Migalhas de Peso

Rui Barbosa e os direitos humanos dos adversários

O filósofo Rui Barbosa pode ser considerado o precursor dos direitos humanos no Brasil, na medida em que postulou o direito a uma defesa criminal de adversário político, quando praticamente ninguém aceitava essa ideia.

15/2/2023

Nos tempos atuais, vemos coisas inimagináveis acontecer, julgamentos políticos, violação de importantes princípios norteadores da magistratura, violação de direitos fundamentais e coações intermináveis por meio de inquéritos ilegais e inconstitucionais. Nesse caldo conflituoso de ação e reação o país se desestabiliza cada dia mais, ora por conta de reflexos de discursos do governo anterior (Bolsonaro), ora por conta de perseguição implacável protagonizada por certo setor do judiciário, cujo nome não diremos porque podemos ser presos pela “democracia” (como se já não fosse motivo suficiente pra isso acontecer).

Nesse cenário de embate político e ideológico os direitos humanos vão sendo definhados lentamente em relação a quem é adversário do poder vigente, como um camelo afundando numa areia movediça sem ter pra quem pedir ajuda.

Nosso sistema regional de proteção aos direitos humanos define claramente quem é o sujeito de direito alcançado pela proteção da convenção americana de direitos humanos, conhecida também como pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969. Esse sujeito detentor de toda proteção, neste sistema contido, é definido como pessoa humana, nos termos do artigo 1°, tópico 2:

2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

A partir desta definição não se pode de modo algum tentar desvirtuá-la ou, como normalmente acontece, ignorá-la aos seus adversários. Nosso maior legado na filosofia jurídica, Rui Barbosa, sedimentou um dos mais importantes postulados de direitos humanos do nosso mundo jurídico, o de que não se pode negar o direito nem mesmo aos adversários. Seu amigo e correligionário Evaristo de Morais, aflito por ter sido demandado a defender um dos adversários do seu mentor intelectual, Rui Barbosa, escreveu-lhe com notória preocupação acerca da possibilidade de defender seu desafeto, o médico José Mendes Tavares, acusado de mandante de um crime de homicídio de grande repercussão à época.

Rui, por sua vez, agindo por meio da mais honrosa e rara ciência de justiça, respondeu-lhe que não haveria qualquer problema no feito, pelo contrário, Evaristo deveria fazer tal defesa. O réu era um adversário político de Rui da campanha civilista à presidência, mas não era todo o problema que o acusado tinha naquele momento. Ninguém aceitava defendê-lo por considerá-lo indigno, pois antes de ser condenado pela justiça, já era condenado pela imprensa da época.

Não havia dúvidas entre o povo que acompanhava o caso pelos jornais, uma vez que o acusado era sempre retratado como culpado pelo crime. Diante deste cenário, ninguém aceitava assumir o caso pela defesa, momento em que a demanda chegou a Evaristo de Morais que imediatamente interpelou seu amigo.

Rui ainda não é considerado um filósofo do direito, mas o que lhe faltava de diplomação neste sentido, sobrava de sapiência jurídica e notável sensibilidade em relação à percepção da natureza humana e seus conflitos. Regido por este norte, Rui Barbosa protagonizou a criação de um dos ensinamentos mais importantes do direito penal, o de que o advogado (ou defensor público) nunca deverá recusar a defesa de alguém por mais execrável que pareça o crime cometido ou a acusação que lhe pesa sobre os ombros.

Assim, nascia um dos postulados mais consagrados do código de ética da advocacia, nos termos que constam do artigo a seguir exposto.

Art. 21. É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado.

Na época, (1911) não havia ainda a cultura jurídica de direitos humanos, motivo pelo qual devemos a Rui uma honrosa menção e reconhecimento como sendo um dos primórdios da defesa daquilo que chamaríamos pela nomenclatura de Direitos Humanos aqui no Brasil.

Qual lição podemos tirar deste emblemático caso? Bem, certamente não veríamos tal proeza de nenhum lado da política dos últimos cem anos, menos ainda no nosso atual cenário. Mas, importa arregimentar todos quantos puderem se assemelhar a Rui Barbosa, pois os nossos adversários no campo da política ou do embate de ideias não devem ser excomungados da raça humana diante algum crime que por ventura tenha cometido. Estaríamos nós extinguindo a condição de adversários e os considerando somente como inimigos capitais? É o que nos parece. Entretanto, nenhum dentre aqueles que ainda têm alguma força ética dentro de si, que ainda guarda alguma coisa de humano ou cristão, deve tratar seus adversários como “coisas” a despeito de nossas divergências. A lição tirada do caso de Rui é a de que ninguém deve ser tratado como ser inferior, de segunda classe, como se fosse uma “coisa” ao invés de ser tratado como alguém, como um humano.

Os direitos humanos devem ser defendidos por todos quantos se achem (também) humanos, uma vez que, como bem diz um importante intelectual conservador, Paulo Figueiredo, o chicote muda mão. Aqueles, portanto, que defendem a execração e violação das garantias consagradas a todos quantos se achem sob julgamento do poder do Estado, podem estar alimentando o que chamamos de monstro do pântano, o autoritarismo.

Ao alimentar o autoritarismo contra nossos adversários passamos a saciar uma fome que não vai se contentar com o cardápio de ocasião, pois um dia, um dia que não será lembrado como “um belo dia”, o monstro do pântano vai sentir fome (vontade) e diante de alguma situação semelhantemente àquela que o levou a devorar seus adversários, também irá degustar os que o alimentaram no passado. O autoritário que força um paço à frente e não encontra resistência não recua por conta própria. Hoje as vítimas são umas, amanhã serão outras. O pântano começa a se estender a áreas cada vez além de sua natural circunscrição, pois o monstro precisa ter certeza de que ninguém irá passear livremente sem seu consentimento. É aqui que as liberdades e direitos humanos começam a ser caçados.

Rui Barbosa, como um célebre pensador do campo do direito que era influenciado pelo direito dos EUA, e com uma concepção além do seu tempo, como todo exímio pensador o é, não deixou que sua vaidade odiosa falasse mais alto que suas virtudes. Ele poderia orientar seu amigo e admirador, Evaristo de Morais, a não defender o acusado pela justiça e já condenado pela imprensa, mas não o fez. Apenas a título de comparação, imaginemos se um amigo de Nietzsche o indagasse sobre se poderia defender um padre ou pastor protestante, o que ele possivelmente responderia? Tenho comigo que o acusado teria morrido no cárcere, faminto e sedento.

Não precisamos mais dos nossos direitos que nossos desafetos dos deles, o egoísmo e ódio têm deixado muitas pessoas cegas e violentas. Mesmo aquelas que ocupam cargos ou postos nos quais esses direitos são protegidos não cedem aos freios morais ou jurídicos que precisam obedecer, contrariamente a isto, apenas panfletam frases prontas, expressões de efeito em discursos vazios. Quem tá à frente de um ministério, por exemplo, precisa atuar pra todos, na medida do possível. Não se deve fazer uso de revanchismos políticos pra se omitir de sua missão de proteger e acolher tantos quantos dele precisem.

Nossos adversários podem até dormir na chuva enquanto o olhamos pela janela, pois não sabemos até que ponto ele nos odeia, mas não podemos deixá-lo desassistido do poder do Estado, cuja atuação poderia ser feita pela assistência social. O ódio não pode ser maior que a justiça, mesmo que até nosso conceito do que é justo ou não seja em grande medida particular. Justiça no entendimento popular é diferente do entendimento jurídico, mas não devemos deixar que nossos instintos primitivos sejam mais fortes que nosso sentimento ético ou moral.

Assim, Rui Barbosa transpassou uma simples correspondência, na qual escreveu ao seu amigo Evaristo, pra uma das mais importantes lições do nosso direito penal e deontologia forense. Nossos adversários são uma parte essencial de nós, pois eles nos permitem ver aquilo que nossos olhos ignoram.

Com nossos inimigos precisamos ser cuidadosos, com nossos adversários precisamos estar atentos pra ouvi-los, em ambos os casos, não devemos ser bárbaros, caso eles também não sejam. Assim, o mesmo direito que nos assiste deve também assisti-los.

Marcelo Vasconcelo
Advogado, jornalista credenciado no CRP, articulista de portais, autor independente, membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da 3° subseção da OAB/SP, autor de trabalhos sobre Nietzsche.

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