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O princípio da imutabilidade do nome ainda existe?

Pode-se afirmar, com Martha El Debs, que impera hoje “o princípio da definitividade (e não mais da imutabilidade) do nome e com ele consagram-se diversas hipóteses de alteração do nome civil (...). Atendeu-se, pois, a adequação plena do instituto à realidade social” .

4/7/2023

Neste breve escrito, buscarei expor o estado da arte do tema “nome civil” no ordenamento jurídico brasileiro, já consideradas as inúmeras alterações promovidas pela lei 14.382/22.

A ideia é que o leitor possa conhecer a evolução da doutrina e da jurisprudência dos tribunais superiores sobre o assunto. Também será feita menção a normas da Corregedoria Nacional de Justiça, bem como da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, que regulam o procedimento extrajudicial de alteração de nome no Registro Civil de Pessoas Naturais.

Ao final da leitura, espero que seja possível a compreensão das hipóteses em que o ordenamento jurídico permite a alteração do nome da pessoa natural, bem como a reflexão sobre a permanência ou não do princípio da imutabilidade no ordenamento jurídico brasileiro.

Concepção tradicional do nome civil: o vigor do princípio da imutabilidade

O Código Civil de 1916 não dispunha sobre o direito ao nome. Clóvis Beviláqua justificava a ausência dessa previsão normativa: “O nome deve ser compreendido como a designação da personalidade. Mas a personalidade, forma pela qual o indivíduo aparece na ordem jurídica, é um complexo de direitos, não é um direito. Da mesma forma, o nome não pode ser um direito, por isso mesmo que designa o núcleo de onde irradiam os direitos”1. Essa ideia foi superada há tempos. O nome passou a ser compreendido também como um direito da personalidade. O Código Civil de 2002 tratou expressamente do direito ao nome2.

Ainda no século passado, afirmava Orlando Gomes: “Embora o nome seja simplesmente sinal distintivo de cada homem, admite-se ser um direito da personalidade”3. O reconhecimento de que o nome era um direito concedia ao indivíduo duas faculdades: usá-lo e defendê-lo. Não era abrangida, porém, a faculdade de alterá-lo a seu bel-prazer.

Destacava o jurista baiano: “A lei pune as alterações do nome não autorizadas porquanto a proteção não se organiza exclusivamente no interesse do indivíduo, mas, também, no uso da sociedade”4. No mesmo sentido, destacava Serpa Lopes a natureza bifronte do nome civil: “Não é possível, porém, deixar de considerar que o nome, com o ser um direito, é simultaneamente uma obrigação. Nele colabora um interesse social de maior relevância”5.

Antes da promulgação da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), comentando o decreto 4.857/39, Serpa Lopes explicava que o nome era composto de basicamente dois elementos fixos (nome de família – ou apelido, ou patronímico – e prenome), além dos contingentes (títulos, pseudônimos, sobrenomes – que não se confundiam com os nomes de família –, etc.).

Os elementos do nome poderiam ser adquiridos ou alterados de pleno direito (nascimento) ou em razão de um ato jurídico (casamento, adoção, ou ato do próprio interessado mediante requerimento judicial). Interessam-nos sobremaneira os elementos adquiridos ou alterados em razão de ato do próprio interessado mediante requerimento judicial.

Os artigos 70 e 71 do decreto 4.857/39 tinham redação praticamente idêntica à dos artigos 57 e 58 da lei 6.015/73 (antes das alterações a que se submeteram, a serem analisadas adiante). Basicamente, permitiam ao “interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil (...), alterar o nome”; “qualquer alteração posterior do nome, só por exceção e motivadamente será permitida por despacho do Juiz togado”.

Serpa Lopes sustentava “que quando a lei se refere a nome, consigna-o num sentido restrito, sem incluir o prenome, pois este é objeto de uma regulamentação à parte (...). Em segundo lugar, força é convir que essa permissão da lei ao interessado, durante o primeiro ano de sua maioridade, não pode prejudicar o caráter de fixidade do nome patronímico (...). Há mesmo quem considere o princípio da imutabilidade do nome patronímico mais rigoroso do que o inerente ao prenome”6.

Para a boa compreensão do pensamento do eminente civilista, é fundamental observar que, a seu ver, sobrenomes não se confundiam com nomes de família (patronímicos ou apelidos)7. O alerta é necessário porque, atualmente, a doutrina não faz distinção entre nomes de família e sobrenomes, sendo ambos tidos como sinônimos. Para Serpa Lopes, em princípio, os sobrenomes, como elementos contingentes, poderiam ser excepcionalmente alterados; os nomes de família, assim como os prenomes, por serem elementos fixos, não.

Na verdade, porém, o próprio Serpa Lopes admitia hipóteses em que os nomes de família e os prenomes poderiam ser alterados. Assim, pode-se concluir o seguinte: o que ele efetivamente defendia era a existência do princípio da imutabilidade do nome tanto para os elementos fixos quanto para os contingentes. Em relação àqueles, porém, o princípio se aplicaria com maior rigor e intensidade.

Thiago Pagliuca
Juiz de Direito do TJ/SP. Mestre e doutor em Direito pela USP, professor do curso popular de formação de Defensoras e Defensores Públicos e de cursos de pós-graduação.

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