De autoria do Deputado Estadual Vinícius Camarinha, tramita na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de lei 596/22, que objetiva a alteração da lei Estadual 9.192/95 para o fim de acrescer dispositivos que versam sobre os procedimentos administrativos de fiscalização, autuação, dosimetria e fixação de penalidade-base conduzidos pelo PROCON/SP.
Nos termos de sua justificativa, as alterações seriam necessárias – e indispensáveis – tendo em vista que, desde a entrada em vigor da referida norma, os hábitos consumeristas passaram por diversas mudanças e não estariam mais em consonância com o que estabelece a lei Estadual 9.192/95.
Em suma, propõe o Deputado Estadual: i) a digitalização dos processos administrativos; ii) a inclusão de uma nova modalidade de sanção administrativa, isto é, a advertência; iii) a mudança da dosimetria das penas; e, ainda, iv) a alteração da base de cálculo da sanção de multa.
Pois bem.
Há que se registrar, de início, que as propostas do PL 596/22 não se concentram em - apenas - atualizar a legislação estadual. Pelo contrário, o texto legislativo sobrepõe-se, e muito, às normas do Código de Defesa do Consumidor.
Nesse aspecto, cumpre observar que, muito embora a competência para legislar sobre as relações de consumo seja concorrente à União, aos Estados, ao Distrito Federal (artigo 24 da Constituição Federal) e aos Municípios (artigo 30 da Constituição Federal), os Estados não poderão dispor livremente sobre a matéria.
Em atenção ao princípio da hierarquia das normas, na hipótese da competência concorrente, insta assentar que a caberá à União a edição de normas gerais, enquanto aos Estados e Municípios somente a complementação de eventuais lacunas, a depender das peculiaridades regionais. Significa dizer que a norma estadual que se propõe a substituir – e não complementar – uma lei federal, extrapola a sua competência.
E esta é a situação que se verifica no PL 596/22. São diversas as propostas que superam a norma geral editada pela União – lei Federal 8.078/90 (Código de Defesa do Consulente). Seja pela adição de uma nova modalidade de sanção, a advertência (artigo 23 Z, I), seja pela alteração da dosimetria e dos regramentos da pena de multa (artigo 23-A-I), entre tantas outras.
No que concerne à advertência, em que pese se tratar de uma modalidade de sanção administrativa, ela não está prevista no Código de Defesa do Consumidor. Estar-se-ia, diante, portanto, de uma lei estadual que extrapolaria a norma geral.
Sobre esta “nova” sanção, há que se pontuar uma importante questão. Seria ela adequada para a punição de atos lesivos aos consumidores? Se um fornecedor, ainda que na condição de infrator primário, vier a comercializar um produto contaminado, assim como recentemente ocorreu no caso dos petiscos para cachorros - que levaram à morte dezenas de animais -, bastaria a imposição de uma pena de advertência?
Segundo o projeto (artigo 23 Z, §1º), a advertência deverá ser a primeira sanção a ser aplicada ao infrator, não mais cabendo ao gestor público o seu poder discricionário quanto à melhor alternativa, de acordo com a gravidade da infração.
No que tange à sanção de multa, se a proposta assim prevalecer, a penalidade passará a ser graduada de acordo com a natureza e o grupo da infração. Deixará de observar, portanto, a vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor, como estabelece expressamente o artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor.
Há que se salientar que essas mudanças em nada se aproximam dos interesses dos consumidores. Além de prever a exclusão da vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor do cálculo da sanção pecuniária, pretende o projeto alterar a base de cálculo da multa, substituindo a receita bruta do fornecedor (artigo 3º da Portaria Normativa 81/21) para o valor do produto ou do serviço (artigo 23 A-I do PL 569/22).
Com isso, é muito provável que as multas deixem de ser uma importante ferramenta para assegurar a consecução dos direitos do consumidor e passem a figurar como meras formalidades de um procedimento sancionatório, pois certamente alcançarão valores irrisórios, na maior parte dos casos.
E em tais hipóteses, na prática, as multas equiparar-se-ão aos efeitos da pena de advertência, distanciando-se do caráter pedagógico - e punitivo – da constrição monetária.
É oportuno trazer à baila, mais uma vez, o exemplo dos petiscos contaminados que mataram dezenas de cachorros pelo país. Neste caso, seria correto impor a multa ao fornecedor tendo como base de cálculo o valor do produto (cerca de R$ 5,00 por embalagem)? A sanção pecuniária atingiria as suas finalidades pedagógica e punitiva?
Importa registrar que as sanções pecuniárias de baixo valor representam verdadeiro obstáculo aos gestores públicos que, por muitas vezes, veem-se obrigados a avaliar o custo-benefício de sua aplicação, haja vista o alto custo de mobilização da máquina administrativa para a instauração de um procedimento sancionador. Além disso, quase sempre se observa a ineficácia da sanção, pois a pequena monta não teria o condão de refletir qualquer repreensão ao fornecedor.
Com isso, o poder de fiscalização do PROCON/SP, que hoje é indispensável para a garantia dos direitos do consumidor, estará exposto ao risco de ser duramente enfraquecido.
E como se não bastasse a alteração da base de cálculo das multas, a proposta ainda prevê a hipótese do concurso formal (artigo 23 A-I, §4º), o que certamente beneficiará os fornecedores que vierem a cometer infrações de mesma natureza.
No mais, cumpre assentar que, em sentido diverso do que estabelece o ordenamento jurídico atual quanto à transparência e ao acesso aos dados, o projeto de lei, em seu artigo 23-A, impõe sigilo ao processo administrativo de fiscalização, autuação e sancionatório até a decisão final, não permitindo a sua consulta a qualquer interessado. Evidente violação constitucional (artigos 5º, LX, e 37), cujos dispositivos garantem ao cidadão a publicidade dos atos administrativos.
Há que se atentar, ainda, ao fato de que a digitalização dos processos, assim como proposto, não poderá representar qualquer barreira ao acesso dos serviços do PROCON pelos cidadãos, sob pena de restar violado o que estabelece o artigo 4º do CDC.
Não se pode olvidar que uma generosa parcela da população não tem acesso à internet, seja para registrar eventual reclamação ou, até mesmo, para cadastrar um simples endereço de e-mail. Além disso, a transição dos processos para a forma eletrônica exige do poder público a adequação de suas estruturas internas, seja para a aquisição de novos equipamentos e/ou para a capacitação dos agentes.
Nessa ordem de ideias, não há como afastar os diversos indícios de inconstitucionalidade do Projeto de lei 596/22. Porém, a sua aprovação é iminente, pois a proposta tramita em regime de urgência e, na data de 21/12/2022, conta com o parecer favorável das Comissões de Constituição, Justiça e Redação, de Administração Pública e Relações do Trabalho e de Finanças, Orçamento e Planejamento (Parecer 876/22).
Se aprovada, e nesses termos, a proposta legislativa não só representará um triste retrocesso para as relações de consumo, mas também o enfraquecimento do PROCON, um órgão cuja atuação é fundamental para a garantia dos direitos dos consumidores.