1. Introdução
Falar sobre os princípios constitucionais no processo administrativo sancionador no âmbito da Previc é uma tarefa complexa e arriscada. Na prática, princípios consagrados pela jurisprudência e doutrina nem sempre são acompanhados pelos auditores fiscais, pela Diretoria Colegiada da PREVIC, e pela Câmara de Recursos da Previdência Complementar - CRPC. Além disso, algumas interpretações administrativas vêm oscilando ao longo do tempo.
Assim, este artigo procura apresentar um brevíssimo cenário da melhor interpretação das garantias individuais sob a ótica da Constituição. O panorama aqui traçado, entretanto, não significa que as decisões administrativas serão no mesmo sentido. Desse modo, é possível que o cidadão tenha seus direitos violados e seja obrigado a buscar a tutela do poder judiciário em algumas situações.
2. Reserva Legal
A Constituição, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto de São José da Costa Rica estabelecem que não existe crime sem lei e, consequentemente, não há pena sem lei.1 É o chamado princípio da reserva legal.
No Brasil, apenas a lei em sentido estrito pode ser utilizada para prever um crime. Até mesmo leis delegadas e medidas provisórias estão excluídas.2 No âmbito do direito administrativo sancionador, por decorrência lógica, vigora o mesmo princípio: Apenas a lei em sentido estrito pode prever o ilícito administrativo. Por efeito, o poder regulatório do executivo como, por exemplo, o decreto 4.942/03, teria limites muito estreitos. E, por isso, diversos autores afirmam que não é possível sanção administrativa sem uma lei que descreva qual é a conduta proibida.3
3. Irretroatividade
Pelo princípio da irretroatividade, as leis que estabelecem crimes e ilícitos administrativos só retroagem para beneficiar o indivíduo. Significa dizer que, se a lei cria um novo ilícito administrativo ou agrava a previsão de pena, apenas as condutas posteriores à data de sua vigência serão atingidas. Em contrapartida, se a nova lei extingue o ilícito administrativo, o cidadão poderá ter sua situação alterada.4
Esse princípio chegou a ser explicitado pela Previc no breve momento histórico em que a autarquia conseguiu aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas ao unificar e tornar públicos seus entendimentos por meio de súmulas. Vejamos:
Súmula 2 Aplica-se na Previdência Complementar Fechada o princípio da retroatividade da norma mais benéfica, inclusive na hipótese de enquadramento decorrente da alteração promovida pela Resolução CMN 3.792, de 24.9.09. Deliberação 2 de 17/5/11.
Além da Constituição e dos pactos internacionais de direitos humanos que garantem a irretroatividade, é necessário observar a lei 9.784/99 que rege o processo administrativo e expressamente prevê a irretroatividade.5
Como não bastasse, para tentar enfrentar o que é conhecido como fenômeno do Direito Administrativo do Medo e o Apagão das Canetas, sobrevieram importantes alterações à LINDB – lei de Introdução à Normas do Direito Brasileiro. A lei modificadora (13.655/18), de tão relevante, chega a ser chamada de lei da Segurança Jurídica. Entre muitos dispositivos, é reforçado o conceito de que as orientações gerais da época do ato devem ser consideradas. Ademais, mesmo a mudança de orientação deve ser precedida de regime de transição.6
A lei da Segurança Jurídica não fica por aí. Determina — de forma cogente — que as autoridades editem súmulas administrativas para o aumento de segurança jurídica.7 Infelizmente, no entanto, a Previc ainda não conseguiu retomar sua antiga prática de editar súmulas.
4. Contraditório e Ampla Defesa
O caráter dialético do processo administrativo sancionador exige o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa. Aliás, esses princípios também estão consagrados na Constituição, no Pacto de San José da Costa Rica, e na Declaração Universal de Direitos Humanos.8
No âmbito do processo administrativo sancionador da Previc, com efeito, o princípio do contraditório pode ser desdobrado em três direitos subjetivos do administrador de EFPC:
- direito à plena informação: o cidadão terá acesso integral a todos os documentos relativos aos fatos a que a fiscalização teve acesso. Esse direito abarca, até mesmo, documentos que a fiscalização acessou, mas não usou como fundamento da infração. Inclui, também, a integralidade do procedimento administrativo pré-processual de AFDE – Ação Fiscal Direta Específica e dos atos administrativos que o antecederam e fundamentaram sua instauração;
- direito à reação: o cidadão tem o direito a responder às acusações; e
- direito à influência: o cidadão tem direito a ver seus argumentos levados em consideração pela Previc, que só poderá negá-los de forma fundamentada e com motivação explícita, clara e congruente.
O princípio da ampla defesa, por sua vez, consiste na obrigação da Previc colocar à disposição todos os meios a seu dispor para o cidadão realizar sua defesa, inclusive, garantindo prazo razoável para manifestação. Desta maneira, por exemplo, não se admitiriam práticas da autarquia tais como, exemplificadamente:
- apresentar autos de infração ou inquéritos administrativos com anexos propositadamente desorganizados;
- lançar simultaneamente — para prejudicar a defesa — vários autos de infração ou inquéritos administrativos sobre diferentes fatos; e
- omitir qualquer informação ou documento sobre a cadeia de atos administrativos que antecederam e/ou fizeram parte da AFDE – Ação Fiscal Direta Específica.
5. Presunção de Inocência
No processo administrativo sancionador, por força do princípio da presunção de inocência, art. 5º, LVII, da Constituição, cabe à fiscalização produzir a prova da ocorrência do ilícito.9
Deste modo, o administrador de EFPC investigado, a rigor, não tem que provar nenhum fato e nem sua inocência, pois é ônus do auditor fiscal produzir a prova necessária para o julgamento pela Diretoria Colegiada da Previc. Chama-se ainda atenção para a teoria da perda de uma chance probatória no processo penal que é extensível ao processo sancionador.
Em suma, a tese sustenta que se houver possibilidade de produzir um conjunto probatório robusto sob o crivo do contraditório, a acusação não pode se satisfazer com uma prova limitada produzida unilateralmente nos autos. Logo, a desistência da acusação de provar o fato típico provoca a perda de uma chance e viola os direitos e garantias fundamentais do cidadão.
6. Conclusão
Apesar de alguma controvérsia, os princípios de direito penal e de proteção dos direitos humanos aplicam-se amplamente no campo do direito administrativo sancionador. Assim, o processo administrativo sancionador é um instrumento concebido justamente para salvaguardar direitos e garantias fundamentais do cidadão sujeito a uma persecução por iniciativa do Estado.
Assim, transpondo os argumentos do processo penal para o processo administrativo sancionador da Previc, existe uma relação de polaridade entre a pretensão punitiva do Estado e os direitos do cidadão de proteção pessoal de seu patrimônio e do direito ao livre exercício de sua profissão.
Tal círculo protetivo do direito do cidadão existe mesmo no procedimento administrativo pré-processual de fiscalização destinado à verificação de situações pontuais (AFDE – Ação Fiscal Direta Específica) no qual são praticados atos administrativos secretos, não contraditórios e sem exercício de defesa.10
Aliás, considerando que a Previc é, ao mesmo tempo, autarquia fiscalizadora e julgadora, há sempre um potencial risco teórico de falha no dever de imparcialidade. Esse risco pode ser, inclusive, agravado pelas metas impostas anualmente para autarquia que deve cumprir uma agenda de ações fiscais em prazos desafiadores. De outro lado, apenas a atenção rigorosa ao conjunto de princípios garante o cumprimento do papel do Estado. Portanto, a observância aos princípios constitucionais não deve ser flexibilizada ou relativizada, mas — ao contrário — reforçada.
______________
1 O art. 5º [...] XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
2 Vide artigos 68,§1º e 62, §1º, I, “b” da Constituição.
3 “Em definitivo: sanção administrativa só pode decorrer de lei anterior, e lei em cunho formal (não bastando simples medida provisória, que não passa de lei sob condição, lei a título precário – o que, a toda evidência não se presta a definir infrações e respectivas sanções: a repercussão e a profundidade do enquadramento infracional e da decorrente submissão sancionatória são incompatíveis com um juízo de validade definitiva pendendo da hipotética conversão da medida em lei).” FERRAZ, Sérgio. DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 154-155.
Seria imprescindível, à luz desta primeira posição, que as infrações possíveis por um agente fossem exaustivamente enumeradas com o estabelecimento, para cada uma delas, da sanção adequada. Afirma-se que a hipótese de incidência do sancionamento deve estar explícita na lei e não pode a pena adequada ser deixada para livre escolha do administrador. Trata-se de posição já defendida por Marçal Justen Filho na punição dos contratados da Administração Pública. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 8ª ed. São Paulo: Dialética, 2002. p. 623.
Confiram-se, no STJ, as considerações sobre a reserva legal absoluta limitar até mesmo o poder regulatório das agências, com base nos ensinamentos de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, HELY LOPES MEIRELLES e CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, no julgamento do REsp 1.794.629-SP, rel. Ministro Moura Ribeiro, rel. p/ o acórdão Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma do STJ, DJe 10/03/2020
Recurso Especial Nº 1.794.629 - SP (2019/0027170-6)
https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1884088&num_registro=201900271706&data=20200310&formato=PDF
4 Ao julgar o ARE 843989 Repercussão Geral Tema 1199 sobre a Lei de Improbidade foi fixada a tese: “2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;”
Constituição. Art 5º [...] XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada
5 Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. [...] XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.
6 Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição [...]
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.
7 Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas
8 Constituição. Art. 5º [...] LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Declaração Universal de Direito Humanos. [...] XI. 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
Pacto de San José da Costa Rica. Art. 8º [...] Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. [...]
Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] b. comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c. concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
9 Constituição. Art 5º LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
10 “O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO DE SALVAGUARDA DAS LIBERDADES INDIVIDUAIS – A submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em evidência a relação de polaridade conflitante que se estabelece entre a pretensão punitiva do Poder Público e o resguardo à intangibilidade do ‘jus libertatis’ titularizado pelo réu. A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu – que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória –, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público. A própria exigência de processo judicial representa poderoso fator de inibição do arbítrio estatal e de restrição ao poder de coerção do Estado. A cláusula ‘nulla poena sine judicio’ exprime, no plano do processo penal condenatório, a fórmula de salvaguarda da liberdade individual.” (HC 73.338/RJ, Rel. Min. Celso de Mello).