I - INTRODUÇÃO.
A cobrança da tarifa de esgoto tem gerado debates e interpretações divergentes no âmbito jurídico brasileiro, sendo imprescindível analisar os fundamentos legais e jurisprudenciais que norteiam essa questão.
II - FUNDAMENTAÇÃO LEGAL.
A lei 11.445/07, conhecida como Lei de Saneamento Básico, estabelece diretrizes nacionais para o setor. Em seu art. 3º, inciso I, alínea "b", define "esgotamento sanitário" como "constituído pelas atividades de coleta, transporte, tratamento e disposição final das águas residuárias" (BRASIL, 2007). O decreto 7.217/10, que a regulamenta, dispõe em seu art. 9º que "os serviços públicos de esgotamento sanitário serão prestados com base no sistema separador absoluto, constituído por instalações independentes para cada uma das seguintes atividades: [...] d) coleta; e) transporte; [...] h) tratamento; e i) disposição final" (BRASIL, 2010). Nesse sentido, é possível inferir que a legislação permite a cobrança pelos serviços de coleta, transporte e disposição final dos dejetos, mesmo na ausência de tratamento sanitário completo.
III - JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA
O entendimento acima foi consolidado pelo STJ no julgamento do Recurso Especial 1.339.313/RJ, sob o regime do art. 543-C do Código de Processo Civil de 1973 (Tema Repetitivo 565). O acórdão, de relatoria do ministro Benedito Gonçalves, assim ementou:
"2. À luz do disposto no art. 3º da Lei 11.445/2007 e no art. 9º do Decreto regulamentador 7.217/2010, justifica-se a cobrança da tarifa de esgoto quando a concessionária realiza a coleta, transporte e escoamento dos dejetos, ainda que não promova o respectivo tratamento sanitário antes do deságue.
[...]
4. O tratamento final de efluentes é uma etapa posterior e complementar, de natureza sócio- ambiental, travada entre a concessionária e o Poder Público.
5. A legislação que rege a matéria dá suporte para a cobrança da tarifa de esgoto mesmo ausente o tratamento final dos dejetos, principalmente porque não estabelece que o serviço público de esgotamento sanitário somente existirá quando todas as etapas forem efetivadas, tampouco proíbe a cobrança da tarifa pela prestação de uma só ou de algumas dessas atividades" (BRASIL, 2013).
IV - PONDERAÇÕES.
Não obstante os sólidos fundamentos jurídicos expostos, é necessário tecer algumas ponderações sobre a aplicação da cobrança da tarifa de esgoto. Primeiramente, a Lei nº 11.445/2007, em seu art. 2º, inciso IV, alíneas "b" e "c", prevê os princípios da "universalidade do acesso" e da "modicidade das tarifas" para a prestação dos serviços de saneamento básico (BRASIL, 2007). Assim, a cobrança indiscriminada dessa tarifa pode representar um ônus excessivo para populações de baixa renda, dificultando o acesso a esse serviço essencial e violando o princípio da equidade. Ademais, conforme ressaltado na jurisprudência citada, o tratamento final dos efluentes é uma etapa complementar. Logo, questiona-se a proporcionalidade e razoabilidade da cobrança em situações nas quais sequer exista um sistema minimamente adequado de coleta e afastamento dos dejetos, ofertando-se um serviço deficiente aos usuários.
V - CONCILIANDO INTERESSES E PROMOVENDO A UNIVERSALIZAÇÃO.
Portanto, embora a legislação e a jurisprudência majoritária legitimem a cobrança da tarifa de esgoto mesmo sem o tratamento final, é imprescindível analisar cada caso concreto, considerando as peculiaridades locais, a qualidade do serviço prestado e a capacidade de pagamento dos usuários. O saneamento básico é um direito fundamental, previsto no art. 6º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), e sua universalização deve ser o objetivo primordial.
Nesse sentido, as concessionárias e o Poder Público devem buscar soluções equilibradas, que conciliem a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços com a acessibilidade e a promoção da saúde pública. A lei 11.445/07, em seu art. 29, inciso III, preconiza a adoção de subsídios para atender usuários que não tenham capacidade de pagamento (BRASIL, 2007). Assim, faz-se necessária a implementação de políticas públicas efetivas, garantindo a prestação adequada dos serviços de saneamento básico, inclusive por meio de subsídios e programas assistenciais.
VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cobrança da tarifa de esgoto é legítima e amparada pela legislação e jurisprudência vigentes, desde que observados os princípios norteadores do saneamento básico e a razoabilidade da cobrança em face da qualidade do serviço prestado. Contudo, essa cobrança não pode se tornar um entrave à universalização do acesso, devendo ser ponderada e, se necessário, mitigada por meio de subsídios e programas assistenciais, a fim de promover a equidade e a efetivação do direito fundamental ao saneamento básico.
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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 21 mar. 2024.
BRASIL. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Brasília, DF: Presidência da República, 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm. Acesso em: 21 mar. 2024.
BRASIL. Decreto nº 7.217, de 21 de junho de 2010. Regulamenta a Lei no 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Brasília, DF: Presidência da República, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2010/decreto/d7217.htm. Acesso em: 21 mar. 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.339.313/RJ. Relator: Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 12/06/2013, DJe 21/10/2013. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/? num_registro=201201382609&dt_publicacao=21/10/2013. Acesso em: 21 mar. 2024.