé e em prática ruim e repudiada pelo estrato social, sendo certo que estes dois últimos comportamentos contra legem são gêneros de que o dolo é espécie. Portanto, quando alguém ingressa com uma ação judicial está no exercício regular de um direito. Se o seu comportamento processual se der secundum ius, ou seja, conforme a moldura estabelecida na lei processual civil, não há abuso nem desvio, pouco importando que o resultado da demanda lhe seja favorável ou desfavorável, na consideração de que a só perda da ação judicial não licencia o vencedor a pretender perdas e danos, como de resto não justifica invocar o fundamento de que a sua condição de réu (embora vencedor) causou-lhe incômodos e prejuízos. Isto porque o fundamento moral do exercício regular de um direito, como causa de isenção de responsabilidade civil, está na certeza imposta pela lei de que, quem usa de um direito seu e o exerce regularmente não causa dano a ninguém. Esse o princípio estabelecido no atual Código Civil ao dispor não constituírem atos ilícitos aqueles “praticados no exercício regular de um direito reconhecido” (art. 188, I). Cabe lembrar que a Constituição Federal estabelece princípio irretirável e garantia fundamental contidos nos seguintes enunciados: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5o, XXXV) e que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Diante disso cabe assentar em reiteração que a utilização do direito de estar em juízo encontra proteção e garantia na Carta Magna, de modo que o só ajuizamento de ações judiciais não constitui abuso de direito mas exercício regular de um direito assegurado. Mas a questão não se esgota com essa primeira conclusão. Duas vertentes distintas devem ser estabelecidas para efeito de estudo.
A primeira, relativa ao chamado abuso de direito processual, com previsão nos artigos 16 a 18 do Código de Processo Civil sob a rubrica “Da responsabilidade das partes por dano processual”. A segunda, pertinente ao abuso de direito da parte ou seu advogado em juízo, não mais pela atuação com má-fé processual, mas com o objetivo subalterno de causar dano ou obter vantagem indevida através do Poder Judiciário, agindo com dolo, hipótese que se amolda ao art.186 do Código Civil. A distinção assume importância pois a declaração da má-fé processual e a correspondente fixação da indenização por perdas e danos ocorre nos próprios autos. Nesta hipótese a declaração de má-fé pelo magistrado constitui mera questão incidente, que se resolve nos próprios autos em que as partes se contendem. O CPC reputa de má-fé a parte que conduzir-se segundo os incisos I a VII do art. 17: I) deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II) altear a verdade dos fatos; III) usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV) opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V) proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI) provocar incidentes manifestamente infundados; VII) interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. Para estas hipóteses prevê o art. 18 do CPC a imposição de multa não excedente de um por cento sobre o valor da causa e indenização dos prejuízos que a parte tenha sofrido, devendo o juiz, desde logo, nos próprios autos, fixar esse valor, se puder dimensioná-los ou, não sendo possível, determinar a liquidação por arbitramento (art. 18, § 2º).
Essas hipóteses do art. 17 foram estabelecidas em numerus clausus, não comportando ampliação. Nesse sentido a doutrina de NELSON NERY JÚNIOR E ROSA MARIA ANDRADE NERY, JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM, MARCOS AFONSO BORGES e ADROALDO LEÃO. Do que se conclui que o próprio legislador admitiu a possibilidade de outras hipóteses ali não contidas, que podem configurar abuso de direito e admitir indenização com base no Direito Comum, ou seja, com supedâneo no Código Civil, na consideração de que o conceito de improbus litigator não se esgota na noção da má-fé processual, que se amolda à fraude processual (dolo) mas deixa de fora da previsão outros comportamentos considerados ilícitos. Nestes casos, que devem ser identificados, impõe-se o ajuizamento de ação específica e não o aproveitamento da ação judicial onde o ilícito teria sido cometido pela parte ou seu advogado (cf. art. 32 da Lei n.º 9.906/94 – Estatuto da Advocacia). Impõe-se ao autor que pleiteia reparação fazer prova do fato, de quem o praticou, da conduta dolosa deste último e da existência de um dano. Segundo nos parece, se estamos falando de má-fé e de conduta fraudulenta da parte, ressuma evidente que há ali identificado o elemento intencional, qual seja o animus nocendi (intenção de prejudicar) ou de obter vantagem indevida. Assim, o abuso do direito de estar em juízo e de produzir acusação ou defesa em ações cíveis ou criminais, tem como substrato o dolo do agente; a vontade dirigida a um fim. Significa que a culpa stricto sensu não é suficiente para empenhar sua responsabilidade, não obstante o entendimento de consagrados autores, aos quais pede-se vênia para discordar. Lamentavelmente a doutrina não é muito clara a esse respeito. PEDRO BAPTISTA MARTINS nos dá uma visão diversa da questão assim se manifestando: “Culpa e exercício de um direito são duas noções incoadunáveis. Onde a culpa aparece não pode haver exercício de um direito e, reciprocamente, a ideia de um direito em ação exclui definitivamente a de culpa”. Esqueceu-se, porém, de que no abuso do direito há legitimidade no antecedente, quando a pessoa atua exercendo um direito legítimo e previsto (como o direito de ação) e dolo no consequente, a partir do momento em que desborda do direito concedido (abusando daquele direito de ação), tendo em vista o modo irregular com que o exerce. Ademais, não se pode aceitar a tendência deste último e consagrado autor ao insinuar que o abuso do direito desprende-se do conceito de culpabilidade para encontrar apoio e sustentação na responsabilidade objetiva ou sem culpa. Outros autores defendem a tese de que quando o abuso se caracteriza pela intenção de prejudicar, constitui uma falta delitual. Se essa intenção não ocorre, o ato abusivo pode constituir uma culpa quase-delitual, caracterizada pela imprudência ou pela negligência. Nessa esteira COLIN e CAPITANT concluíram:
“Para que haja abuso do direito não é indispensável que se descubra no autor do prejuízo causado a outrem a intenção de prejudicar, o animus nocendi. É bastante que se observe na sua conduta a ausência das precauções que a prudência de um homem atento e diligente lhe teria inspirado”.
Contudo – insistimos – na hipótese sob estudo não basta o agir culposo da parte em juízo ou de seu defensor ou representante legal, pois o conceito de fraude processual e de má-fé processual liga-se intimamente ao dolo, estando incluída nesse conceito a culpa grave, quando o agente assume integralmente o risco de prejudicar ou age com tal desídia que o seu atuar exsurge inescusável e, assim, confina-se e se aproxima do próprio dolo. E a afirmação de que a má-fé processual ingressa no campo do abuso do direito não pode encontrar disceptação. Em excelente trabalho de doutrina FRANCISCO FERNANDES DE ARAÚJO assim se manifestou: “Sendo a litigância de má-fé caracterizadora do abuso do direito, por evidente constitui um ilícito, conforme, aliás, é o pensamento quase maciço dos autores pesquisados”.
Mas cabe desde logo advertir que não constituirá seara de suave colheita identificar a hipótese de ilícito decorrente de abuso do direito cometido no bojo de ação judicial, não contido nas hipóteses previstas no art. 18 do CPC, embora não se possa, desde logo, afastar essas possibilidade. Ensinava o notável e saudoso PEDRO BAPTISTA MARTINS acima citado que: “O exercício da demanda não é um direito absoluto, pois que se acha, também, condicionado a um motivo legítimo.
Quem recorre às vias judiciais deve ter um direito a reintegrar, um interesse legítimo a proteger, ou pelo menos, como se dá nas ações declaratórias, uma razão séria para invocar a tutela jurídica. Por isso, a parte que intenta ação vexatória incorre em responsabilidade,
porque abusa de seu direito”. Impõe-se também obtemperar que o abuso de direito que se converte em má-fé processual, previsto nos arts. 16 a 18 do CPC, só comporta reparação por dano material. Essa limitação resta clara e evidente quando o art. 16 menciona “perdas e danos” e o art. 18 fala em “prejuízos que esta sofreu”. Mas essa indenização não afasta a possibilidade de compensação por dano moral. Este encontra suporte no art. 5º da Constituição Federal e não pode ser desconsiderado. Ninguém poderá negar que a condição de réu em qualquer ação judicial, seja no âmbito penal ou civil, causa incômodo, transtorno, mal estar e intensa angústia.
Ademais desses males d’alma há ainda a ofensa à imagem e ao bom nome, valores subjetivos e inestimáveis que a Carta Magna resguarda e preserva. Portanto, não há empecilho em obter nos próprios autos, onde as partes litigam, a reparação das perdas e danos em razão da má-fé processual de uma delas e ali reconhecida pelo magistrado e, em ação distinta, buscar reparação por dano moral”.
Verifica-se, portanto, que há exigência do animus nocendi e embora haja discussão a respeito do efetivo prejuízo a legitimar a pretensão reparatória, no caso dos autos ele é inconteste. O dolo integra a conduta do agente e, como já foi dito nessa sentença, o requerido, que representa a correquerida, é bacharel em direito e filiado a um partido político; preside uma ONG e mostra-se um combatente incansável contra as injustiças, contra a corrupção e contra todas as formas de desigualdade. Nesse contexto, é certo que sabia, ou deveria saber, que suas pretensões eram descabidas e que, naturalmente, com elas, estaria causando abalo emocional e psíquico no requerido. Rui Stoco, após registrar as correntes que giram em torno do tema conclui que nosso direito adotou a teoria subjetiva e citando Limongi França destaca: “Não há como deslembrar que ‘a noção de abuso do direito está intimamente ligada à de responsabilidade civil. Por sua vez, ao que pensamos, esta só pode ser compreendida a partir da ideia de culpa” . E prossegue: “Mas, afirmada a adoção da teoria subjetiva, cabe esclarecer em que termos ela se apresenta para exercer influência sobre o ato praticado. No campo da culpabilidade se o ato for praticado com a intenção deliberada de prejudicar, de causar dano ou de obter vantagem ilícita – ainda que para isso possa o terceiro ser prejudicado – ressuma claro que a obrigação de responder por este ato mostra-se evidente. O dolo, ainda que eventual, quando o agente assume o risco de produzir o resultado, empenha obrigação. Não importa, ainda, que o dolo seja específico ou genérico.
Mas no plano da culpa (stricto sensu), em sede de abuso do direito, quer parecer que a chamada ‘gradação da culpa’ assume importância” . Embora não se tenha identificado a vantagem material que poderia obter com essas condutas, não há como negar que a atuação dos requeridos foi temerária ao se desvirtuar dos valores que formam o direito de ação e que, com isso, concomitante e conscientemente, causaram prejuízo de ordem moral ao autor. E ainda, forçoso reconhecer o alto grau de culpabilidade na conduta, por toda a importância histórica do direito de ação, pelo que esse direito representa à humanidade e pela forma como foi tratado pelos requeridos; a condição dos requeridos, notadamente da pessoa física, litigante profissional, que não hesita em utilizar essa garantia constitucional como forma de obter vantagens e de causar prejuízo a terceiros. O art. 186, do Código Civil dispõe: “Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Por sua vez, declara a Carta Magna: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5o, X). Ensina Carlos Roberto
Gonçalves, a respeito desses dispositivos: “A doutrina e a jurisprudência já se manifestaram a respeito do alcance desses dispositivos.
Caio Mário da Silva Pereira comentou:
“A Constituição Federal de 1988 veio pôr uma pá de cal na resistência à reparação do dano moral. O art. 5o, n. X, dispôs: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Destarte, o argumento baseado na ausência de um princípio geral desaparece. E, assim, a reparação do dano moral integra-se definitivamente em nosso direito. É de se acrescer que a enumeração é meramente exemplificativa, sendo lícito à jurisprudência e à lei ordinária editar outros casos. Com efeito, aludindo a determinados direitos, a Constituição estabeleceu o mínimo. Não se trata, obviamente de numerus clausus, ou enumeração taxativa. Esses, mencionados nas alíneas constitucionais, não são os únicos direitos cuja violação sujeita o agente a reparar. Não podem ser reduzidos, por via legislativa, porque inscritos na Constituição. Podem, contudo, ser ampliados pela legislatura ordinária, como podem ainda receber extensão por via de interpretação, que neste teor recebe, na técnica do Direito Norte-Americano, a designação de construction .
Rui Stocco, em sua consagrada obra – Responsabilidade Civil, argumenta a respeito do direito à honra:
“O direito à honra, como todos sabem, se traduz juridicamente em larga série de expressões compreendidas como princípio da dignidade humana; o bom nome, a fama, o prestígio, a reputação, a estima, o decoro, a consideração, o respeito”. Vale enfatizar: “...como todos sabem...”. E prossegue o autor: “Não havia necessidade de declará-lo a Constituição, nem a lei ordinária; é um direito onipresente no ordenamento civil, penal, público, e por isso mesmo já encontrava tutela na Constituição anterior que, sem embargo de conter o princípio da resposta (muito mais ampla que a resposta no âmbito da imprensa), garantia no par. 36, do art. 153 os direitos ‘decorrentes do regime e dos princípios’ da Carta... Trata-se de um direito universal e natural da pessoa humana...” (ob. cit., 5ª ed., pag. 1.336).
Por isso se afirma que o dano, em virtude das peculiaridades dos fatos, é presumido, tal como já decidiu o STJ:
“Dispensa-se a prova de prejuízo para demonstrar a ofensa ao moral humano, já que o dano moral, tido como lesão à personalidade, ao âmago e à honra da pessoa, por vez é de difícil constatação, haja vista os reflexos atingirem parte muito própria do indivíduo – o seu interior. De qualquer forma a indenização não surge somente nos casos de prejuízo, mas também pela violação de um direito” (STJ – 4ª T. Resp 85.019 – Rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira – 10.03.1998).
Em outra ocasião:
“A jurisprudência desta Corte está consolidada no sentido de que na concepção moderna da reparação do dano moral prevalece a orientação de que a responsabilização do agente que opera por força do simples fato da violação, de modo a tornar-se desnecessária a prova do prejuízo em concreto” (STJ 4ª T. Resp 136.277-0 – Rel. Eduardo Ribeiro – 21.10.1999).
A esse respeito, registre-se: “Dano moral. Lição de Aguiar Dias: o dano moral é o efeito não patrimonial da lesão de direito e não a própria lesão abstratamente considerada. Lição de Savatier: dano moral é todo sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária. Lição de Pontes de Miranda: nos danos morais a esfera ética da pessoa é que é ofendida; o dano não patrimonial é o que, só atingindo o devedor como ser humano, não lhe atinge o patrimônio” (TJRJ 1ª C., Ap. Rel. Carlos Alberto Menezes – j. 19.11.91 – RDP 185/198). E ainda: “O dano simplesmente moral, sem repercussão no patrimônio não há como ser provado. Ele existe tão somente pela ofensa, e dela é presumido, sendo o bastante para justificar a indenização” (RT 681/163).
“Quando se cuida do dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a convergência de duas forças: “caráter punitivo” para que o causador do dano, pelo fato da condenação, se veja castigado pela ofensa que praticou; e o “caráter compensatório” para a vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal sofrido. No dano moral a estimativa pecuniária não é fundamental, segundo escólio de Antonio Chaves (RF 114/11). Mostrou Walter Moraes que “o dano moral não se avalia mediante cálculo matemático-econômico das repercussões patrimoniais negativas da violação – como se tem feito às vezes – porque tal cálculo já seria a busca exatamente do “minus” ou do detrimento patrimonial, ainda que por aproximativa estimação. E tudo isso já está previsto na esfera obrigacional da indenização por dano propriamente dito (CC, art. 1.553)...”. Trata-se, então, de uma estimação prudencial, que não dispensa sensibilidade para as coisas da dor e da alegria, para os estados d'alma humana, e que destarte deve ser feita pelo mesmo Juiz ou, quando muito, por outro jurista, inútil sempre por em ação a calculadora do economista ou de técnico em contas (RT 650/66)” .
Igualmente, não se pode desconsiderar a lição do já mencionado Rui Stocco: “Assim, tal paga em dinheiro deve representar para a vítima uma satisfação, igualmente moral, ou seja, psicológica, capaz de neutralizar ou “anestesiar” em alguma parte o sofrimento impingido.
A eficácia da contrapartida pecuniária está na aptidão para proporcionar tal satisfação em justa medida, de modo que tampouco signifique um enriquecimento sem causa da vítima, mas está também em produzir no causador do mal impacto bastante para dissuadi-lo de igual e novo atentado. Trata-se, então, de uma estimulação prudencial”. É nesse sentido o julgado estampado em RT 707/67:
“A indenização por dano moral é arbitrável mediante estimativa prudencial que leve em conta a necessidade de, com a quantia, satisfazer a dor da vítima e dissuadir, de igual e novo atentado, o autor da ofensa”.
Por isso Humberto Theodoro Júnior pondera:
“O mal causado à honra, à intimidade, ao nome, em princípio, é irreversível. A reparação, destarte, assume o feitio apenas de sanção à conduta ilícita do causador da lesão moral. Atribui-se um valor à reparação, com o duplo objetivo de atenuar o sofrimento injusto do lesado e de coibir a reincidência do agente na prática de tal ofensa, mas não como eliminação mesma do dano moral” (A liquidação do dano moral – Ensaios Jurídicos – o direito em revista, IBAJ – 1996, vol. 2, p. 509).
Diante de todos esses parâmetros, tendo-se ainda em conta a capacidade econômica dos requeridos, o grau de culpa dos ofensores, razoável seja o dano fixado no equivalente a 20 salários mínimos, não mais que isso; o suficiente para evitar enriquecimento ilícito e para inibir os requeridos de novas práticas semelhantes. Não é demais acrescentar, notadamente em vista do que afirmou o requerido Cléber (“Eu exerço o meu direito e vou continuar exercendo”), que o processo tem seu fim didático, agregado ao escopo político, no sentido de ensinar o cidadão a bem exercer os seus direitos. Posto isto julgo procedente a presente ação e condeno os requeridos, solidariamente, a pagarem ao autor, uma indenização por danos morais, que fixo em R$ 12.440,00, com correção monetária desde a data do ajuizamento da ação e juros legais, nos termos do art. 406, do CC, a partir da citação. Condeno os requeridos ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 20% sobre o valor corrigido da condenação.
P. R. I. C.
Atibaia, 20 de janeiro de 2012
Marcos Cosme Porto
Juiz de Direito
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