Na acepção moderna de contratos, tomada, à guisa de exemplificação, a doutrina de Orlando Gomes, tais instrumentos são negócios jurídicos — bilaterais ou plurilaterais — cuja firmatura é capaz de gerar obrigações às partes, que se sujeitam à observância das normas de conduta idônea para satisfação dos interesses regulados por aquele acordo.
Dito de outro modo, o encontro de vontades autônomas convergentes traduz-se na instrumentalização de obrigações recíprocas, que dão ensejo à constituição de uma relação jurídica.
Com efeito, no momento da instrumentalização do contrato, as partes devem se submeter a um rigoroso exame de condições e alinhamento de expectativas, de modo que as obrigações e garantias sejam estabelecidas em equilíbrio e de forma capaz de atingir o fim a que se pretende.
Todavia, sobretudo em se tratando de relações de tratos sucessivos — tidas como aquelas cuja execução difere-se no tempo — o contrato está sujeito a uma série de acontecimentos capazes de alterar as bases negociais, ou, ainda, tornar as prestações desequilibradas, ensejando, no mais das vezes, uma onerosidade excessiva a ser suportada por uma das partes.
Diante desta situação, pergunta-se: como proceder no caso em que um contrato se torne excessivamente oneroso?
O ordenamento jurídico brasileiro prevê, notadamente no artigo 317, do Código Civil, as hipóteses em que um contrato poderá ser revisto, pelo juiz, a pedido da parte, em razão de fatos imprevisíveis que acarretem desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o momento de sua prestação.
O cerne do referido dispositivo repousa sobre o acontecimento dos chamados fatos imprevisíveis ou extraordinários, capazes de tornar as prestações contratuais desproporcionais entre as partes. Diz-se que devem ser fatos imprevisíveis [e não imprevistos], porque tais acontecimentos fazem parte do rol de eventos que, em situações normais de negociação e execução do contrato, jamais poderiam ser imaginadas pelas partes. A título de exemplo, tem-se a pandemia de COVID-19, que foi utilizada como fundamento para a repactuação de uma série de contratos e ajustes de prestações.
Diz-se, ainda, que devem ser fatos de caráter extraordinário, porque, na perspectiva da imprevisibilidade, não fazem parte das alterações esperadas em determinado ramo de negócios — como exemplo, o ataque por pragas ou a estiagem são consideradas intempéries ordinárias a que estão sujeitos os contratos agrícolas, de modo que não podem ser aventadas como hipóteses de extraordinariedade para fins de repactuação contratual.
É precisamente esse o entendimento consolidado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Confira-se, em sua integralidade:
RECURSO ESPECIAL. REVISÃO CONTRATUAL. PANDEMIA DA COVID-19. CDC. REDUÇÃO DO VALOR DAS MENSALIDADES ESCOLARES. SUPRESSÃO DE DISCIPLINAS E VEICULAÇÃO DAS AULAS PELO MODO VIRTUAL. SERVIÇO DEFEITUOSO E ONEROSIDADE EXCESSIVA. INEXISTÊNCIA. QUEBRA DA BASE OBJETIVA DO NEGÓCIO JURÍDICO. ART. 6º, INCISO V, DO CDC. EXIGÊNCIA DE DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO IMODERADO. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DO FORNECEDOR. IRRELEVÂNCIA. OBSERVÂNCIA AOS POSTULADOS DA FUNÇÃO SOCIAL E DA BOA-FÉ CONTRATUAL. SITUAÇÃO EXTERNA. REPARTIÇÃO DOS ÔNUS. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTO APTO À REVISÃO DO CONTRATO NA HIPÓTESE. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. As vertentes revisionistas no âmbito das relações privadas, embora encontrem fundamento em bases normativas diversas, a exemplo da teoria da onerosidade excessiva (art. 478 do CC) ou da quebra da base objetiva (art. 6º, inciso V, do CDC), apresentam como requisito necessário a ocorrência de fato superveniente capaz de alterar – de maneira concreta e imoderada – o equilíbrio econômico e financeiro da avença, situação não evidenciada no caso concreto.
Sendo assim, para que se possa pleitear a repactuação de um contrato cujas obrigações tornaram-se onerosamente excessivas para uma das partes, é necessário que (i) se trate de contrato de trato sucessivo; (ii) sejam alterações decorrentes de fato imprevisível ou extraordinário; e (iii) seja manifesta a desproporção entre as prestações.
Nesse sentido, ainda, cabe o destaque do voto do Ministro Luís Felipe Salomão, no âmbito do Recurso Especial 945.166:
Para ensejar a aplicação da teoria da imprevisão – a qual, de regra, possui o condão de extinguir ou reformular o contrato por onerosidade excessiva –, é imprescindível a existência, ainda que implícita, da cláusula rebus sic stantibus, que permite a inexecução de contrato comutativo – de trato sucessivo ou de execução diferida – se as bases fáticas sobre as quais se ergueu a avença alterarem-se, posteriormente, em razão de acontecimentos extraordinários, desconexos com os riscos ínsitos à prestação subjacente.
Mas e no caso de contratos de parceria agrícola?
Os contratos de parceria agrícola assumem importante especificidade, porque guiados por normas próprias — constantes da lei 4.504/64 [Estatuto da Terra] — e normas gerais de direito privado, dispostas no Código Civil. Não se pode olvidar, ainda, que tais contratos devem observar, igualmente, os preceitos gerais de boa-fé e de utilização adequada da terra e do meio ambiente.
Por essa razão, a cláusula rebus sic stantibus aplica-se de forma mitigada, de modo que a repactuação contratual seja efetivada também para a proteção da função social da terra.
Nos casos de contratos de parceria agrícola, deve-se levar em consideração o fato de tratar-se de instrumento que prevê a igual distribuição de riscos entre as partes. Significa dizer que, havendo a desproporcionalidade nas prestações, de forma que os riscos tornem-se excessivamente suportados por apenas uma das partes, estar-se-á diante da possibilidade de repactuação do contrato.
Foi com base nesse juízo que o STJ asseverou, em caso que analisava o contrato celebrado entre uma companhia de alimentos e o pequeno produtor rural, em sede de parceria agrícola, que, em que pese se trate de contrato atípico, o instrumento não pode ser excluído da possibilidade de revisão judicial, sobretudo à luz da legislação agrária e dos dispositivos constitucionais que protegem a atividade rural.
Vistos os contratos de parceria agrícola sob o ângulo da possibilidade de repactuação judicial, tem-se que, de modo geral, devem ter sido expostos à situação de evidente imprevisibilidade ou extraordinariedade, capaz de tornar as prestações manifestamente desproporcionais entre as partes, sobretudo em se tratando de contrato agrário — em que se sobrelevam as normas de proteção ao produtor rural e à função social da terra — e de parceria, em que os riscos devem ser igualmente distribuídos, mitigando-se a cláusula rebus sic stantibus, para operar a sua repactuação.
______________
Cárnio, Thaís Cíntia. Contratos Internacionais: teoria e prática / Thaís Cíntia Cárnio. — São Paulo: Atlas, 2009.
REsp n. 1.182.967/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 9/6/2015, DJe de 26/6/2015;
STJ — REsp 945.166 — Quarta Turma — Rel. Min. Luís Felipe Salomão;
REsp n. 171.989/PR, relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 20/8/1998, DJ de 13/10/1998, p. 129
STJ— RECURSO ESPECIAL Nº 1.998.206 – DF — Rel. Min. Luís Felipe Salomão