Qualquer análise que se faça referente ao valor proposto como mínimo existencial e sua vinculação ao próprio salário-mínimo, no âmbito do disposto no decreto presidencial 11.150/22 leva à conclusão de negacionismo do dever constitucional de proteção do Estado aos consumidores.
Não à toa que membros do Ministério Público e da Defensoria Pública acionaram o STF contra o referido decreto que, relembre-se, ao regulamentar a lei do superendividamento (lei 14.181/21), fixou em 25% do salário-mínimo atual o conceito de mínimo existencial, valor estimado para que uma pessoa possa pagar suas despesas e que não poderá ser utilizado para pagamento de dívidas (aproximadamente R$ 330,00).
As ADPFs 1005 e 1006, foram distribuídas ao ministro André Mendonça, que ainda não analisou os pedidos liminares de suspensão da eficácia do caput e dos §§ 2º e 3º, do art. 3º, do decreto presidencial 11.150, de 26/7/22, para que o “mínimo existencial” seja considerado de acordo com a realidade do consumidor pessoa natural, de tal sorte a respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos sociais consagrados pela Constituição Federal (violação aos arts. 1º, III, 5º, II e XXXII, 6º e 84, inciso IV), Constituição Federal.
E mesmo com a alteração da norma pelo decreto 11.567 de 19/6/23 (o que talvez afaste o fundamento dos pedidos das ações antes mencionadas), que atualizou referido valor para R$ 600 e introduziu como regra a necessidade de apuração do comprometimento do mínimo existencial com base na renda mensal, por meio da contraposição entre a renda total mensal do consumidor e as parcelas das suas dívidas vencidas e a vencer no mesmo mês, a delimitação de mínimo existencial pode ainda gerar controvérsias.
E na prática, diante da vigência do decreto presidencial 11.150/22 e suas alterações, como as cortes têm analisado os pedidos de repactuação de dívidas com bases na lei do superendividamento?
Ainda não há um consenso. Alguns juízes e tribunais entendem que eventual intervenção judicial a fim de resguardar o mínimo existencial para a dignidade e sobrevivência do consumidor deve ser objeto de ponderação específica, de acordo com as peculiaridades e circunstâncias que envolvem cada processo, estabelecendo de forma intuitiva o limite de 30% sobre a renda líquida mensal do consumidor e afastando via controle difuso de constitucionalidade a incidencia do referido decreto.1
Outros, no entanto, diante da prescrição legal e definição (mesmo que escarniosa) do decreto presidencial 11.150/22, adotam como balizador do mínimo existencial o valor agora atualizado de R$ 600 indeferindo pedidos de repactuação, mesmo com o comprometimento, por vezes, de mais de 90% da renda líquida mensal apresentada e comprovada nos autos pelo consumidor2.
Diante deste cenário, deve-se buscar a tutela judicial (com controle difuso de constitucionalidade da referida norma), fundamentando-se o pedido não somente na lei do superendividamento, mas no cumprimento das normas constitucionais e infraconstitucionais que resguardam os direitos dos indivíduos, em cumprimento, inclusive, do Princípio da Dignidade Humana, valendo ainda ponderar que R$ 600 de salário livre sabidamente não é suficiente para fazer face as despesas básicas de sobreviv6encia de qualquer pessoa no Brasil.
Mas e o que diz afinal da lei do superendividamento?
A lei do superendividamento (lei 14.181/21), foi criada com o intuito de oferecer proteção aos consumidores que se encontram em situação de endividamento excessivo. Essa legislação estabelece diretrizes e mecanismos para a repactuação de dívidas, com o objetivo de viabilizar a recuperação financeira dos superendividados.
De acordo com a lei, considera-se superendividado o consumidor que possui dívidas não empresariais e que está comprovadamente impossibilitado de pagar seus débitos de forma integral e dentro do prazo originalmente acordado.
A lei abrange tanto dívidas bancárias quanto dívidas de consumo em geral, como empréstimos, financiamentos, cartões de crédito, mas não abrangem tributos, pensão alimentícia, crédito habitacional, crédito rural e produtos e serviços de luxo.
E mesmo que exista interesse federal, cabe à Justiça comum estadual e/ou distrital processar e julgar as demandas oriundas de ações de repactuação de dívidas decorrentes de superendividamento3.
A lei do superendividamento tem como principal objetivo proteger os consumidores em situação de endividamento excessivo, oferecendo mecanismos para renegociação de dívidas de forma justa e equilibrada. Além disso, busca-se evitar ações de execução, reduzir encargos financeiros abusivos, estabelecer prazos viáveis para pagamento e garantir que as partes envolvidas sejam ouvidas e consideradas durante o processo de repactuação.
A lei busca aliviar a carga financeira do devedor, oferecendo condições realistas de pagamento, bem como assegurar que os credores recebam pelo menos parte do valor devido. Dessa forma, busca-se evitar prejuízos excessivos para ambas as partes e promover uma solução justa e sustentável para o superendividamento.
Como funciona para o endividado após conhecido o superendividamento?
Após identificar-se como superendividado, o consumidor pode buscar a repactuação de suas dívidas de forma extrajudicial ou através de uma ação judicial.
Importante que o consumidor comunique os seus credores de sua intenção de fazer valer o seu direito perante as regras do superendividamento, tentando uma conciliação extrajudicial com todos os credores antes de ingressar em juízo, pois assim possivelmente obterá a recusa e/ou formalizará a omissão e poderá ingressar com maior chance perante o poder judiciário, sempre dando ênfase e preferência à composição, o que é muito importante.
O devedor pode recorrer a órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, como o Procon, o Ministério Público e a Defensoria Pública para negociar seus débitos em aberto e/ou contar com apoio jurídico especializado.
Importante de toda forma notificador seus credores para exigir o envio de cópia dos contratos firmados (em especial com as instituições financeiras que por vezes são firmados por adesão no momento da concessão do crédito e por via eletrônica), de forma a bem estruturar o plano de pagamento e/ou analisar eventuais ilegalidades e supressão de direitos.
Em caso de interposição da ação judicial, que pode, a depender do caso concreto, cumular-se com pedido de restituição de valores e indenização por danos morais (abusividade dos contratos firmados e pagamento indevido), o processo inicia-se com a apresentação de uma petição inicial ao juiz, que deverá conter informações detalhadas sobre as dívidas, sua origem e valores, bem como a demonstração da incapacidade de pagamento dentro das condições atuais e o plano de pagamento pretendido, de forma a se garantir o mínimo existencial (lembrando que o ideal é fazer uma composição das despesas básicas com moradia, alimentação, saúde, educação, etc.).
O plano judicial compulsório (caso a conciliação não seja exitosa) assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual em, no máximo, cinco anos.
Já no caso, por exemplo, de consumidor idoso, já há decisão no sentido de se reconhecer uma hipervulneralibilidade e até mesmo a existência de dano, por ausência ou negligência do dever de informação em dívidas por este contraídas, sendo possível, agora por meio da ação de superendividamento, promover a revisão das cláusulas pactuadas para a mantença do seu mínimo existencial4.
Se o consumidor não detiver cópia de todos os contratos firmados, mesmo os tendo requerido extrajudicialmente, deve requerer a inversão do ônus da prova, especialmente diante do Tema 411, em repetitivo definido pelo STJ5, bem como em sede liminar desde o início buscar a limitação dos descontos em seu contracheque, nos casos de consignado e requerer que os credores se abstenham de inserir seu nome nos órgãos de proteção ao crédito, evitando-se ainda mais prejuízo.
Durante o processo judicial, podem ser realizadas audiências de conciliação entre as partes envolvidas. Essas audiências têm como objetivo buscar acordos que sejam favoráveis tanto para o devedor quanto para os credores. O juiz responsável pelo caso pode determinar medidas como a suspensão das ações de execução, a redução de juros e multas abusivas, a extensão do prazo de pagamento e até mesmo a redução do valor total da dívida em situações excepcionais.
Como enquadrar-se nesta lei?
É possível ação revisional de superendividamento? Para se enquadrar na lei do superendividamento, é necessário cumprir alguns requisitos, tais como: ser pessoa física, não ser empresário ou autônomo, ter boa-fé na contratação das dívidas, não ter sido condenado por crime contra o patrimônio ou por fraude financeira nos últimos cinco anos, e, principalmente, comprovar a incapacidade de pagamento das dívidas.
É importante ressaltar que a lei do superendividamento não se trata de uma ação revisional de contratos. A ação revisional tem o propósito de revisar as cláusulas contratuais, incluindo juros e encargos, com o objetivo de reduzir os valores devidos. Já a lei do superendividamento busca estabelecer uma repactuação equilibrada das dívidas, considerando a situação financeira do devedor e o necessário para que consiga viver tendo satisfeitas suas necessidades básicas (suas e de sua família se for o devedor o único provedor).
Portanto, é fundamental compreender a diferença entre ação revisional e a ação judicial de repactuação de dívidas pela lei do superendividamento. Enquanto a ação revisional foca na revisão contratual, a lei do superendividamento tem como finalidade a renegociação global das dívidas, visando a sustentabilidade financeira do superendividado.
O que esperar como resultado prático?
Se observados os contornos constitucionais para definição do mínimo existencial no caso concreto, a ação judicial de repactuação de dívidas pela lei do superendividamento é uma importante ferramenta para auxiliar consumidores em situação de endividamento excessivo.
Essa legislação busca trazer justiça e equidade nas negociações entre devedores e credores, visando soluções que sejam viáveis e promovam a superação do superendividamento.
Através desse processo é possível restaurar a estabilidade financeira e oferecer uma chance para os consumidores reconstruírem suas vidas econômicas de maneira saudável e sustentável sem que a inadimplência seja institucionalizada.
O índice de recuperabilidade de crédito e, em especial das garantias, no Brasil é pífio se comparado a outros países e, normas como a lei do superendividamento e o marco legal das garantias6, esta última hoje em análise na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado podem contribuir para a “desjudicialização” massificada e para a recuperação efetiva de bens.
E a partir de experiências concebidas e implementadas pelos Tribunais de Justiça das unidades federativas, a exemplo de Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Mato Grosso e Ceará e de outras práticas bem-sucedidas, atinentes ao tema, o CNJ, elaborou uma cartilha, que certamente servirá como instrumento prático a contribuir para a efetividade das modificações legislativas introduzidas pela lei 14.181/21, com indicativo (mesmo que orientativo) de procedimentos para uniformização dos instrumentos judiciais e extrajudiciais de operacionalização da referida norma, valendo a consulta7 tanto por consumidores, como por operadores do direito.
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1 TJDFT, AGI n. 0735778-86.2021.8.07.0000, Des. Rel. Leonardo Bessa, Dje de 23/02/2022;
2 TJDFT, AGI n. 0705198-05.2023.8.07.0000, Des. Rel. Sandra Reves, Dje de 31/05/2023;
3 STJ, CC 193.066-DF, Rel. Min. Marco Buzzi, Dje de 28/03/2023.
4 STJ, Resp 1851310/RS, Rel. Min. Marcos Belizze, Dje de 18/12/2019.
5 Tema 411 – STJ: É cabível a inversão do ônus da prova em favor do consumidor para o fim de determinar às instituições financeiras a exibição de extratos bancários, enquanto não estiver prescrita a eventual ação sobre eles, tratando- se de obrigação decorrente de lei e de integração contratual compulsória, não sujeita à recusa ou condicionantes, tais como o adiantamento dos custos da operação pelo correntista e a prévia recusa administrativa da instituição financeira em exibir os documentos, com a ressalva de que ao correntista, autor da ação, incumbe a demonstração da plausibilidade da relação jurídica alegada, com indícios mínimos capazes de comprovar a existência da contratação, devendo, ainda, especificar, de modo preciso, os períodos em que pretenda ver exibidos os extratos.
6 Projeto de Lei (PL) 4188/21.
7 Acessado em 12/07/2023. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/cartilha-superendividamento.pdf